A postura aparentemente dúbia de Lula em relação à guerra da Ucrânia é um reflexo da tentativa de adequar-se a uma divisão interna que a esquerda experimenta após a crise de credibilidade interna provocada por décadas de submissão ao capital por meio da esquerda liberal. Petistas com José Dirceu e Jacques Wagner, perceberam o risco que vinha correndo a esquerda enquanto abre mão de sua identidade esquerdista. Isso fez com que se libertassem dos seus disfarces democráticos, aproximando-se da onda neofascista que propõe uma nova ordem antiliberal.
Oriundos da mistura de uma esquerda anarquista com grupos nacionalistas críticos da “globalização”, os movimentos de terceira posição, ou neofascistas, vêm ganhando o mundo e já tem até mesmo um bloco econômico para chamar de seu (os BRICS). Eles são a mistura de uma esquerda ortodoxa e populista com os movimentos nacionalistas heterodoxos com os quais o Brasil agora está aliado.
Esses movimentos começaram durante a Guerra Fria, mas se fortaleceram após o fim da URSS especialmente na Rússia e leste europeu. No início dos anos 90, o ideólogo russo Aleksandr Dugin, juntamente com Eduard Limonov, criou o Nazbol (nacional-bolchevismo). Sua estética que mesclava o nazismo com o comunismo pode ser entendida como um recado impactante ao mundo. Nas décadas seguintes, vimos movimentos antiglobalização, que desenvolveram incrível capacidade de unir esquerdistas e direitistas em um mundo cada vez mais “centrista” e politicamente correto.
Atualmente, as milícias neofascistas se acumulam financiadas principalmente pela Rússia, seja servindo de milícias separatistas armadas em países satélite da Rússia, no Donbass, na Ucrânia, ou cumprindo ordens nos movimentos nacionalistas antimigração europeus, confundindo-se com conservadores. Na esquerda, eles podem estar tanto na linha de frente de hackers anarquistas famosos, como Snowden ou Greenwald, ou enfileirados nas violentas milícias dos black blocs, dividindo e pressionando a esquerda para se afastar dos princípios do Consenso de Washington.
No Brasil, eles são representados principalmente pelo grupo Nova Resistência, que alcançou a proeza de aproximar Aleksandr Dugin dos militares da Escola Superior de Guerra (ESG) do Brasil, culminando com a publicação de artigo para a revista da ESG.
Uma análise de esquerda do Global Political Research é bastante clara sobre a mudança que está por vir, embora na época do artigo (2008) a situação estivesse relativamente mais tranquila para a esquerda do que agora.
Essas novas permutações têm o potencial de causar estragos nos movimentos sociais, atraindo ativistas da esquerda para a direita. Por exemplo, quando a União Soviética entrou em colapso, vários grupos de esquerda não comunistas surgiram repentinamente na Rússia, oferecendo a promessa de uma sociedade mais igualitária sem ditadura. No entanto, o grupo que se tornou dominante foi o dos bolcheviques nacionais, que são provavelmente o grupo fascista contemporâneo de terceira posição mais bem-sucedido. Capturando a imaginação de jovens insatisfeitos ao assumir muitas posições de esquerda e engajar-se em ações diretas, eles obliteraram com sucesso seus rivais absorvendo sua base demográfica em massa.. Os grupos de esquerda desapareceram e os bolcheviques nacionais continuam sendo um poderoso movimento político hoje com uma enorme base e base juvenil. À medida que envelhecem, eles permanecerão influentes na política russa por décadas.
Também chamados de nacional-anarquistas, os grupos de terceira posição estão na vanguarda de uma nova ordem global antiocidental e antiliberal, que promete entre outras coisas sepultar a chamada bipolaridade em benefício de regimes de força.
O movimento internacional dos BRICS visa reinterpretar a dinâmica e os polos globais de poder através de uma aparentemente nova visão política, multipolar e independente daquela ordem considerada “imperialista” e colonialista. Lula está claramente se alinhando a esse bloco, que visa apresentar uma alternativa de poder e pretensa liberdade nacionais e culturais para países que fazem parte desse imenso bloco em formação.
Muito mais do que uma mera alternativa econômica, como os mais dados a essas análises preferem acreditar, há uma parcela de defensores do BRICS que deseja colocar o bloco como uma nova ordem mundial para competir com a chamada ordem global do Ocidente, marcada pelo liberalismo econômico e a tese da democracia liberal.
Neste sentido, países alinhados a esse bloco costumam fugir da dicotomia direita e esquerda, caindo inevitavelmente na chamada “terceira posição” (não confundir com “terceira via”, que nada mais é que a social-democracia liberal). Mais do que uma ideologia, trata-se de um bloco de ideologias, que comportam internamente tendências fascistas e nacionalistas, mesclando elementos tanto do comunismo quanto do fascismo. A única coisa proibida neste bloco é o liberalismo ocidental.
Um exemplo desse arranjo foram o varguismo no Brasil, o peronismo na Argentina e o recente bolivarianismo, na Venezuela. Há quem chame o regime de Cuba pelo nome de “castrismo”, entre outros tantos exemplos.
Ao longo do século XX, a dicotomia direita e esquerda, frequentemente traduzida como socialismo versus capitalismo, acabou evocando a dualidade liberal entre países democráticos e totalitários. Isso parte da separação criada por mentes como a de Karl Popper, que divide sociedades em abertas e fechadas. Mas embora isso sirva para compreender alguma tendência política moderna e pós-moderna, é fácil encontrar exemplos históricos que confundam o simplismo dessa dualidade.
Getúlio Vargas, por exemplo, é amado tanto por direitistas militaristas quanto por comunistas ou socialistas. O mesmo se pode dizer de Perón, na Argentina. Há no país vizinho o famoso “peronismo de direita” e o “peronismo de esquerda”, assim como o nosso varguismo. Ora, até mesmo os nazistas e neonazistas trazem consigo essa abrangência de seguidores de vários espectros, apesar de a esquerda liberal em geral preferir associar os nazistas à direita como forma de criminalizá-los. Eugen Castan, o famoso nazista gaúcho que foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal no final dos anos 1990, se orgulhava de ser um admirador de Stalin, Mao Tse Tung e Fidel Castro.
A principal característica desse movimento é ser contrário tanto ao capitalismo laissez-faire quanto ao socialismo, bem como ao liberalismo cultural, que abastece a esquerda liberal e internacionalista na atualidade. Há nesta tendência um grande sincretismo entre direitistas e esquerdistas, unindo-os em seus aspectos mais extremos, antiliberais e antimodernos.
Mas o aspecto mais relevante pelo qual essas ideologias se apresentam na atualidade é o conflito entre nacionalismos e o internacionalismo. Este último é a bandeira da esquerda liberal, que pretende aumentar seu poder sobre as nações através da apropriação dos princípios democráticos, inclusive distorcendo-os e tornando-os dóceis aos seus anseios totalitários, isto é, de construção de consentimentos como no caso do politicamente correto e as criações jurídicas mobilizadas para torna-lo motivo de perseguições, censuras e prisões.
Já o nacionalismo hoje conta com apoiadores da terceira posição, isto é, direitistas extremistas, no sentido do populismo autocrático e militar, e esquerdistas ortodoxos, admiradores de Stalin e das iniciativas nacionalistas empreendidas pela esquerda ao longo do tempo, ainda que este nacionalismo seja transitório e usado como instrumento para alcançar o comunismo global. Eles são o Partido da Causa Operaria (PCO), PSTU, entre outros partidos e grupos.
No Brasil, um dos mais proeminentes e assumidos representantes das ideologias de terceira posição é Aldo Rebelo, que criou o movimento chamado “Quinto movimento”, para dialogar com a direita nacionalista e com a esquerda ortodoxa, em direção clara ao chamado populismo nacionalista que considera o caminho mais coerente para o Brasil. Essas ideologias podem seduzir conservadores pelo marcado nacionalismo e oposição às ideologias identitárias dos globalistas ocidentais. No entanto, a grande armadilha é a negação completa dos princípios democráticos, direitos humanos e até liberdade de expressão.
O que propõe o BRICS e a Ordem Multipolar
Nesta nova conjuntura global, cada país terá a sua área de influência, o seu “império”, que deve ser respeitado enquanto parte de sua identidade cultural. Isso parece muito bonito, mas significa dizer que um país mais forte pode subjugar o mais fraco simplesmente por acreditar que aquele país pertence ao “seu mundo”. Segundo Aleksandr Dugin, um dos principais ideólogos dessas novas narrativas de terceira posição, cada “império”, cada região ou pólo detém em si mesmo uma “epistemologia própria”. Isso significa que valore morais, humanos, direitos civis ou liberdades ficam totalmente dependentes da sua soberania e autonomia territorial. O que pode parecer muito libertário, porém, basta lembrar que ditaduras sanguinárias sempre evocavam suas soberanias e direitos internos para justificar atrocidades.
Para entender melhor, façamos um simples exercício: digamos que seja entendido como ênfase brasileira a religião e os costumes tribais dos índios amazônicos, que têm como um de seus costumes enterrar crianças vivas quando vistas como indesejadas pela tribo. Esse costume não dispõe de mecanismos externos de julgamento, uma vez que depende unicamente da “episteme” da tribo. O mesmo se pode aplicar para as culturas islâmicas no oriente ou mesmo as que são assimiladas em países ocidentais quando adquirem autonomia baseada na cultura sem qualquer outro ordenamento que as influencie.