Recentemente, o site Whiplash, especializado em rock e heavy metal, publicou um texto a respeito do ex-baterista da banda Shaman, Ricardo Confessori, que teve desentendimentos com sua banda após se declarar anti-progressista, criticando a cultura woke e o feminismo etc. Essa mudança foi caracterizada por um termo bastante em uso nos meios conservadores: “red pill”.
Como sabemos, o termo se refere à pílula vermelha do filme Matrix, pela qual o indivíduo descobre a realidade por trás de um tecido de mentiras. Apesar da tendência gnóstica evidente do termo, o seu uso não continha elementos claros de gnosticismo, o que o tratamento dado pelo site metaleiro mudou radicalmente.
A matéria “explica” o que considera uma nova corrente de pensamento.
A “Red Pill” não é uma ideologia, mas uma corrente de pensamento que encoraja as pessoas a despertar para uma nova realidade. Para Confessori, essa jornada foi emocionalmente intensa, envolvendo fases de revolta por ter convivido com seu “Passageiro Sombrio” por tanto tempo. Ele enfatizou que essa é uma fase da vida que muitos enfrentam em momentos diferentes, alguns mais cedo e outros mais tarde. (grifos meus)
Os elementos gnósticos do trecho acima são bastante claros. Mesmo assim, grifamos eles. O “Passageiro Sombrio” é o nome de sua nova música, referência ao seu eu passado, iludido com a realidade falsa.
Mas qual foi a nova realidade para a qual Confessori “despertou”? Como sabemos, é fácil dizer que ele se tornou aquilo que a mídia mainstream chamaria de “conservador” ou de direita, bolsonarista, algo do gênero. Mas, por alguma razão que vamos buscar entender, o site metaleiro, que não é nenhum exemplo de conservadorismo, deu um “design” diferente à libertação redpiliana de Confessori.
Ao invés de usar os termos pejorativos, consagrados pela grande mídia de esquerda, como “teórico da conspiração”, fanático ou extrema direita, o site se referiu ao conservadorismo de uma maneira bastante inovadora e condescendente.
Confessori e Vasc compartilham uma visão semelhante de valorizar a virtude das pessoas, os fortes e os destemidos. Eles acreditam que, em tempos atuais, a música pode desempenhar um papel importante na preservação dos valores essenciais da vida e do mundo. Para eles, a batalha é muitas vezes sobre evitar mudanças drásticas e garantir que aspectos importantes da cultura musical permaneçam intactos. (grifos meus)
Grifados os termos que significam um conservadorismo pouco disfarçado. A foto que estampa a matéria inclui o Rasta, personagem conhecido do meio conservador por sua atuação no Brasil Paralelo.
Vejam como isso destoa da agressiva retórica midiática de quase um ano atrás, ou mais, quando as redes sociais eram a grande ameaça por trás da hegemonia do pensamento único da elite globalista. Parece que, de repente, há algo de positivo nesse conservadorismo, desde que se expresse por uma linguagem de libertação da realidade, isto é, gnóstica.
Quem me acompanha há algum tempo, especialmente quando escrevo sobre a nova moda das ideologias neofascistas e pseudo-tradicionalistas, sabe que uma das tribos culturais mais afeitas a essa tendência é o heavy metal. E as razões são incontáveis, assim como os exemplos.
Páginas como “Redpill 2.0”, do Instagram, que se descreve apenas como “redpill e espiritualidade”, dissemina conteúdos que misturam Gnomos, Hobbits de Tolkien, Narnia, cristianismo indiferentista e Seicho-no-ie em frases de efeito e auto-ajuda de todo tipo.
Já uma matéria de 2022 da revista Tab.Uol, diz “Redpillado’: como ‘Matrix’ inspira grupos machistas e a extrema-direita”. Na mesma linha, a revista Inteligência, classificou a expressão como um “guarda-chuva da mentalidade conspiratória”. Diversas reportagem ainda vinculam o “movimento redpill” como disseminador de ideais machistas.
Ao mesmo tempo, youtubers como o Neuromante, que tem 38 mil inscritos, considera Red Pill um “caminho para a autorrealização”. É isso mesmo. Embora muitos influenciadores busquem dar um sentido cristão ao termo, o problema da gnose pósmoderna está muito mais à frente.
A cor vermelha da pílula, porém, também não parece ser à toa. A ideia de libertação da realidade remonta aos primeiros gnósticos e foi referida por uma série de obras literárias e artísticas ao longo do tempo, assim como nos elementos do ocultismo. De acordo com André Figueiredo, colunista do EN e autor do blog Rascunhos da Realidade,
A base gnóstica profunda desse termo pode ser encontrada no Tarô, mais especificamente no arcano 16, a carta da Torre onde existe a queda de duas pessoas, uma vistida de vermelho e outra de azul. A que está vistida de vermelho representa o Dragão, Lúcifer que, segundo a mitopoética gnóstica, caiu inconsciente (na carta pode ser visto um tijolo atingido a cabeça da “pessoa”, deixando-a inconsciente). Os gnósticos acreditam que Lúcifer despertará de sua “inconsciência” e se tornará uma espécie de líder da humanidade.
As tribos e a gnose moderna
Antônio Gramsci dizia que, feitas as devidas transformações sociais e culturais, as pessoas se tornariam socialistas sem saber. Da mesma forma, o ocultista Aleister Crowley disse algo semelhante ao sugerir que a prática satânica seria, no futuro, convertida em hábitos naturais.
Somando as duas ideias, a político-cultural e a espiritual, temos um elemento característico da modernidade que se identifica justamente com o gnosticismo, sobre o qual temos falado nos últimos textos. Mas hoje veremos outro elemento importante dessa nem tão nova cosmovisão.
Não por acaso, a invenção moderna das tribos urbanas, dos agrupamentos culturais, deu início a uma fragmentação de sentidos que possibilitou essa ramificação e disseminação de hábitos e preferencias vistas relativamente e sua legitimidade igualitária. Afinal, foi com o advento dos “estudos culturais” que se começou a especular cientificamente sobre os “modos de sentido” e formas de ver de grupos e subgrupos específicos.
Foi a partir desse paradigma que se inventou, por exemplo, a infância. Segundo seus proponentes, as crianças antes eram vistas como “adultos em miniatura”, um termo utilizado para criticar a visão anterior.
Foi com a criação desses “modos de sentir” que se propôs a elaboração de novos produtos, linhas específicas e segmentações que atenderam ao mercado, ampliando em muito o comércio. De um lado, esse desenvolvimento, ocorrido até a metade do século passado, tem relação íntima com a mudança do critério do consumo, que foi da necessidade para o desejo, ampliando ainda mais as possibilidades.
Grupos e subgrupos sociais, gênero, raças e faixas etárias possuíam, assim, próprios interesses, necessidades, anseios, desejos e, é claro, cosmovisões. Mas é claro que essa transformação também teve importante impacto ideológico e coincidiu com a mudança do agente histórico pelo movimento revolucionário, que foi das classes, economicamente definidas, para outros subgrupos que pudessem “sentir” diferente a revolução como forma de libertação de suas próprias categorizações.
É impossível compreender o movimento revolucionário em sua feição jovem sem essa importante transformação cultural iniciada já nas primeiras décadas do século anterior.
A partir desse relativismo de sensibilidades, a libertação ganhou milhares de formas, tantas quantas pessoas existam, ideologias e formas de sentido existentes e por existir. Mas se essa é uma tendência “libertadora” dos grupos fomentou o consumo hedonístico, alimentou as revoltas da esquerda identitária e enriqueceu de cores violetas a nova era das espiritualidades disseminadas pela elite globalista, essa revolta metafísica também fez e tem feito um trabalho importante de disseminação na nova cosmovisão tradicionalista, trazida pelo perenialismo, de raiz gnóstica e baseada na mesma “satisfação espiritual” prometida pela Serpente no Éden.
A caixa aberta pela pandemia
Sabe-se que o meio conservador de hoje, fruto do arranjo político-oportunista dos meados de 2013 a 2018, contém em suas fileiras elementos oriundos do caldeirão espiritualista e macumbeiro do nosso Brasil. Espíritas, evangélicos neopentecostais, maçons e até teosofistas contam-se entre os quadros da política midiática e influenciadora das redes sociais.
Não por acaso, durante a pandemia, quando a indústria farmacêutica lutava para aproveitar-se da imensa oportunidade para criminalizar seus críticos, crescia nos submundos da internet, grupos específicos que se nutriam da crítica ao globalismo e à indústria para difundir certas crenças de caráter profundamente esotérico. Práticas medicinais alternativas e uma série de ideias que já se encontravam fora de moda, retornaram com força total.
Dessa vertente, da qual saem médicos, homeopatas, astrólogos e engenheiros terraplanistas, provêm os mesmos orientalistas que resgatam as teses do Monte Veritá e de suas versões contemporãneas.
Não se pode negar a influência gnóstica na ideologia globalista, como busquei mostra no curso “Raízes espirituais do globalismo e eurasianismo”. Mas se é assim, a revolta contra a hegemonia ocidental do consórcio indispôs o universalismo orientalista precisamente como instrumento de “abertura de mentes”, do redpill gnóstico da nova era.
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