Para quem acha que o resgate das tradições, pela Rússia, irá trazer de volta a masculinidade e romper com o feminismo, a ideologia de gênero e todas as formas de emasculamento, certas palavras de Dugin podem representar um imenso balde de água fria. Afinal, em uma crítica ao feminismo globalista, Dugin propõe uma abordagem tradicional ligada aos cultos da Grande Mãe. Aqueles conservadores que ficaram incomodados com as homenagens da Pachamama também poderão ficar bastante frustrados com o que diz o principal guru do tradicionalismo político. Trata-se do culto ao matriarcado mágico.
Quando Dugin critica a teoria queer, ele na verdade apenas critica a sua apropriação pelo liberalismo, a partir da interpretação sobre a transexualidade. Segundo ele, o conceito moderno de “dois-espíritos”, para se referir a indivíduos de um “terceiro gênero” em sociedades tradicionais, “não possui nenhuma ligação com a transexualidade” e, portanto, explica:
“Os ativistas LGBTs cooptaram esse fenômeno e alteraram sua definição. Na verdade, eles aderiram à interpretação errônea descrita pela colonização anglo-saxônica. Isso demonstra como os princípios da teoria Queer e do ativismo LGBT estão em concordância com o anglicismo e suas raízes racistas e iluministas”.
O problema da teoria queer, para Dugin, é que ela faz parte do esquema de dominação, da opressão exploratória dos pobres povos tradicionais pelo iluminismo. Como se pode notar pelas ideias dele sobre a questão do feminino primordial, porém, nota-se a crença na raiz comum dessas teorias. Mas é claro que o transexualismo é inconveniente para Dugin, embora não pelos mesmos motivos dos católicos, mas porque ele desfaz a natureza mágica do que ele e muitas correntes ocultistas acreditam como o feminino primordial.
Como sabemos, uma das suas principais pretensões gnósticas é a superação do Logos, tarefa para a qual ele propõe como alternativa uma teoria do caos, sendo esta a sua práxis ideológica simbolizada pela bandeira do eurasianismo e o método “vale tudo” de sua política conciliatória pelo mundo multipolar igualitário. Em sua Noomaquia (criação de conhecimento), a tecnologia ideocrática manda uma alternativa aos tipos mais comuns de Logos. Para além dos Logos de Dionisio e Apolo, Dugin propõe o Logos de Cibele, representação das deusas Mãe do paganismo e o princípio feminino. Teria Dugin mais relação do que imaginamos com mulheres russas como a professora de magia sexual, Maria de Naglowska?
Escreve Dugin, em 2018:
“Cheguei à conclusão de que há algo além desses dois Logos, que existe um terceiro. Além do Logos Dionisíaco, algo mais está oculto. Na sombra de Apolo há Dionísio, mas na sombra de Dionísio há outro. Eu o chamei de Logos de Cibele.[…] Cibele é o nome de um deus anatólio muito antigo, a Grande Mãe dos Hatti, um povo pré-indo-europeu muito especial que vive na antiga Anatólia antes dos hititas, que mais tarde adotaram essa divindade, integrando-a em seu panteão religioso. Depois deles, o culto a Cibele também foi desenvolvido pela população indo-européia dos frígios, cuja deusa principal era precisamente a “Grande Mãe”. O culto da Grande Mãe foi baseado na castração ritual do homem. Os sacerdotes de Cibele foram castrados tornando-se eunucos e isso fazia parte da grande visão do matriarcado, do reinado da Grande Mãe, onde o papel do homem é completamente diferente do que sabemos. Uma posição completamente diferente da posição dionisíaca, já que o culto a Dionísio era o centro atraente dos bacantes, das mulheres, mas também dos homens, e, nesse caso, é o homem no centro da existência humana.”
Para Dugin, o Logos de Cibele corresponde ao “noturno místico”. Toda a sua alquimia retórica se dirige a recriar imaginativamente uma nova visão de mundo que coincida com o projeto eurasiano, nada além disso. No entanto, é curioso como Dugin utiliza em sua prestidigitação pseudo-mística um caldo denso e pesado de poderosas simbologias satânicas presentes igualmente na pós-modernidade que ele diz combater.
Embora ele goste de parecer muito conectado com um passado pré-diluviano, Dugin apenas repete digressões ocultistas comuns entre os intelectuais mais influentes no esoterismo europeu. Afinal, a sua proposta de resgate do Logos de Cibele remonta ao pensamento do antropólogo e sociólogo suíço, Johann Jakob Bachofen, que imaginou um período matriarcal na história humana. Em 1861, numa obra intitulada Mother Right, Bachofen inventou uma nova visão do papel da mulher e da maternidade na origem dos agrupamentos humanos, inspirado na organização das abelhas na colmeia. Ele concebeu, assim, uma repetição disso para a humanidade. As ideias de Bachofen foram tão populares que até hoje se acredita numa sociedade matriarcal pré-histórica, embora não se tenha exatamente evidências ainda sobre isso.
Em um período caracterizado pelo surgimento de teorias gerais da história, como o marxismo e o evolucionismo, Bachoven reduziu toda a história humana à relação entre os sexos, sendo o primeiro a prenunciar uma revolução nesses termos. Não é preciso dizer que ele influenciou fortemente pensadores feministas do século XX.
Para Bachoven, uma espécie de Grande Mãe Primordial seria a mãe de toda vida, vegetal, animal e humana. Segundo ele, inicialmente os grupos humanos vagueavam pela terra seguindo as manadas e coletando os frutos da terra, conheciam-na como Senhora dos Animais. Com o advento da agricultura e a domesticação de animais, durante o neolítico, esse princípio feminino passou a ser cultuado como a Mãe-Terra, o próprio solo que sustenta, nutre e recolhe o homem. Bachofen argumentou que a maternidade era “a fonte de todas as sociedades humanas, religião e moral”. Assim, concebeu o que chamava de “direito-de-mãe”, uma verdadeira religião matriarcal, também chamada de “Urreligião”, um conceito que se opõe à ideia das religiões organizadas, semíticas e abraâmicas. O termo alemão “urreligion” se originou no contexto do romantismo alemão e se integra na intenção pangermanista de distinção entre o povo europeu e o asiático, especialmente os árabes e judeus.
O esforço de um resgate do passado xamânico, animista e pagão do norte da Europa se associa intimamente com a cosmovisão indo-europeia e tribal. Alguns novos movimentos religiosos mais recentes afirmam restaurar a religião primitiva incluem o Godianismo e a Umbanda, na África e Brasil. Dugin sabe exatamente o que está evocando.
Bachofen defende a ideia de que o homem teria passado inicialmente por uma fase de “afroditismo”, no qual era mais intensa a exploração das mulheres pelos homens, período de intensa promiscuidade sexual. Mas uma revolução veio libertar a mulher e criou uma “ginecorcracia amazônica”, o que teria dado início à civilização do período lunar, associado à agricultura e ao culto da deusa Deméter. Depois que as mulheres conquistam o poder político, vem o estágio dionisíaco, o casamento monogâmico, trazendo maior estabilidade entre os sexos. No entanto, como não poderia deixar de ser, a exploração pelos homens volta a crescer e a ameaça de uma nova revolução amazônica está no ar. As ondas seguintes do feminismo parte dessa constatação.
Bachofen foi especialmente influente no desenvolvimento das ideias sobre matriarcado no século XX, assim como Marija Gimbutas, considerada arquieóloga feminista, dos anos 1950, dando origem à chamada teologia feminista. Disso proveio uma série de estudos na linha da busca por confirmar a existência e legitimidade de uma sociedade feminista amparada nos matriarcados lendários do passado. Essa ideia foi explorada não apenas nos estudos feministas e arqueológicos, como também na literatura e no cinema, fazendo parte do imaginário ocidental.
Evidentemente, esta é mais uma forma de utilização e fomento das ideias modernas como sugestão oferecida por Dugin para o desenvolvimento de ideologias nacionalistas supostamente tradicionais para tribos, grupos, movimentos e países subdesenvolvidos que se sintam oprimidos pelos EUA e se unam ao projeto russo. Não precisa dizer que essa “libertação” dos EUA e do globalismo proporcionará um igual afastamento de toda a cosmovisão cristã.
Talvez não seja por acaso que a primeira esposa de Dugin, Evgenia Debryanskaya, tenha se tornado talvez a mais importante ativista dos direitos LGBT na Rússia. Apesar disso, para quem diga que ela se tornou uma “inimiga” do ex-marido, Debryanskaya foi uma fervorosa defensora da invasão à Ucrânia. Ela é uma evidência do passado transgressor de Dugin, o que ele na verdade apenas aperfeiçoou. Unidos pelo ódio ao materialismo da União Soviética, em 1985 os dois tiveram um filho chamado Artur Dugin, nomeado em homenagem ao poeta surrealista, Arthur Rimbaud. Em entrevistas, Debryanskaya fala da época em que conheceu Dugin, quando eram membros do que ela chamou de “ordem negra da SS”, o Círculo Yuzhinski, grupo esotérico tradicionalista liderado por Yevgeny Golovin. Ainda hoje, Dugin professa o que aprendeu no círculo e se diz devedor daqueles que considera seus “mestres”.
Dugin feministo?
Em uma entrevista à TV russa, Dugin disse que a ideia de identidade de gênero é um princípio ocidental, assim como a ideia de masculinidade, também ligado ao Ocidente. A Rússia, diz ele, está mais associada ao princípio feminino e à androginia. Por algum motivo, essa entrevista não foi mais encontrada na internet. Mas a que Dugin poderia estar se referindo?
Historicamente, a fascinação pelo oculto e o sectarismo levou a rejeições dos padrões de moralidade, especialmente a partir do profundo impacto que teve a obra de Nietzschie na Rússia do início do século passado. Rosenthal recorda a importância da androginia como fundamento para justificação de homossexualidade e lesbianismo anterior à revolução.
Como na Europa Ocidental, o ideal da androginia foi usado para justificar a bissexualidade, a homossexualidade e o lesbianismo, mas com um toque exclusivamente da Rússia – arranjos, incluindo manage à trois, baseados no significado místico do número três. Berdiaev se opôs especificamente à família por vincular homens e mulheres a preocupações mundanas. Pregando a sublimação sem realmente usar o termo, ele também acreditava que desperdiçar a semente masculina enfraquece o indivíduo e embota os poderes criativos, um princípio encontrado em muitas doutrinas ocultas.
Como ficará claro no ensaio sobre Blavatsky, a crença na hipótese do andrógino primordial teve profunda influência nos meios teosóficos, sendo que as ideologias do feminismo e da teoria queer contemporâneas devem à madame russa as suas primeiras intuições, o que nos permite compreender as mensagens ocultistas por trás de inúmeros produtos e modas de pensamento da atualidade. Essas ideias ocultistas e místicas foram caracterizadas por sua ênfase em um princípio feminino, segundo conta Rosenthal. Este era o período da crença em uma trama secreta que incluía um cristianismo apocalíptico, o prometeísmo de Nietzsche, a estética wagneriana, a filosofia de Soloviev, especialmente sua doutrina de Sophia, e a esperança de Fedorov de ressuscitar os mortos por meio da ciência.
De Blavatsky a Naglowska
Uma das personalidades célebres dessa época foi a mística e ocultista, Maria de Naglowska, cuja fama e atuação se estendeu pelo período soviético. A sua história não tem ligação direta com o eurasianismo, mas serve para compreender o contexto intelectual russo no qual aparecem as doutrinas comunistas e fascistas, além de desmistificar a ideia recorrente de que a Rússia foi ou é preservada da decadência associada ao Ocidente. Na verdade, como temos visto, essa decadência deve à Rússia grande parte do seu ponto de partida.
Naglowska foi uma artista e ocultista e jornalista russa que escrevia e ensinava práticas rituais de magia sexual. Como artista, ela estava ligada ao movimento surrealista parisiense. Em seu ensino oculto, sobre o qual concedia seminários subversivos por toda a Europa, centrou-se no que chamou de “Terceiro Termo da Trindade”, no qual o Espírito Santo da trindade cristã seria, na verdade, o divino feminino.
Durante a revolução russa de 1905, Naglowka teria tido contato com o ocultismo em reuniões fechadas de místicos revolucionários, o que deu início à sua carreira de escritora e palestrante. Pertencendo à Sociedade Teosófica, Naglowska conheceu, mais tarde, Julius Evola, do qual falaremos mais adiante, e criou o grupo ocultista chamado Irmandade da Flecha Dourada. Ligado ao grupo, criou a revista A Flecha, na qual publicou artigos de diversos místicos europeus, incluindo René Guénon em sua fase ocultista inicial.
Naglowska não era uma qualquer. Era filha do governador da província de Kazan, pertencendo, portanto, à elite russa de então. Assim como Blavatsky, ela fugiu de casa para casar-se com um plebeu, do qual separou-se mais tarde, em Berlim, e viajou para a Suíça, de onde foi expulsa por suas polêmicas palestras, indo para Roma por volta de 1920 e depois para Paris.
Em Paris, conduzia seminários de ocultismo atraindo mais de 40 pessoas para ouvir suas ideias sobre magia sexual. Desses encontros participaram importantes nomes de escritores da época, como Evola, William Seabrook, Man Ray e André Breton. Foram essas reuniões que culminaram na criação da Irmandade da Flecha Dourada.