Para católicos, a mensagem de Nossa Senhora em 1917, em Fátima, deve ao menos provocar certa perplexidade, ou uma profunda hesitação e prudência, diante do eventual apoio a um regime que matou pelo menos 100 milhões de pessoas, perseguiu cristãos e espalhou a ideologia ateísta do comunismo pelos quatro cantos do planeta. No entanto, se ainda restam dúvidas quanto à natureza demoníaca do regime de Putin, algumas reflexões podem ser necessárias.
Para quem observa com olhos puramente geopolíticos, pode parecer que o objetivo da Rússia atual seria apenas destruir os Estados Unidos, arqui-inimigo desde a Guerra Fria. Se isso é verdade, em certo sentido, também é verdade que os EUA seriam apenas o aperitivo do grande banquete que a Rússia prepara. Tão logo se alimente das almas ocidentais por meio da sua expansão, o regime dos czares ocultistas avançará fatalmente contra a Igreja Católica, único obstáculo ainda de pé (se bem que cambaleante) ao controle global por todas as agendas.
Depois de prometer a libertação dos trabalhadores do mundo por meio do marxismo, cujo resultado foi a escravização e genocídio, a Rússia agora promete uma outra libertação: a do globalismo ocidental. Um grande número de conservadores passaram a se ver representados por essa espécie de resistência conservadora e tradicional contra o materialismo da “cultura da morte” que avança sobre as nações. Há mais razões, porém, para ver a Rússia como o verdadeiro governo do anticristo, a despeito de suas acusações contra o ocidente de ser a “civilização do anticristo”.
Na visão do cristianismo ortodoxo, depois do cisma entre ocidente e oriente, Roma teria perdido o papel de centro do cristianismo, transferido para Constantinopla. Mas com a queda de Constantinopla nas mãos dos turcos, em 1511, esse poder teria passado para Moscou, a “Terceira Roma”. Conservadores ocidentais têm “comprado” essa versão da história, a partir do componente ideológico e geopolítico que põe a invasão da Ucrânia como símbolo de um conflito de continentes, da Rússia e seus aliados contra o expansionismo da OTAN. Essa narrativa, que tem o benefício de transformar a Rússia de agressor para vítima, vai fortalecendo todas as outras sub narrativas justificadoras.
Em um artigo para o site Providence, Matija Statham, colunista croata de política e religião, resume como essas ideias penetraram no imaginário ortodoxo russo e refletem, de forma profunda, na política atual do Kremlin. Mas o fundamento espiritual para a guerra da Ucrânia, assim como para outras ações russas pelo mundo, pode ser ainda mais sombrio.
Um dos conceitos-chave para compreender a justificativa espiritual para todo o arranjo programático da ideologia russa atual está no Katechon, termo bíblico que se desenvolveu em uma noção de filosofia política. Encontrado originalmente em 2 Tessalonicenses 2:6–7, trata de uma realidade escatológica segundo a qual os cristãos devem estar preparados para o Dia do Senhor. Se o Anticristo deve ser revelado antes da Segunda Vinda, torna-se necessário uma atenção especial, mas não apenas para identificá-lo. Antes da revelação do Anticristo, diz São Paulo, haverá a remoção de “algo ou alguém que o restringe”, isto é, impede que ele se manifeste plenamente. O versículo 6 usa o gênero neutro , τὸ κατέχον; e o versículo 7, o masculino, ὁ κατέχων. Isso quer dizer que Katechon é a força que resistirá ao Anticristo.
“(…) o mistério da ilegalidade já está em ação. Mas quem restringe deve fazê-lo apenas por enquanto, até ser retirado de cena. E então será revelado o iníquo, a quem o Senhor matará com o sopro da sua boca e tornará impotente pela manifestação da sua vinda.” ( 2 Tessalonicenses 7-8)
Na antiguidade, alguns vincularam o Katechon ao Império Romano e outros à Igreja romana. Houve muita discussão sobre o tema entre estudiosos cristãos, mas no ocidente isso perdeu força. Segundo Statham, o interesse pelo Katechon e suas especulações encontrou morada no clero e na intelectualidade russa do século XIX e no período entre guerras, na chamada “revolução conservadora”, movimento que teve forte influência nos resgates de tradições ancestrais pelo nazismo, mas também revelou nomes como Thomas Mann, Hugo Hoffmanstall, entre outros. As duas vertentes nas quais o Katechon era relevante são aquelas que sobrevivem hoje quase exclusivamente nas ideias de Aleksandr Dugin, o clero russo e nas justificativas do Kremlin.
O termo Katechon ganhou força justamente no nazismo, através de pensadores como Carl Schmitt, que em sua obra Nomos of the Earth, sugeriu a importância histórica tradicional da ideia dessa força do “restringidor catécontico” que permite um cristianismo centrado em Roma, e que “significou o poder histórico para restringir o aparecimento do Anticristo”. Para Schmitt, o katechon representa o sonho de construção do antigo Estado do Império Romano, com todos os seus poderes policiais e militares para impor a ética ortodoxa. Em seu diário, publicado postumamente, o pensador alemão diz claramente:
“Acredito no Katechon: é para mim a única maneira possível de compreender a história cristã e considerá-la significativa (…). O Katechon precisa ser nomeado para cada época dos últimos 1948 anos. O lugar nunca esteve desocupado; caso contrário, não estaríamos mais presentes”.
Schmitt é um dos pensadores preferidos e dos mais citados por Dugin e seus seguidores.
Acontece que, sob o ponto de vista secular marxista, o Katechon também tem a sua importância e o seu valor como utopia social. Marxistas como Paolo Virno, em seu livro Multidão: Entre a Inovação e a Negação. Para Virno, que rediscutir o termo à luz do pensamento de Schmitt, Katechon é um conceito de integração da humanidade, sendo aquilo que impede a mítica “guerra de todos contra todos”, de Hobbes, quanto o totalitarismo globalista ocidental. Trata-se, para ele, de uma força que embora impeça e contenha, não elimina nenhuma dessas forças históricas, apenas retardando o seu avanço. Mais ou menos na linha dos conceitos de ação informativa de Habermas, Virno propõe o conceito de katechon como “capacidade humana de usar a linguagem, que permite conceber a negação de algo, e também permite a conceituação de algo que pode ser diferente do que é”.
Neste sentido, todas as propostas espirituais ou tradicionais sugeridas pela Rùssia possuem sua versão secular, sabiamente aproveitadas por movimentos aliados do bloco russo em suas distopias. Não seria exagero supor que a síntese russa do eurasianismo pretende, ou pode gerar, uma evolução do globalismo para termos mais amplos e apontados diretamente para o imperialismo russo.
Em 1990, Dugin publicou um livro intitulado Metafísica do Evangelho: Esoterismo ortodoxo. Nele, o russo relaciona o conceito Katechon com o papel histórico e a missão da Rússia na história, referindo-se a ela como a “Terceira Roma” e ligando-a ao conceito tradicional de “sintonia” entre a Igreja e o Estado, isto é, numa nova religião imperial. Mais recentemente, quando inciava-se a invasão à Ucrânia, Dugin escreveu em seu Facebook: “Agora estamos numa guerra de espíritos. Katechon vs. Antekeimenos [Besta do Apocalipse]”.
Assim como Dugin, o patriarca Kirill, um ex-agente da KGB e colega de Putin, também cita frequentemente o termo ou suas variações para justificar um papel escatológico da Rússia. Kirill disse sobre a incursão à Ucrânia que a guerra “não tem significado físico, mas sim metafísico”. A despeito da alegação de que a influência direta de Dugin sobre Putin seja de fato limitada, não se pode dizer o mesmo do patriarca.
Recorda também Statham que Kirill disse, em abril de 2022, que “as Sagradas Escrituras mencionam uma certa força que impede a vinda do Anticristo ao mundo”. Neste sentido, pouco importa o quanto Putin de fato acredita nessas narrativas místicas. O que conta é que suas ações concordam perfeitamente como se acreditasse.
Muitos conservadores ocidentais ingênuos caíram na imagem que Putin fez da Rússia como defensora daquilo que ele próprio chama de “valores tradicionais”. Quando olham para a política, a mídia, a cultura e as corporações dominantes do Ocidente moderno, eles também veem “satanismo total”. Mas embora, pelo menos a nível declarativo, reconheça os problemas que existem no Ocidente, Putin está longe de ser a solução. Os “valores tradicionais” de Putin não são valores tradicionais cristãos, mas sim valores de alguma outra tradição. Ou, vamos dar um passo adiante: se um tipo de “cultura da morte” domina no Ocidente, a Rússia de Putin apenas oferece outro tipo de “cultura da morte”. O que os conservadores ocidentais muitas vezes esquecem é que a política dominante russa é, na sua essência, tão anti-cristã como a política ocidental, mas de uma forma diferente. A sua visão moralista, segundo a qual a comunidade a que pertencem tem o direito de dominar os outros, por todos os meios, incluindo o assassinato em massa de inocentes, não reflecte o verdadeiro cristianismo, mas implica um tipo de paganismo diferente do actual pós-cristianismo ocidental. .
E é por isso que, em vez da Segunda Epístola aos Tessalonicenses , creio que a citação bíblica que melhor descreve a situação atual diz: “Como pode Satanás expulsar Satanás?” ( Marcos 3:23)
À luz das profecias de Fátima, a Rússia já prepara um combinado de falsificações, tentando inverter a ideia dos “erros da Rússia” em os “erros do ocidente”. Em 2017, o site Katehon, de Dugin, anunciava a próxima “queda da Igreja Católica Romana” e a instalação da Igreja Ortodoxa Russa, ou Patriarcado de Moscou como sede do cristianismo universal. A recorrência das denúncias contra a Igreja Católica, sob temos como pedofilia, homossexualismo, iniciados pela grande mídia globalista e anticristã, avançam agora pelas mãos de proeminentes conservadores como forma de empurrar para fora a grande massa de católicos a serem cooptados pela ortodoxia russa.
Luis Dufaur interpreta isso como “a grande impostura” e um grande truque contra os católicos.
“O truque propagandístico deturpa as profecias de Fátima e de La Salette, e confunde a Igreja Católica com a rede teológica-homossexual que se infiltrou nela pelo menos desde o Concilio Vaticano II. Assim, Moscou visaria enganar os católicos desgostosos com a nauseabunda crise eclesiástica em curso e tentaria atrai-los para a área de influência do Patriarcado de Moscou. A propaganda de Katehon diz ser ecumênica e pancristã. Mas exige que os católicos renunciem a converter os cismáticos russos que tendem, como na Ucrânia, a abandonar os erros e desordens do Patriarcado de Moscou e aderir aos ritos orientais católicos.
Através de um assédio a movimentos conservadores por todo o mundo, o que conta com o dinheiro de oligarcas e a compra de intelectuais e influenciadores, o Kremlin pretende, entre outras coisas, recontar a história, começando pela falsificação das mensagens de Fátima.
Uma das principais iniciativas neste sentido tem sido promovida por tradicionalistas de renome, ligados às organizações islâmicas iniciáticas, como Charles Upton e sua esposa, Jennifer Doane Upton, que fizeram circular com grande popularidade um artigo em três partes intitulado “A profecia de Dante sobre a queda da Igreja Católica Romana”. Com a questionável autoridade de um ex-católico romano convertido ao sufismo islâmico, Charles Upton apresenta o texto de sua esposa esclarecendo que ela preferiu o ponto de vista dos Padres Orientais ao ponto de vista de Santo Agostinho ou de Santo Tomás de Aquino. Também esclarece que ela se utilizou mais especialmente de nomes tradicionalistas como René Guénon e Frithjof Schuon. Sem muita surpresa, a série de artigos defende que Moscou é a “Terceira Roma” e a Igreja Ortodoxa Russa deverá salvar a Igreja Ocidental corrompida pelo Vaticano II, pelo modernismo e liberalismo, não deixando de recorrer às profecias de La Salette e Fátima para explicar que “Roma perderá a fé”. Concluem, então, que a religião Ortodoxa é a verdadeira religião Cristã e que se deve ter todo o cuidado em se aproximar da “Roma apóstata”.
Upton, um tradicionalista guenoniano, diz acreditar que “quando o grande cisma entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa Oriental ocorreu em 1054, a Igreja Ocidental perdeu muitos daqueles que até então eram a tradição cristã universal”. Obviamente, sob o ponto de vista gnóstico da Tradição Primordial, isso parece ser dramático para o gnosticismo.
Mas depois de ler Dante com os olhos de Guénon, Upton só poderia chegar à essa conclusão. Ele começou a ganhar fama no meio conservador principalmente depois de prefaciar o livro Falsa Aurora, de Lee Penn, que denuncia os sincretismos demoníacos do movimento New Age, mas enfatiza apenas a sua faceta ocidental, ligada à United Religions Initiative, sem mencionar a influência de Guénon na divulgação das ideias orientalistas que culminaram no movimento espiritualista sincrético do ocidente, contra o qual agora se apresenta como antídoto providencial.
Curioso, porém, é que os principais argumentos usados para apontar a apostasia de Roma por parte do Vaticano são algumas novidades que relativizam o significado Eucarístico e dos sacramentos, como a comunhão a pessoas em segundas núpcias, entre outras, o que aproxima ou, no mínimo, abre discussões sobre um tema que ainda divide a Igreja ocidental e oriental.
Até mesmo o prelado Carlo Maria Viganó, conservador crítico contumaz do Papa Francisco e das inovações trazidas pelo clero progressista, palestrou ao lado do ideólogo russo em um evento claramente em defesa das políticas de Putin, o que foi compreendido por muitos como um apoio velado ou, no mínimo, um atestado de ignorância sobre quem estava ao seu lado. Inocente ou não, a participação no evento rendeu ao prelado o apelido de “Dugin para católicos”, por uma revista polonesa.