Fala-se amplamente no debate sobre abortos nos supostos 4 óbitos maternos ao dia em decorrência de abortos clandestinos. A cifra, amplamente usada por grandes veículos de comunicação, não passa de uma fake news.
O próprio Ministério da Saúde evidenciou formalmente que os números informados pela matéria jornalística pela Folha de São Paulo estavam incorretos[1]. O despacho nº 22 do Ministério da Saúde1 se deu em resposta ao questionamento feito pelo deputado federal Diego Garcia.
Vale destacar que a OMS avaliou em 2010 e em 2015, que o Brasil encontra-se no grupo 1 (Categoria “A”) em qualidade de estatísticas vitais (mortalidade e morbidade), juntamente com países como Alemanha, Dinamarca, França, Austrália e Finlândia. Desta forma, os dados apresentados pelo DataSUS, que indicam terem havido menos de 53 óbitos maternos por aborto clandestino em 2015 e 41 óbito em 2014 são significativamente confiáveis.
Estes 53 e 41 óbitos maternos por aborto clandestino ocorrem em um contexto de 1.739 óbitos maternos totais em 2014, 1.738 óbitos maternos totais em 2015. Em 2016 foram 1.670 óbitos maternos totais, por todo tipo de causa morte.
Dentro das diferentes causas de morte materna, definitivamente o aborto clandestino não é a quinta causa de morte materna mais comum.
A primeira causa de morte materna que aparece no Datasus é O99 Outr doenc mat COP compl grav parto puerp, em patamar de 443, 423 e 410 óbitos maternos nos anos de 2014, 2015 e 2016. Depois dessa causa morte, analisamos uma a uma, criando um ranking.[2]: O aborto provocado figura em 2016, na 10ª ou 11ª posição (se considerarmos o cód. 099, de outras doenças maternas/complicações). Em 2014, ficou em 12ª posição, empatado com outras causas de morte, ou 13ª posição (se considerar o cód 099 como primeira causa de morte materna).
ANO DE 2014 | ANO DE 2016 | ||||
Ranking | Causa do óbito | Óbitos
| Ranking | Causa do óbito | Òbitos |
1ª | hipertensão gestacional (cid 013 e 014) | 156 | 1ª | eclâmpsia | 155 |
2ª | eclâmpsia | 140 | 2ª | hipertensão gestacional (cid 013 e 014) | 138 |
3ª | hemorrafia pós-parto | 107 | 3ª | hemorrafia pós-parto | 98 |
4ª | infecção puerperal | 85 | 4ª | embolia obstétrica | 86 |
5ª | embolia obstétrica | 84 | 5ª | infecção puerperal | 71 |
6ª | anomalia da contração uterina | 75 | 6ª | complicações puerperio NCOP | 57 |
7ª | complicações puerperio NCOP | 55 | 7ª | anomalia da contração uterina | 51 |
8ª | óbitos por gravidez ectópica | 53 | 8ª | óbitos por gravidez ectópica | 45 |
9ª | descolamento de placenta | 47 | 9ª | descolamento de placenta | 45 |
10ª | infecção no trato geniturinário | 46 | 10ª | “Aborto clandestino” 15 óbitos por “outros tipo de aborto” 21 óbitos por “Aborto NE” (NE = Não especificado)08 óbitos por “Falha de tentativa de aborto” | 44 |
11ª | morte obstetrícia de causa NE | 45 | |||
12ª | doenças infecciosas (CID 098) | 41 | |||
12ª | “Aborto clandestino” 12 óbitos por “outros tipo de aborto” 25 óbitos por “Aborto NE” (NE = Não especificado)04 óbitos por “Falha de tentativa de aborto” | 41 |
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Tabela 1. Principais causas de morte materna segundo sistema DataSUS.
Ou seja, em 2014, correspondeu a 2,1% das mortes maternas e em 2016 a 2,63%, isso incluindo os óbitos por Aborto NE (Não especificado). A tabela acima mostra que é bastante representativo o número de óbitos por Aborto Não Especificado, que pode conter casos de óbitos por abortos que não foram provocados clandestinamente, podendo estar sendo computados aí abortos abortos espontâneos, acidentais e por outras causas.
Contra-argumentos sobre dados do SUS
Conforme destacado, a própria OMS avalia o Brasil como categoria “A” em qualidade de estatísticas vitais e registros civis, o que confere alto grau de confiabilidade aos dados do Datasus. Existem estudos que tentam estimar uma possível margem de erro nos dados do SUS no tocante a mortalidade materna. O principal estudo, usado por defensores da pauta do aborto, indicou que a mortalidade materna no Brasil deveriam ser multiplicada pelo fator 1.4, por ter verificado 40% de aumento na mortalidade após investigação de óbitos.
Esse estudo é inclusive citado pela OMS, contudo, tal estudo, feito por pesquisadores brasileiros, não tem o desenho ideal para análise desse tema. Isso porque eles avaliaram óbitos maternos anteriores a 2004 (está ficando antigo), ocorridos até dois anos após o fim da gestação e somente 11% da amostra total deles se referia a abortos (espontâneos e provocados, de forma misturada). Como é padrão usar o recorte de estatísticas de mortalidade materna ocorrida somente até 42 dias após o fim da gestação, o percentual de 40% a mais que o estudo sugere adicionar não pode ser deliberadamente usado para compara morte materna com outros países que tem aborto legalizado, por exemplo, sem que os dados desses outros países também estejam no mesmo recorte temporal.
Além disso, com apenas 11% da amostra se referindo a abortos, os 89% de gestações que o desfecho foi parto podem estar interferindo nessa análise de forma a produzir uma distorção. De qualquer forma, o percentual ainda seria aplicado de forma linear, mantendo os óbitos por aborto nas mesmas posições do ranking, apenas elevando os números totais, passando de 44 óbitos para 62 óbitos – o que não faz com que muitas matérias deixem de ser fake news quando falam em milhares de óbitos maternos por aborto anualmente no Brasil. A referência e outros comentários sobre essa análise podem ser conferidas em dois vídeos disponíveis em nosso canal, um resumido e outro de uma palestra mais completa e recente.
[1] BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE ATENÇÃO À SAÚDE. DESPACHO Nº 22. em resposta ao Requerimento de Informações Nº 2500/2016. Disponível em <https://www.estudosnacionais.com/wp-content/uploads/2024/03/ric-2500-2016-mortalidade-materna-aborto.pdf >
[2] http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/mat10uf.def