Superestimam abortos clandestinos, ocultam abortos legais e manipulam o recorte temporal para dar a impressão de benefícios gerados pela liberação do aborto.
O número de abortos NÃO cai no mundo puxado por países desenvolvidos com legalização. A notícia baseia-se em um estudo científico completamente implausível. Provavelmente uma das maiores fraudes científicas da atualidade.
A matéria divulgada pelo G1, chamada Números de abortos cai no mundo puxado por países desenvolvidos com legalização, teve como base o estudo publicado em 2017 pelo famoso Instituto Guttmacher, chamado Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access, elaborado por Susheela Singh e colaboradores (Leio e analiso as pesquisas da Dra. Singh há mais de um ano. Ela é vice presidente de pesquisa do Instituto).
Em suma, o estudo do Instituto Guttmacher apresenta o seguinte panorama: desde a década de 1990 o número total de abortos induzidos feitos no mundo tem diminuído, puxado pelos países desenvolvidos que têm a prática legalizada. Assim, buscam sustentar a tese de que seria a legalização a responsável por reduzir a prática de abortos.
Antes de explicar em detalhes uma boa parte desse problema, poderíamos resumir em três principais pontos os problemas desse estudo:
1. SUBNOTIFICAÇÃO DE ABORTOS LEGAIS: Nos EUA, Canadá, Austrália, África do Sul, Nepal e Reino Unido existem grandes problemas de subnotificação de abortos legais. No Canadá, estima-se que a estatística oficial esteja 20% a menor e na África do Sul, 50% a menor. Estes são alguns países, mas o problema de subnotificação é praticamente generalizado, ocorrendo na maioria dos países com aborto legal. Aqui têm-se um primeiro fator de viés no estudo.
2. RECORTE TEMPORAL TENDENCIOSO: O estudo analisa a incidência de abortos considerando dados desde a década de 1990 e não desde a legalização. Os EUA, Canadá e Reino Unido até a década de 1990 haviam registrado um aumento no número anual de abortos desde o primeiro ano da legalização na casa de 500%. Portanto, não se pode atribuir a queda dos números ao fator “legalização”, que ocorreram na década de 1970, no caso destes exemplos. A redução no patamar de abortos anuais nestes países aparece desde a década de 1990, curiosamente, na época em que o problema de subnotificação começou a ficar extremamente relevante. Acredita-se que de fato houve alguma redução, mas ela é pequena e não representa uma redução absoluta na incidência da prática quando analisado desde os primeiros anos da legalização. A pouca redução que teve, em grande parte, se deveu às leis aprovadas por partidos pró-vida, sempre enfrentando forte oposição da indústria do aborto.
3. SUPER ESTIMATIVAS DE ABORTOS CLANDESTINOS ONDE O ABORTO É PROIBIDO: Como o estudo compara “países com aborto legal” e “países com aborto criminalizado”, este elemento é crítico e há tempos muito bem explorado.
Ao analisar o estudo publicado em 2017, que é a referência da matéria do G1, vemos que ele estima 44 abortos para cada 1.000 mulheres em idade fértil na região “América Latina e Caribe” (disparado a maior taxa). A estimativa trazida pelo estudo mostra por exemplo, países desenvolvidos, com 27 abortos para cada 1000 mulheres em idade fértil (lembre-se que eles sofrem com o problema da subnotificação e mesmo assim registram grande aumento no número anual de abortos legais desde o primeiro ano da legalização – veja tabela completa aqui).
Onde estão dos dados primários?
Para saber a consistência desses dados, em especial a projeção de abortos clandestinos para a América Latina, navegamos de referência bibliográfica em referência, até chegar ao estudo que de fato traz a estimativa de abortos clandestinos no Brasil, por exemplo.
Segundo o estudo citado pelo G1, de 2017, os 44 abortos para cada 1000 mulheres em idade fértil na América Latina e Caribe estariam embasados neste estudo:
Rossier C, Estimating induced abortion rates: a review, Studies in Family Planning, 2003, 34(2):87–102 e o Abortion incidence between 1990 and 2014.
Contudo, o estudo de Rossier não fez pesquisa de campo. Não se trata de uma estimativa de abortos clandestinos para a América Latina. Rossier se baseou em outro estudo, que é da Dra. Susheela Singh:
Singh S, Prada E, Juarez F. The abortion incidence complications method: a quantitative technique, In: Singh S, Remez L, Tartaglione A, eds. Methodologies for estimating abortion incidence and abortion-related morbidity: a review, New York: Guttmacher Institute; and Paris: International Union for the Scientific Study of Population, 2010, pp. 71–85.
Porém, este estudo ainda não é tão específico sobre o método de estimativa de abortos clandestinos, embora já demonstre alguns detalhes adicionais. O estudo se baseia então em uma pesquisa publicada por alguns dos mesmos autores, em especial a Dra. Susheela Singh (a vice presidente de pesquisa do Guttmacher Institute). Trata-se do estudo publicado em 1991:
Singh S and Wulf D, Estimating abortion levels in Brazil, Colombia and Peru, using hospitals admissions and fertility survey data, International Family Planning Perspectives, 1991, 17(1):8–13.
Este estudo, antigo mas ainda bastante utilizado, é exatamente a metodologia de estimativa de abortos clandestinos que apregoa que no Brasil ocorreriam entre 800 mil a 1,2 milhão de abortos clandestinos ao ano. A própria militância pró-legalização contrariou esse estudo quando o PNA 2016 projetou um número de abortos clandestinos 50% menor do que Susheela Singh e o Instituto Guttmacher defendem.
No caso da Argentina não foi diferente. Navegando de referência bibliográfica em referência até chegar na estimativa de abortos clandestinos chegamos ao trabalho intitulado: Estimación de la magnitud del aborto
inducido en la Argentina, de Mario e Pantelides, publicado em 2005. Trata-se de mais uma superestimativa de abortos clandestinos, não por acaso, baseada na metodologia AGI, elaborado por Susheela Singh em 1994 (a mesma fórmula/metodologia). Inacreditavelmente, projetam 446.998 abortos clandestinos/ano na Argentina, o que representa 49 abortos para cada 1.000 mulheres. Ou seja, mesmo a Argentina tendo aproximadamente 25% da população brasileira, acreditam que ocorreriam lá quase o mesmo número de abortos que já superestimam aqui.
Como a balança ficou entre países com aborto desenvolvidos com 27 abortos para cada 1000 mulheres em idade fértil contra América Latina e Caribe com 44 abortos para cada 1000 mulheres em idade fértil, apenas baseado nos dados do Brasil, aceitando os dados do PNA 2016, o resultado da pesquisa já seria invertido.
Enquanto a superestimativa de Susheela Singh projeta, no Brasil, aproximadamente entre 20 e 22 abortos para cada 1000 mulheres em idade fértil, o estudo de Débora Diniz da ONG Anis Bioética (PNA 2016), ao projetar 500 mil abortos ao ano, o que representa aproximadamente 9 abortos para cada 1000 mulheres. Ou seja, se o estudo do Guttmacher tivesse se baseado na pesquisa da Débora Diniz, para o Brasil, poderia ter sua conclusão invertida. A pesquisa PNA 2016, porém, também é implausível e superestima os abortos clandestinos no Brasil por incluir os abortos espontâneos indevidamente como provocados. E claro, eles superestimam abortos em todos os países da América Latina e Caribe.
Países em desenvolvimento e países com aborto criminalizado
Outro fator de viés no estudo é que comparam países desenvolvidos versus países em desenvolvimento e assume-se, erroneamente, que todo país em desenvolvimento não legalizou o aborto, o que não é verdade. Principalmente no América Latina & Caribe, existem quatro com aborto permitido: Cuba, Guyana, Puerto Rico e Uruguai. Segundo estatísticas disponíveis, Cuba tem quase 40% das gestações terminando em aborto, ou seja, um percentual altíssimo.
Estimativa de abortos tendenciosa e de baixa qualidade
Nos últimos anos dediquei-me a analisar essa estimativa conhecida como Metodologia AGI, que são os dados primários dessa pesquisa do Instituto Guttmacher, divulgada pelo G1. A fórmula de estimar abortos defendida por eles foi elaborada e publicada no início da década de 1990 utiliza e possui em sua fundamentação, referências de estudos regionais da década de 1970 feitos na Califórnia, por exemplo, além de muitas outras discrepâncias.
Em uma análise detalhada sobre todos os aspectos da pesquisa de Singh e Wulf (1991 e 1994), foi demonstrado que a conhecida “metodologia AGI” pode estar superestimando em até 10 vezes o número de abortos no Brasil. Neste estudo, após detalhada análise, refiz a projeção, chegando em números entre 98 mil a 119 mil abortos clandestinos ao ano no Brasil. Em uma versão mais atual do estudo, disponível apenas no livro Precisamos falar sobre aborto: mitos e verdades, a projeção ficou entre 88 mil e 95 mil abortos clandestinos ao ano no Brasil, nos dois primeiros cenários, e no pior cenário, 156 mil abortos. Assim, a metodologia AGI mostra-se até 10,31 vezes maior do que o razoável.
A prova do fracasso de Susheela Singh e equipe em estimar abortos ocorreu após a legalização do aborto no Méxido-DF.
Segundo sua metodologia, estimava-se 130 a 190 mil abortos clandestinos no Distrito Federal do México, para o ano de 2006. Em 2007 ocorreu a legalização e no primeiro ano de aborto legalizado ocorreram apenas 10 mil abortos, comprovando seu fracasso. O número de abortos legais no México-DF só chegou à cifra que era estimada anualmente por Susheela Sing e colaboradores após 10 anos, em números acumulados. Isso mesmo, entre 2007 e 2017 ocorreram 176 mil abortos no México-DF, mas eles projetavam que esse número ocorreria ao ano.
Esse problema inclusive já foi alertado em artigo científico pelo doutor em epidemiologia Elard Koch e colaboradores (2012), mas o Instituto Guttmacher e a mídia continuam utilizando a metodologia AGI sem fazer qualquer ressalva. O Instituto também não apresenta qualquer explicação do porquê do fracasso da estimativa ao projetar os abortos no Distrito Federal do México.
Existe ainda, uma outra pesquisa internacional que projeta números de abortos clandestinos no Brasil em um patamar bem abaixo do que o Instituto Guttmacher utiliza. Trata-se da pesquisa de Le et al (2014), que projetou 48 mil abortos clandestinos no Brasil e não se tratam de pesquisadores pró-vida. Os pesquisadores apresentam-se como ‘neutros’ mas outras publicações os mesmos autores dão a entender que são favoráveis à legalização, ou seja, uma pesquisa insuspeita no tocante a esse dado. Analisamos em detalhes essa pesquisa em outro artigo no mês passado.
Assim, o panorama apresentado pelo G1, criado pelo Instituto Guttmacher, é mais uma evidência de que não está mais sendo possível confiar em pesquisas pagas pela indústria interessada na legalização do aborto em escala global. Eles deveriam, no mínimo, ponderar as pesquisas de Kock et al (2012) e Le et al (2014) e isso mudaria completamente o panorama e os resultados, invertendo a balança.
Por trás de uma fake news precisa haver uma boa fake science.
Leia também: Precisamos falar sobre as mentiras nas estatísticas de aborto
Estadísticas Interrupción Legal Del Embarazo (ILE). Cuidad De Mexico. Ile.Salud.DF.Gob.Mx.
Elard Koch, Paula Aracena, Sebastián Gatica, Miguel Bravo, Alejandra Huerta-Zepeda, and Byron Calhoun. Fundamental discrepancies in abortion estimates and abortion-related mortality: A reevaluation of recent studies in Mexico with special reference to the International Classification of Diseases. Int J Womens Health. 2012; 4: 613–623.
Le, HH., Connolly, MP., Bahamondes, L., Ceratti, JG., Yu, J., Hu, HX. The burden of unintended pregnancies in Brazil:
a social and public health system cost analysis. International Journal of Women’s Health, 2014: 6 663-670. https://doi.org/10.2147/IJWH.S61543
Derosa, M., 2018 (Org.). Precisamos falar sobre aborto: mitos e verdades. Ed. Estudos Nacionais. Florianópolis-SC. 640 p. In: Derosa, M. Estimativas de números de aborto no Brasil e no mundo, cap. 6. Páginas 235-236.
Derosa, M. 2017. Estimativa de número de abortos no Brasil. Estudos Nacionais.
Mario S and Pantelides EA, Estimación de la magnitud del aborto inducido en la Argentina, 2005, Notas de Población, No. 87, 2009.