O feriado de 21 de abril, no Brasil, já não tem mais o mesmo significado. Ele foi criado por um dos primeiros decretos após a proclamação da República, em 1889, pelos militares que tomaram o poder. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, a figura de Tiradentes permaneceu esquecida durante o período colonial e durante a maior parte do Império no Brasil, sendo recuperada pelos republicanos com objetivo de criar um verdadeiro libertador e inspirar a população para o novo regime imposto pelos militares. Sob a bandeira positivista e republicana, a evocação do imaginário cristão e de referências às imagens do próprio Cristo mostra como as ideologias modernas buscaram substituir a fé pela adesão política.
Circula na internet um vídeo em que o presidente Lula se refere a Tiradentes dizendo ter sido “crucificado”. O erro, que parece fruto de um profundo desconhecimento histórico, é uma reação quase natural de muitos brasileiros acostumados a ver as imagens de Tiradentes semelhantes a Cristo. Além do fato de ele ter tido 12 seguidores e traído por um deles. A construção dessa imagem, na verdade, foi proposital.
Joaquim José da Silva Xavier era filho de portugueses que se estabeleceram na região, dedicando-se a diversas atividades, como a mineração, criação de gado e comércio de animais. Segundo historiadores, teria sido em meados da década de 1780 que Tiradentes, como era chamado, se envolveu com os movimentos de independência que surgiram em Minas Gerais, em resposta aos altos impostos cobrados pela Coroa Portuguesa.
Ele participou da Inconfidência Mineira, um movimento que pretendia estabelecer uma república em Minas Gerais e lutar contra a dominação portuguesa. Descoberto pelas autoridades coloniais em 1789, Tiradentes foi preso e condenado à morte por enforcamento. Ele foi executado em 21 de abril de 1792, na cidade do Rio de Janeiro e seu corpo foi esquartejado e exposto em diferentes partes do país, como forma de desencorajar outros movimentos de independência. Mas isso é o que contam os livros de história, feitos com base em livros anteriores, cuja motivação é polêmica na história do país. Afinal, até a participação de Tiradentes no movimento é controversa e alguns historiadores acreditam que ele teria sido um líder menor, responsável apenas por tarefas secundárias no movimento.
A história dele foi relativamente esquecida nos anos seguintes, sendo recuperada posteriormente quando se iniciou, por volta de 1869, o primeiro movimento republicano durante o período imperial, que buscava inspiração nas ideias iluministas e positivistas da França. Vários historiadores acreditam que o movimento republicano começou, de fato, em Minas Gerais, espalhando-se depois por outros estados, mas principalmente como uma adesão “por vingança” diante da abolição da escravidão, o que era visto como um golpe pesado na economia do país, dependente do trabalho escravo.
A transformação de Tiradentes em um patrono da República começa no Manifesto Republicano, em 1870, e vai crescendo conforme se aprofundam as crises do regime monárquico, até o seu ápice com a Proclamação.
A partir do novo regime, instaurado em 1889, Tiradentes foi alçado a herói nacional e sua imagem foi utilizada pelos republicanos como um símbolo da luta contra a opressão colonial e monárquica [1]. Além disso, a figura de Tiradentes foi recriada pelos republicanos como um líder popular e patriota, um defensor da liberdade e da independência do Brasil.
Pouco se sabe do quanto o real Tiradentes tem a ver com o personagem criado pelos republicanos. O que se sabe é que uma das principais inspirações dos militares positivistas foi o imaginário cristológico presente na cultura ocidental, de maneira a criar uma espécie de Cristo cívico, seguindo ao mesmo temo a ideologia positivista e iluminista. Na França revolucionária, a busca pela substituição de elementos religiosos por civis chegou a casos extremos, como a invenção da cerimônia do batismo civil, entre outras, depois abandonadas.
Famosos quadros da época, como o de Décio Rodrigues Vilares, no início da República, aparecem como imagens que remetem claramente a Jesus Cristo. Nesta há inclusive, em suas mãos, a palma, símbolo cristão dos santos mártires. Mas talvez a imagem mais famosa de Tiradentes seja o quadro de Pedro Américo, inttulado “Tiradentes esquartejado”. Ali, o personagem é mostrado com o rosto semelhante a Cristo em suas mais famosas representações. A imagem do tronco, porém, encontra evidente referência à escultura Pietá, de Michelangelo.
“A cabeça, com longas barbas ruivas, está colocada em posição mais alta, tendo ao lado um crucifixo, numa clara sugestão da semelhança entre os dois dramas”, escreve o historiador José Murilo de Carvalho.
Durante a ditadura militar no Brasil, o mesmo programa se seguiu tendo a figura de Tiradentes ainda mais associada à imagem de Cristo, como uma forma de cooptar o símbolo nacional da Inconfidência Mineira para fins políticos e patrióticos. É evidente que essa associação se dá a partir da ideia de que Tiradentes teria sido um “mártir”, assim como Cristo, e que ele teria sido perseguido e condenado injustamente pelas autoridades coloniais, tal e qual o Filho de Deus. Assim como foi feito pelos militares da Proclamação, essa visão da história servia aos propósitos do regime instaurado em 1946, algo que foi renovado tanto quanto no período de Getúlio Vargas, na evocação de uma espécie de “redenção nacional”, capaz de livrar o país de seus inimigos internos e externos.
Essa associação entre Tiradentes e Cristo foi reforçada pela construção de uma grande estátua do herói nacional em estilo neocolonial na Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro. A estátua, que mede cerca de 20 metros de altura, foi inaugurada em 1972 e é considerada uma das obras mais importantes do escultor brasileiro João Batista Vilanova Artigas.
A apropriação de símbolos religiosos por regimes nacionalistas sempre foi uma maneira de imitar outros personagens de fato heróicos e ligados a lutas de libertação nacional, não raro também ligados ao cristianismo, como Santa Joana D’Arc, São Luiz, entre tantos outros. Mas a apropriação desse mesmo imaginário na ideologia secularista dos positivistas republicanos e iluministas franceses representou um capítulo à parte por ser feita por ideologias marcadamente críticas à religião, mas que, no entanto, pretenderam fazer uso político do imaginário existente.
Religiões civis e ideologias modernas
Autores como Eric Voegelin trataram dessa tensão entre as religiões e ideologias modernas, considerando-as como resultado do início da modernidade, período caracterizado pelo surgimento do Iluminismo e do Positivismo, como o que influenciou a República brasileira. Nelson Lehmann da Silva, no livro “A religião civil do Estado moderno”, resume de maneira fundamentada essa constante na história das ideias políticas. O autor demonstra o processo da secularização do Estado moderno e a emergência de uma nova forma de religião, que surge como uma alternativa às religiões tradicionais e se constitui como uma espécie de “religião civil”.
Na história da construção do Estado moderno houve uma ruptura com a tradição religiosa e um afastamento da influência da Igreja na vida pública. Ao mesmo tempo, surgem novas formas de religiosidade que têm como objetivo preencher o vazio deixado pela religião tradicional.
Ao longo da obra, o autor faz uma análise crítica desse processo de secularização e de emergência da religião civil, destacando os desafios que se colocam para a construção de uma sociedade democrática e pluralista. Ele argumenta que a religião civil pode ser uma forma de integrar os cidadãos em torno de valores compartilhados, mas que é preciso estar atento aos riscos de exclusão e de intolerância que podem surgir a partir dessa ideia.
Se as ideologias iniciadas na modernidade, como o iluminismo e positivismo, representam demonstrações quase literais desse processo de construção de uma religião civil, as ideologias modernas prometem ir além.
Para Voegelin, a religião é uma forma de experiência da ordem cósmica, que envolve uma busca pela verdade e pelo significado último da existência. As ideologias modernas, por sua vez, oferecem uma visão da ordem social que é baseada em conceitos abstratos e em uma visão de mundo materialista, que exclui a dimensão espiritual. A ideia da “imanentização” da salvação é, talvez, o conceito mais importante de Voegelin no que diz respeito à política moderna.
Assim, Voegelin argumenta que as ideologias modernas são uma forma de gnosticismo – uma heresia religiosa que surgiu nos primeiros séculos do cristianismo – que promete a redenção por meio da transformação da ordem social e da eliminação do mal. Ele argumenta que essas ideologias são perigosas porque buscam controlar a vida social de forma totalitária e eliminam a liberdade individual e a diversidade cultural.