Henri Kovar
Introdução.
O assunto que o livro Sapiens: Uma breve história da humanidade tenta abranger é demasiadamente longo, traço comum das “Histórias da Humanidade”, e por isso não pretenderei fazer uma crítica a cada posicionamento histórico do autor, mas sòmente a um ponto que me chamou muito a atenção: como Yuval Harari vê a História e o Homem em geral. Para isso, bastam duas partes do livro: seu capítulo 20, espécie de conclusão (“O Fim do Homo Sapiens”), e o seu o Epílogo, e logo o motivo para a escolha do título desse artigo se evidenciará.
Yuval, desde o começo do livro, parte de uma visão darwinista do Homem e atém-se a ela até o final, o que pode ser visto em idéias como a de que o homem veio do macaco e de que a Terra existe há bilhões de anos e está em constante evolução, desta surgindo as diferentes espécies. Como não sou nenhum prestidigitador de idéias, seguirei na linha de raciocínio do autor e aceitarei sua conclusão em seus próprios termos.
Capítulo 20: O Fim do Homo Sapiens.
Para Yuval, “a beleza da teoria de Darwin é que ela não precisa pressupor a existência de um criador inteligente para explicar como as girafas acabaram tendo pescoço comprido“, ou seja, elas adquirem essa característica através da própria evolução da espécie sem a necessidade de uma inteligência transcendente por trás. Desse modo, de alguma maneira mágica, a forma (no sentido de fórmula aristotélica) das girafas e dos demais animais possuem em si a possibilidade de adaptarem-se ao ambiente, modificando-se, sem que haja uma razão (no sentido de harmonia, de relação mútua) entre sujeito e objeto, ou, dito de outra forma, de um “criador inteligente” por trás das possibilidades das espécies. É como dizer que, sem que houvesse uma capacidade inerente a todas as girafas de aumentar o tamanho de seu pescoço através da adaptação — mesmo nas que não o tenham feito –, de alguma maneira as que lograram este feito, o fizeram sem que existisse essa possibilidade racional anterior. Não há, portanto, forma alguma e somos todos meros átomos soltos e adaptáveis, fazendo-se e desfazendo-se com o passar do tempo. Panta rei (“tudo flui”).
Na mesma página, o autor afirma que “durante bilhões de anos, o design inteligente não foi sequer uma opção, porque não havia inteligência capaz de criar coisas“, o que deixa a Teoria da Evolução sem “criador inteligente” como sendo a única alternativa. Contrapondo a isso, afirma que a raça das galinhas criadas pelos primeiros homens “era […] desconhecida na natureza, produzida pelo design inteligente não de um deus, mas de um humano“, tendo em vista suas características que se adaptaram ao novo meio. Assim, o desenvolvimento das espécies independe do homem e de sua ação, e este entra no quadro da evolução quase como persona non grata, modificando o desenvolvimento natural e “irracional” (em que não há inteligência atuante). O homem, por sua própria existência, coloca uma opção que antes não existia. Está assim formada a raiz do futuro dilema que surgirá nas próximas páginas.
Falando sobre uma época mais recente, Yuval diz que “em laboratórios no mundo inteiro, cientistas estão criando seres vivos” e que, fazendo isso, “eles violam as leis da seleção natural impunemente, sem se deixar frear nem mesmo pelas características originais de um organismo“. Ao invés de servir como indício da Teoria da Evolução, mostrando a veracidade da mudança das espécies, a ação humana sobre elas é colocada aí como violação das “leis da seleção natural”. O ser humano não participa da natureza como os outros animais, mas ao contrário: a modifica estruturalmente, e existe nela como elemento antagônico. Nós, que surgimos da seleção natural através da evolução, estamos nos voltando contra ela ao implantar o nosso próprio design inteligente. Essa mudança no processo evolutivo, de acordo com o autor, deve ser “entendido de uma perspectiva cósmica de bilhões de anos, e não de uma perspectiva humana de milênios“. É uma mudança qualitativa de tudo, possibilitada pela própria evolução do ser humano.
Reforçando o mesmo ponto, diz Yuval que “no momento em que escrevo este livro, a substituição da seleção natural pelo design inteligente poderia acontecer […]“. A parte se volta contra o todo, e o que foi possibilitado por ele tentará impossibilitá-lo, abarcando-o e “violando-o”. Da seleção natural e da evolução da espécie nossa inteligência formou-se, porém decidimos sair dessa espécie de determinismo natural, determinando-o. Surge “a idéia de que cientistas estejam tomando o lugar da natureza”, mas utilizando como instrumento para isso aquela mesma inteligência dada por esta natureza agora desonerada. Ao voltarmo-nos contra o nosso próprio criador (é dessa contínua seleção natural que surgimos), torna-se patente que “nossa capacidade de modificar genes está superando nossa capacidade de fazer uso inteligente e sagaz desse conhecimento“, justamente por irmos contra a lei natural.
É um fato, portanto, para o autor, que estamos nos distanciando da seleção natural ao modificarmos a natureza, pois esta deveria transformar-se sòmente através da seleção natural. Ou continuamos a violar as chamadas “leis da natureza”, ou deveríamos nos adaptar a elas como o fazem todos os outros seres; estas são as hipóteses que surgem da própria colocação do problema, porém elas estão falsificadas desde a sua origem, e explicarei o porquê depois de ver como o próprio Yuval tenta conciliar ambas possibilidades.
Nossa vontade de mudar a natureza, segundo o autor, poderá chegar ao ponto de querermos “brincar com o Homo sapiens ao ponto de já não sermos mais Homo sapiens“, mas alguma outra coisa. Um dos meios para efetuar essa mudança seria através dos computadores, da digitalização da espécie, do “transhumanismo”, o que leva Yuval a perguntar-se: “E se os programas de computador pudessem criar uma mente totalmente nova, mas digital, composta de códigos de computador, completa, com um senso de eu, consciência e memória?” E: “O que acontece com conceitos como ego e identidade de gênero quando as mentes se tornam coletivas?” A transformação seria total e nos tornaríamos, talvez na melhor das hipóteses, robôs pensantes; na pior, seres controlados por computadores. Yuval logo afirma que “nem todos os estudiosos concordam que a mente funciona de maneira análoga aos computadores digitais de hoje“, e, “se não funciona, os computadores atuais não seriam capazes de simula-la“. Portanto, se os computadores atuais forem capazes de simular a mente, isso servirá de prova de que ela funciona de maneira análoga a eles.
As possibilidades que essa conclusão abre são quase infinitas, pois através de um instrumento que criamos através do uso da inteligência poderíamos modificar a natureza tanto quanto nossa mente já o faz. Através dessa instrumentalização mental agora exteriorizada em computadores surge a possibilidade de convivência e assistência mútuas entre nós, humanos, e as máquinas por nós criadas, uma espécie de relacionamento composto por analogias e simulações que se retroalimentam no contato entre mente e computador. Yuval chega a se perguntar: “O que pode acontecer quando a medicina passar a se preocupar em melhorar as habilidades humanas?” Na visão dele, “o caminho para a medicina quase perfeita está diante de nós“, onde a idéia da perfeição se distingue da finalidade mesma do objeto (primum non nocere, por exemplo) e passa a ser entendida como a melhor adaptação aos fins de terceiros (melhorar as habilidades humanas), sejam eles quais forem. Essas mudanças na finalidade e na essência das coisas não se limitam à nossa natureza e à da mecidina, mas a tudo o mais. Segundo o autor, “não gostamos de considerar a possibilidade de que, no futuro, seres com emoções e identidades como as nossas já não existam e que nosso lugar seja tomado por formas de vida estranhas cujas capacidades ofuscam as nossas“, tendo em vista que talvez nós “estejamos nos aproximando de uma nova singularidade, em que todos os conceitos que dão significado ao nosso mundo – eu, você, homens, mulheres, amor e ódio – se tornarão irrelevantes“. A departure (“desvio, afastamento”) causada pela nossa evolução aumenta exponencialmente conforme tomamos posse da inteligência possibilitada por ela, indo além da modificação do mundo natural e chegando ao ponto de modificarmo-nos a nós mesmos — o que Yuval confirma ao dizer que “teríamos dificuldade de engolir o fato de que os cientistas poderiam criar não só corpos como também espíritos“. A finalidade da ciência não é mais conhecer, mas modificar — ou, como disse Marx sobre os filósofos, “agora devem transformar o mundo, não interpretá-lo”.
Já no final desse capítulo, Yuval expõe a finalidade dessa mudança de paradigma: “esses projetos estão inextricavelmente unidos à busca pela imortalidade – o Projeto Gilgamesh. […] É por isso que o Projeto Gilgamesh é o carro-chefe da ciência. Ele serve para justificar tudo o que a ciência faz. O Dr. Frankenstein pega carona nos ombros de Gilgamesh. Já que é impossível parar Gilgamesh, também é impossível parar o Dr. Frankenstein.” A busca pela sobrevivência chega ao cúmulo na espécie humana, onde a sua finalidade transmuta-se em nunca morrer, em viver para sempre, diferenciando-se das demais espécies. Um ponto importante, no entanto, é a universalidade desse objetivo — ou pelo menos o seu êxito –; porque, ao contrário do que deixa entender o autor de Sapiens, a seleção natural não deixou de existir e a sobrevivência do mais forte continua sendo um fato entre as espécies e dentro delas. Portanto, sòmente alguns seres humanos conseguirão alcançar a imortalidade, não todos, o que está de acordo com a Teoria da Evolução. Yuval afirma: “A única coisa que podemos tentar fazer é influenciar a direção que eles [os cientistas] estão tomando“. Não há “volta atrás”, pois a evolução não pára, e nesse contínuo progresso podemos apenas “influenciar” a direção, não mudá-la ou mesmo aboli-la. A “violação” das leis naturais citada pelo autor anteriormente é, desse modo, falsa: estas leis estão em ação presentemente e não parecem sofrer nenhuma atenuação. De acordo com essa interpretação diz Yuval: “Mas, considerando que possivelmente logo seremos capazes de manipular inclusive nossos desejos, a verdadeira pergunta a ser enfrentada não é “O que queremos nos tornar?”, e sim “O que queremos querer?”“, ou, melhor dizendo, “no que quereríamos nos transformar?”.
Ao fim desse capítulo profético, a impressão que fica em nós é a de que só restam-nos duas alternativas: ou nos tornamos fortes e superiores o bastante para mudar ou influenciar o curso das leis naturais, mas não a sua lei intrínseca (sobrevivência do mais apto), ou seremos subjugados por aqueles que conseguirem fazê-lo. Não há terceira alternativa, e esse é o falso dilema de Sapiens: a finalidade da espécie humana é ou subjugar, ou servir; ou ser um Alfa, ou ser um Gama (Admirável Mundo Novo); ou sermos, no que diz respeito à tecnologia, transhumanos imortais, ou servos de uma tecnocracia asfixiante e totalitária.
A quantidade de erros e omissões colocados pelo autor até aqui são quase incomensuráveis, nos levando cegamente à conclusão desejada por ele. Um desses erros é confundir uma parte da mente com a sua totalidade: a capacidade de raciocinar e a mente como tal. Se tudo o que é capaz de fazer raciocínios, fazendo ligações entre objetos dados (parte), pudesse simular a mente humana (todo), todos os computadores, animais, anjos e o próprio Deus poderiam fazê-lo igualmente, pois raciocinam tal como a mente humana. A verdade é que, pelos menos os computadores e os animais, não podem simula-la como um todo, mas sòmente no que diz respeito à capacidade raciocinante. O autor parece não se dar conta disso, pois desconsidera todo elemento espiritual do ser humano. Outro erro é pensar que um ente trazido à existência por uma lei natural poderia de alguma forma “violá-la”, como se essa possibilidade fosse inerente àquela lei — o que seria contraditório. Yuval raciocina de maneira certa, mas expressa-se de maneira errada através de meias-palavras e omissões, e por causa disso ficamos sem saída na conclusão de seu livro, como foi visto.
Epílogo.
Esse capítulo é quase como uma atenuação ou amortecimento das conclusões do anterior, tentando tornar melífluas suas consequências. O autor começa afirmando que, “infelizmente, até agora o regime dos sapiens sobre a Terra produziu poucas coisas das quais podemos nos orgulhar“. Ele não está feliz com o desempenho dos humanos nesse planeta, o que demonstra no seguinte trecho: “Mas diminuímos a quantidade de sofrimento no mundo? Repetidas vezes, os aumentos gigantescos na capacidade humana não necessariamente melhoraram o bem-estar dos sapiens como indivíduos e geralmente causaram enorme sofrimento a outros animais“. Os seres humanos, durante seus milhares de anos de existência, parece que não conseguiram ainda cumprir sua atribução dada pela natureza, pois “apesar das coisas impressionantes de que os humanos são capazes de fazer, nós continuamos sem saber ao certo quais são nossos objetivos e, ao que parece, estamos insatisfeitos como sempre“. A visão que o autor tem da humanidade é a de um conjunto de cegos, perdidos e desinformados que, apesar de buscarem alguma coisa, não logram atingir sua finalidade última e nem mesmo compreendê-la. No entanto, segundo Yuval, “somos mais poderosos do que nunca“, temos hoje um poder maior do que em qualquer outra época da humanidade, mas “temos pouca ideia do que fazer com todo esse poder“. A falta de finalidade continua, independente dos meios materiais que construímos para atingir nossas diversas “finalidades secundárias” (bem-estar, controle da política, circulação de idéias, navegação e contato entre diferentes povos, etc.) Resumindo essa idéia em uma pergunta, diz o autor: “Existe algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?“. Nós, para ele, somos como deuses, donos do mundo e do universo, mas a despeito disso não sabemos o que queremos. Para a maior parte das pessoas isso pode parecer estarrecedor, mas não para alguém que siga as idéias de Yuval até as suas últimas consequências — o que pretendo fazer no próximo parágrafo, concluindo esse artigo.
Os seres humanos não aboliram a lei natural da sobrevivência do mais forte, nem “violaram” ela ou trocaram por um design inteligente. Nossa capacidade de dominância foi dada por essa mesma lei natural e estamos apenas seguindo o seu movimento lógico: a evolução das espécies, interna e externamente. Quando o autor diz que ainda “continuamos sem saber ao certo quais são nossos objetivos”, ele está ou enganado, ou mentindo, pois nosso objetivo foi delineado por ele mesmo durante o seu livro: é precisamente o prosseguimento da seleção natural, como sempre o foi. Nós não somos “mais poderosos do que nunca”: apenas alguns seres humanos que tiveram êxito nesse objetivo darwinista é que o são, e todo o resto da humanidade continua lutando pela sua sobrevivência tal como os “meros mortais” de outras gerações o fizeram. Pelo que foi destacado pelo autor nos trechos anteriores, ao contrário de os fortes (os chamarei assim) terem “pouca idéia do que fazer com todo esse poder”, eles sabem muito bem o que querem: transformar a humanidade em alguma outra coisa (robôs? Transhumanos? Macacos pavlovianos? You name it¹). Essas idéias vão desde o ludismo e o ecologismo mais reacionários, como Ted Kaczynski e Arne Naess, até o controle geral da sociedade através da tecnologia, como Nick Land e H. G. Wells. Se há alguma coisa que os poderosos têm, são idéias do que fazer com o seu poder. Respondendo à pergunta de Yuval, há sim algo mais perigoso do que “deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem”: os que sabem o que querem, e o que eles desejam é justamente a continuação dessa visão darwinista do homem onde os mais fortes mantém-se e os mais fracos sucumbem sob o seu poder. Sem Deus, sem espírito, sem eternidade, resta-nos sòmente isto: a luta de todos contra todos, ladrilhando o caminho para o grande Leviatã.
¹ “Escolha à vontade”, “você que sabe”.