Peter Thiel é uma das figuras mais enigmáticas e tem se tornado uma das mais influentes na interseção entre tecnologia, filosofia e a política atual dos Estados Unidos. Como bilionário do Vale do Silício, cofundador do PayPal e investidor inicial do Facebook, Thiel ganhou notoriedade não apenas por seu sucesso financeiro, mas por suas posições intelectuais vistas como ousadas e por sua atuação direta na política americana, especialmente como um dos primeiros e mais relevantes apoiadores de Donald Trump já em 2016. A sua influência, porém, parece estar mais evidente no segundo mandato de Trump. Mas quais são as suas ideias?
O pano de fundo filosófico e espiritual que orienta suas escolhas públicas passa, surpreendentemente, por uma fonte pouco comum no mundo da alta tecnologia: o filósofo francês René Girard, autor de livros como O bode expiatório. Assim como Soros, que conviveu como aluno de Popper, Thiel também conviveu com Girard.
Girard foi professor de literatura e antropologia em Stanford, onde Thiel estudou nos anos 1980. A convivência com Girard deixou uma marca duradoura no pensamento de Thiel, especialmente a teoria do desejo mimético. Segundo Girard, os seres humanos não desejam de forma autônoma, mas mimeticamente: desejam o que os outros desejam, o que gera rivalidades, conflitos e, inevitavelmente, a necessidade de um mecanismo de pacificação — o bode expiatório. Para Girard, as religiões arcaicas funcionavam precisamente como sistemas de contenção da violência social por meio da canalização do conflito para um indivíduo ou grupo sacrificado. O cristianismo, por sua vez, seria a revelação que desmonta esse ciclo ao identificar e inocentar a vítima, desmascarando o mecanismo do sacrifício. Isso foi extremamente importante para a visão política de Thiel.
Thiel interpretou o mundo moderno à luz dessa teoria, vendo na sociedade liberal contemporânea uma crise espiritual: sem estruturas religiosas sólidas, a modernidade deixou o desejo mimético desregulado, o que levaria a rivalidades crescentes, polarização política e colapsos institucionais. Em sua visão, o Ocidente perdeu não apenas sua fé religiosa, mas também sua fé em verdades objetivas e em estruturas hierárquicas estáveis. Nesse cenário de crise, Donald Trump aparece como uma figura arquetípica girardiana: um “bode expiatório” moderno que se recusa a ser sacrificado. Para Thiel, o papel de Trump não era o de restaurar uma ordem conservadora tradicional, mas de romper com o ciclo de hipocrisia mimética promovido pelas elites midiáticas, culturais e políticas. Eis o caráter do antissistemismo que teve seu grande apogeu no período pandêmico, quando a elite tecnocrática se converteu na sua própria caricatura, talvez até propositalmente, num processo de transição revolucionária que podemos chamar de período de saturação.
Essa leitura girardiana da política foi parte do pano de fundo espiritual com que Thiel se engajou na vida pública, mas evidentemente ele não se limita à figura de Trump. Sua crítica à democracia liberal se une a um diagnóstico tecnocrático: os sistemas políticos contemporâneos são ineficientes, paralisados e hostis à inovação. Nesse ponto, ele converge com o pensamento de Nick Land e do movimento neorreacionário (NRx), que defende o fim da democracia como forma política ultrapassada e propõe modelos privados e tecnocráticos de governança, como os “patchworks” — territórios autônomos administrados por elites empresariais ou tecnológicas.
Embora isso faça parte de um tipo de utopia liberal, é antiliberal em essência, sendo por essa razão adequado até mesmo às novas abordagens ideológica da Terceira posição, os neofascistas capitaneados por Alexander Dugin e a colonização russa na direita mundial.
Embora Thiel não adote o niilismo radical de Land, ambos compartilham o ideal de substituição da democracia por uma nova ordem gerida por competência e inovação. Propostas como o Seasteading Institute, que busca criar cidades flutuantes fora da jurisdição dos Estados-nação, refletem essa mentalidade pós-liberal, uma espécie de minicraft político. Nesse contexto, o papel de figuras como Elon Musk também se torna relevante. Musk e Thiel têm histórias entrelaçadas desde os primórdios do PayPal e, embora tenham seguido trajetórias diferentes, compartilham a visão de que a tecnologia não é apenas ferramenta, mas força civilizacional com potencial quase messiânico, o que coincide ainda com o advento e poder cada vez maior da Inteligência Artificial.
A tecnocracia de Musk, representada no sonho da colonização de Marte, o domínio da inteligência artificial e a fusão entre homem e máquina, expressa uma espiritualidade secularizada, gnóstica, que busca transcender os limites da natureza humana, uma culminação do transumanismo. Thiel, por sua vez, embora mais reservado publicamente quanto à sua visão sobre espiritualidade, expressa um desejo algo genérico de transcendência, a partir do olhar crítico sobre o esvaziamento moral e metafísico do mundo moderno. Sua espiritualidade parece estar mais próxima de uma restauração dos fundamentos morais da civilização do que de um salto puramente técnico. Ou seja, o lado espiritual parece apenas uma ferramenta para impulsionar uma civilização eficiente. Mas será mesmo só isso?
Em uma de suas manifestações públicas, Thiel disse que acredita que liberdade e diversidade são “valores transcendentes”, assim como a criatividade. Vejamos.
Thiel põe o indivíduo o centro, numa singularidade expressa no indivíduo empreendedor disruptivo, isto é, fora do controle institucional ou empresarial. Ele também promove a ideia de uma elite tecnológica e espiritual (como ele, Elon Musk ou fundadores de startups), que compreende a decadência do mundo moderno e está apta a conduzir a transformação — seja através do capital, da tecnologia ou de insights espirituais (como os de Girard). Thiel acredita em transcendência via tecnologia, especialmente com investimentos em longevidade, inteligência artificial e singularidade transumana. Tudo isso leva facilmente a uma influência esotérica e comum entre muitos ocultistas.
Ou seja, a influência de Thiel no governo Trump e na política americana mais ampla pode ser entendida como parte de um movimento maior: a convergência entre crítica espiritual à modernidade, rejeição das instituições democráticas tradicionais e aposta em soluções tecnocráticas e elitistas. Thiel, ao lado de figuras como Musk e em diálogo indireto com pensadores como Girard e Land, encarna uma tentativa de refundação civilizacional: romper com a modernidade igualitária e decadente, substituindo-a por uma nova ordem marcada por hierarquia, competência e transcendência.