O termo “extrema-direita” sempre foi associado a toda e qualquer resistência contra o movimento revolucionário e as agendas progressistas no mundo. Isso faz parte de uma estratégia para impossibilitar, proibir e perseguir, toda e qualquer forma dessa resistência. No entanto, com o passar do tempo e das derrotas dos conservadores, alguns acabaram fazendo opções por uma certa conciliação linguística, cultural e abertura para campos do imaginário revolucionário, na presunção de poder “salvá-lo” e ocupar espaços maiores para os conservadores cristãos. O resultado tem sido o progressivo afastamento da verdadeira tradição cristã. Como não há vácuo nem neutralidade no âmbito espiritual, o produto deste indiferentismo religioso que tem dominado certos locais da política, geopolítica na chamada “guerra cultural”, vem se aproximando perigosamente da identificação com o estereótipo estigmatizado pela própria mentalidade revolucionária. Mais do que uma extrema direita, certos conservadores vêm se associando a uma verdadeira direita das trevas.
O termo é emprestado do Dark Enlightenment (Iluminismo das trevas), chamado de movimento neo-reacionário, também abreviado para NRx. É um movimento de base neoplatônica, esotérico e político, dito antidemocrático, antimoderno e supostamente anti-igualitário. Trata-se de uma apologia a uma “Idade das Trevas” desenhada pelos iluministas. Embora exista no atual momento uma direita liberal lutando para resistir com poucas e ineficazes armas o globalismo e o eurasianismo de base tradicionalista, estas reações são alvo fácil para os movimentos ditos “das trevas”. Por razões que pretendemos explicar, tanto o conservadorismo liberal quanto o supostamente tradicional (nos termos perenialistas) pertencem à mesma linhagem.
Em nome dessa pretensa ocupação de espaços no imaginário modernista, conservadores de vertente mais liberal e democrática moderna criticam visões tradicionais da Igreja como “excesso de escrúpulos”, anacronismo, maniqueísmo forçoso ou suposto exagero na hostilidade e definição entre bem e mal, entre outras críticas. Para eles, a verdadeira tradição católica estaria mais “no espírito do que nas forma exteriores”. Vejamos a que tradição pertence este tipo de consideração.
Para compreender o resultado dessa opção preferencial pela política, pelos meios de ação, há que se delimitar dois importantes caminhos concorrentes na história. A isto alguns chamarão de “maniqueísmo gnóstico”. Será isto mesmo?
A falsa dicotomia entre espiritualismo e materialismo
Como creio que ficou evidente na live que fiz com o prof. Daniel Ferraz (linkado ao final do presente artigo), na última segunda-feira (6/8) toda a modernidade é fruto, não de um mero individualismo materialista, mas de um espiritualismo que põe o homem no centro e no comando da própria transcendência, alcançada pelo domínio ou destruição da matéria, vista como má e, por isso mesmo, utilizável e manipulável como única energia possível neste mundo. Isto faz parte do gnosticismo, dividido entre as vias da mão direita e esquerda, respectivamente a negação do mundo e a sua destruição. Ambos podem ser associados às vias revolucionárias mais comuns: a política reformista, cultural, e a revolucionária violenta.
Para esta visão gnóstica que originou o liberalismo e a própria modernidade, o caminho espiritual fica restrito ao segredo e ao oculto, ao simbolismo natural e às doutrinas perdidas e exóticas. Tudo menos à Igreja Católica e na cultura vinda dela. No campo filosófico moderno, o resultado disso se expressou no racionalismo e na filosofia natural, no direito natural como mediador da visão espiritual, vindos do argumento de que a fé não pode ser compreendida nem expressa racionalmente, o que jogou o discurso religioso para fora do mundo legítimo, público.
Todo o cientificismo do discurso racionalista e naturalista, é um resultado, uma síntese cultural da meta inicial da busca por caminhos ocultos e supostamente verdadeiros escondidos pelo próprio Deus, visto como uma entidade enganadora. Eles são a encarnação cultural da promessa da Serpente: sereis como Deus, terão o conhecimento do bem e do mal.
Neste objetivo, buscaram muitas vezes as descendências sagradas espirituais, nas tentativas de resgate de povos e culturas perdidos e supostamente mais verdadeiros, como no caso da Ordem Rosa Cruz, Maçonaria, que se diziam continuadores do hermetismo dos caminhos espirituais antigos egípcios. Essa tendência também se viu representada culturalmente pelos iluministas e seu resgate da cultura pagã grega.
Os gnósticos e maçons dos últimos séculos, seguindo a trilha dos Evangelhos Apócrifos, buscaram as descendências de Caim, dos filhos de Noé, de Lilith, etc. Um dos reflexos mais famosos disto foi a busca dos alemães por uma suposta origem oriental, na Índia, da sua cultura e idioma, tendência que se espalhou pela Europa e deu origem aos fascismos neopagãos que hoje vemos ressurgir como autênticos filhos desta mesma serpente moderna através de um disfarce “antimoderno”.
Identidade satânica: negação da Nova Aliança
A busca por raças e descendências, porém, é própria dos pagãos e idólatras típicos da realidade pré-cristã, pois com o Advento, Paixão, morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, ficou abolido o culto das descendências do sangue e do corpo, ressurgindo e readmitindo a verdadeira descendência, na pessoa do próprio Cristo, que a transmitiu a São Pedro, fundando a Igreja: a sucessão apostólica, que representa o retorno ao mundo da descendência da Mulher, aquela cuja inimizade foi determinada pelo próprio Deus à Serpente e sua descendência. Toda a modernidade e a antimodernidade dos cultuadores de caminhos esotéricos são a raça da antiga serpente que sempre esteve entre nós, mesmo após a verdadeira descendência do próprio Deus ter sido iniciada neste mundo para a remissão de nossos pecados.
A tradição da velha serpente, portanto, representa a negação dessa remissão e uma busca humana pelas raças espirituais “escolhidas” nos caminhos secretos, cuja expressão cultural moderna está no racionalismo e na busca humana pela explicação, domínio e organização do mundo. Não por acaso, essas ideologias advindas daí encarnam-se em promessas de domínios sobre os reinos, ou continentes, deste mundo, guerras eternas, resgatando a promessa satânica e enclausurando as almas neste mundo para que no fim dos tempos sejam todos estes jogados na fornalha com o joio.
O disfarce materialista deste espiritualismo gnóstico na modernidade apresenta-se, agora, com a sua verdadeira face espiritualista, levando aqueles que imaginaram um mundo meramente materialista, a abraçarem o “retorno do espírito”, sem perceber que, fora da Igreja Católica, todo espiritualismo escorregará para o abismo.
Alguns pontos chave podem nos servir para a identificação dessa descendência maligna, que em alguns pontos bate com o conceito de mentalidade revolucionária, em outros não. Isso porque o pai da mentira conhece muito bem os anseios e desejos humanos, até mesmo aqueles por espiritualidade, por ordem e hierarquias sociais. No entanto, ele não pode, por sua própria natureza, defender certos valores que o contrariariam. A inimizade, o ódio perfeito entre a Mulher e a Serpente, impedem que haja um disfarce perfeito, ainda que as tentativas possam, ainda mais na modernidade, enganar muitos cristãos piedosos.
Um deles é a desobediência, marca da humildade e de todos os santos. É da desobediência que provém toda presunção, todo engodo de autosuficiência que nega a impossibilidade do alcance de qualquer realidade espiritual sem a Graça Santificante. Outro rótulo facilmente identificável nesta doutrina da Serpente no mundo moderno é a separação cartesiana entre o “espírito” e o corpo, decorrente da fragmentação imposta pelo próprio demônio.
Neste aspecto, é especialmente notório como alguns conservadores optam por uma estética moderna, pós-moderna (até mesmo tendendo à blasfêmia e ao satânico) em nome de um suposto “espírito” oculto no seu coração, este supostamente católico e tradicional, embora o externo esteja deturpado e transmitindo uma mensagem oposta. Esta postura tem origem na ideia segundo a qual a tradição católica poderia, e deveria, manifestar-se por formas variadas na história humana e em culturas diversas, adaptando-se à linguagem cultural de cada tempo. Se nisto há uma verdade, e realmente há, deveria ser acrescido de infinitas ressalvas quanto á cultura moderna, toda ela erguida sob a fragmentação cartesiana que divide o homem entre corpo e alma, podendo ir cada um para um lado. Afinal, será mesmo que a tradição da Igreja pode ser comunicada por uma linguagem literalmente satânica que se manifesta pela blasfêmia, pelo ódio à piedade, à integridade humana e demoniza toda busca por uma pureza de corpo e alma? Essa adaptabilidade da tradição, se verdadeira em muitos tempos e culturas, precisa ser contextualizada diante do fenômeno revolucionário impresso na cultura moderna e até na crítica à modernidade. Uma cultura abertamente satânica, onde os erros se confundem com linguagem, pode conter grandes perigos.
Que tradição adaptativa é esta, além do mais, que põe a radicalidade de um São Francisco de Assis ou de um Santo Antão, como “anacrônicos”? Essa direita igualitária, libertária e abertamente conciliadora do bem com o mal, se vê claramente como mais “esclarecida”, mais fundamentada na filosofia e na literatura, coisas que seduzem os eruditos, mas não os humildes.