O jornalismo independente, muito diferente do que hoje é chamado por esse nome, se define por uma crítica livre e sem amarras ideológicas ou econômicas. No último episódio da série Jornalistas Independentes, do EN, falamos de Gareth Jones, cujo trabalho foi importantíssimo para a desmistificação do sistema comunista da União Soviética, ao denunciar a fome ucraniana. Desta vez, trataremos de um jornalista que foi especialmente crítico da atividade jornalística do seu tempo.
O jornalista tem a palavra à mão. Eu frequentemente me vejo atrapalhado. Se ao menos tivesse um jornalista à mão! Tirava-lhe a palavra da mão e dava-lhe em troca uma palmada na mão.
Muito antes dos primeiros críticos da mídia de massa e seu poder destruidor, feitas no início do século XX pelos intelectuais marxistas da Escola de Frankfurt, um dos precursores da denúncia da decadência produzida por um jornalismo rasteiro e cada vez mais superficial, dado às emoções massivas através de uma linguagem cada vez pior e que pode ter sido precursora de uma decadência prevista como digna dos “últimos dias da humanidade”, foi o austríaco Karl Kraus (1874-1936), jornalista satírico nascido na cidade de Jičín, num território que hoje pertence à República Tcheca, mas que na época pertencia à Áustria. Kraus ficou conhecido por atacar com certa violência o jornalismo do seu tempo, já que era um filho de Viena, considerado por ele e por muitos como útero no qual foram gestados os maiores horrores do século passado.
Como um crítico feroz contra o poder da imprensa sobre o espírito humano, que resulta na massa, Kraus maldizia todo esse poder justamente por ser menos influente que a literatura. Por esse motivo, foi tido por alguns analistas modernos da sua obra como um elitista.
Aquilo que viu a luz da imprensa num único dia dos últimos cinquenta anos teve mais poder contra a cultura do que as obras completas de Goethe em favor desta.
Infelizmente, Kraus está hoje ausente das faculdades de jornalismo, o que talvez explique o estado em que se encontram. Reduzidas a um ambiente social de repetição de chavões, tanto linguísticos quanto comportamentais e estéticos, as faculdades de jornalismo nem entenderiam a crítica de Kraus à atividade que hoje se tornou a grande definidora da mentalidade das elites. Profeticamente, Kraus anteviu, assim como o nosso Rui Barbosa e Millor Fernandes, este último dono da frase “a imprensa brasileira sempre foi canalha”, o quanto a má imprensa pode destruir uma civilização.
Mas no tempo de Kraus, tanto Viena quanto a maior parte da Europa parecia vazia e sem vida. Tanto que o britânico Elias Canetti, Nobel de Literatura, descreve Karl Kraus como “a coisa mais viva da cidade”, referindo-se a Viena. Kraus tentou ser ator, o que não deu muito certo. Como todo jornalista independente que se preze, fundou um jornal e nele foi o único redator por nada menos que 40 anos. Praticante de um tipo de independência radical, foi ao longo do tempo o único dono da editora que publicava seu jornal. O periódico satírico Die Fackel (A Tocha) foi o veículo no qual Kraus publicou as primeiras páginas de um de seus principais livros, Os últimos dias da humanidade, tão apocalíptico quanto discreto em seu lançamento. De tão profético, o trecho do livro foi o artigo Nesta grande época, foi lido em público quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial. Kraus pode ser considerado um dos responsáveis por uma época de desesperança com a sociedade de massas, que culminou no clássico de Ortega y Gasset, Rebelião das Massas, mas antes dele inspirou uma série de utopias de intelectuais socialistas, a grande maioria membros da Sociedade Fabiana. Mas não era o caso de Kraus, um antiutópico por natureza, que flertou com ideias liberais e conservadoras.
Seu humor não poupou nem mesmo os grandes nomes da intelectualidade progressista.
Quando o senhor Shaw ataca Shakespeare, age em legítima defesa.
Seus textos são considerados testemunhos fidedignos do campo intelectual do seu tempo. Como um encrenqueiro de mão cheia, Kraus criticava grande parte dos intelectuais para um público de seguidores fieis. Os jornais silenciavam sobre seus textos, mas apesar disso ele dominou a vida intelectual de Viena.
Seus textos, de tão provocadores, chegaram ao elogio da censura, ao dizer que se comparada com o jornalismo, ela traz menos males.
A censura e o jornal – como não havia eu de decidir a favor daquela? A censura pode reprimir a verdade durante algum tempo, tirando-lhe a palavra. O jornal reprime a verdade durante muito tempo, dando-lhe palavras. A censura não prejudica nem a verdade nem a palavra; o jornal, ambas.
Kraus acusa a imprensa de um verdadeiro “crime”, que inclui o que ele considera uma nefasta intervenção sobre a imaginação do público. Essas páginas de jornais, segundo ele são “assassinas da fantasia”, que produzem males insondáveis. O mesmo ele diz da arte, que no mesmo sentido pode ser uma fuga para o artista, mas que acaba transferindo ao espectador e o seu público as prisões que a mente artística tentou exorcizar.
Um de seus textos mostra bem essa opinião.
Uma ciência que sabe tão pouco do sexo como da arte anda a espalhar o boato de que a sexualidade do artista é «sublimada» na obra de arte. Linda vocação da arte, a de poupar a ida ao bordel! Nesse caso, seria muito mais refinada a vocação do bordel de poupar a sublimação através de uma obra de arte. Como é dúbio o efeito sobre o receptor do método utilizado pelos artistas, já para abstrair da sua prolixidade, é o que prova precisamente o caso do compositor que aquela ciência se compraz em apresentar como exemplo de uma sublimação bem conseguida. Os ouvintes da sua música sentem-se de tal modo estimulados pela sexualidade que nela está sublimada que não lhes resta muitas vezes outro caminho senão aquele a que o artista se esquivou, a não ser que eles próprios sejam capazes de proceder a tempo a uma sublimação. Se o artista tivesse escolhido o caminho mais simples, os ouvintes teriam sido poupados a este efeito. Eis como sucede que, com o mau hábito dos artistas de sublimar a sexualidade, esta consiga precisamente libertar-se e um assunto que, por todos os motivos, deveria permanecer um assunto privado do artista degenere num escândalo público.
Considerado um “mestre da indignação”, o valor que Kraus dava à linguagem fez com que muitos o classificassem de conservador, o que não foi perdoado pelos críticos literários esquerdistas. Para eles, essa visão pode ser enganadora. No entanto, o papel da mídia na mente pública e sua influência no imaginário foi sempre um dos pontos mais fortes da sua crítica à imprensa. E embora muitas vezes a esquerda também tenha feito essa crítica, é hoje na esquerda que reside o poder imagético mais característico e presente nas palavras de Kraus.
A substituição dos sentidos humanos e literários, vindos da poesia ou das artes, pela sucessão de imagens midiáticas, estereótipos e ícones gerados pelo ritmo que as notícias davam à história, estão no centro da sua crítica da imprensa. É esse o problema, presente na deturpação linguística do jornalismo do seu tempo, que tornou possível a guerra.
“A falta de imaginação tornou possível a guerra”, escreveu Kraus. Para ele, o ambiente da comunicação social se tornou tão estéril de qualquer permanência, seja de valores ou da grande imaginação cultural, ao ponto de ser totalmente substituídos pelo valor da novidade, tornado universal. Kraus foi chamado até mesmo de “guardião da memória”, por recordar frequentemente da situação de esquecimento que o valor jornalístico concede à sociedade. Nesse aspecto, além de um precursor da crítica cultural e do jornalismo independente, Kraus pode estar inscrito entre os jornalistas conservadores, principalmente se considerarmos a profunda confusão que envolve o termo no jornalismo de hoje, de quase criminalização de qualquer crítica à novidade, à inovação seja moral ou linguística.