Recentemente, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, disse que a culpa pelos ataques criminosos no Rio Grande do Norte eram da “misoginia”. O que pode parecer tão absurdo ao ponto de não ser levado em conta, porém, é visto diariamente nas notícias e em manifestações públicas nas redes sociais. Até mesmo a direita, que gosta de ver a si mesma como purificada de automatismos ideológicos, acaba caindo nisso, ainda que de maneira acidental e desapercebida.
O perigo genérico e abstrato, porém, sempre acaba vitimando pessoas reais, escolhidas como bodes expiatórios daquele fenômeno que foi ganhando o sentimento negativo progressivamente.
Muito frequentemente vemos a culpa das “mudanças climáticas”, da “desinformação”, do “racismo”, do “machismo” e, como nas palavra do jurássico ministro, a misoginia. É comum que as feministas falem, por exemplo, deste termo tão genérico quanto impreciso chamado “patriarcado”. E assim por diante.
Constantin Noica falou de um processo comum em alguns escritores, que talvez tenha sido expelido na atmosfera vivida por intelectuais que trouxeram ao mundo as mais perturbadoras doutrinas sociais.
Colocar a culpa em fenômenos abstratos baseado em crenças reforçadas por sentimentos é tão comum na esquerda quanto respirar. Isso existe, pelo menos, desde que Karl Marx resolveu que a história é movida pelo motor da exploração da classe trabalhadora pela burguesia. Todos os problemas, disfunções e dramas pessoais concretos passam a ser creditados a esse fenômeno, sem que se tenha parado para pensar suficientemente sobre ele.
Mas além desse expediente existir antes de Karl Marx, essa escorregada pode estar na própria essência humana de buscar leis gerais para explicar problemas particulares. Assim, também podemos dizer que há, no mundo real, princípios gerais ou leis que existem de fato, tanto como universais e pré-humanos quanto os sociais, as vigências que a todo instante se apresentam na forma de fatos. Assim, por exemplo, a culpabilização existe, mas embora grupos possam fazer um uso mais ou menos radical deste expediente, associar isso diretamente a um grupo de indivíduos é sempre complexo. Mais ainda seria relacionar todas as ações daquele grupo de indivíduos a esse fenômeno geral como se fosse uma espécie de lei da natureza.
Sempre que abusamos de um termo essa tentação aparece. Quando conservadores abusam do termo “marxismo cultural”, por exemplo, corre-se o risco de associá-lo a algo não tão exato, dando margem a uma interpretação grosseira e rudimentar. Isso deu oportunidade, em muitos casos, para que a esquerda acusasse conservadores de serem “teóricos da conspiração”. Afinal, sempre que há uma única causa, geral ou grupal, associada a uma multiplicidade exagerada de fenômenos, é possível que estejamos diante de uma teoria conspiratória ou, o que é mais exato, um pensamento ou automatismo conspiratório.
Isso se dá pela falta de rigor com os estágios intermediários da explicação de uma causalidade. Quando se culpa o mais distante indivíduo ou agente causador, sem acrescentar informações que estabeleçam eficientemente uma ligação, tem-se um efeito de inverossimilhança. Em geral, o que acontece a partir daí pode depender muito, mas a reação mais comum é desdenhar do interlocutor por seu “pouco estudo” a respeito do fenômeno. A partir daí, vence a verossimilhança quem tiver ao seu lado as fontes mais credíveis socialmente e não necessariamente as melhores ou mais rigorosas sobre o tema.
Na opinião pública, o tipo de discurso predominante é o retórico, que por definição carrega a força de legitimidade da verossimilhança como principal critério de veracidade. Quanto mais indiferente à natureza retórica da opinião pública, mais se vai alargando a distância entre os discursos e se impossibilitando o diálogo. O resultado desse processo é obviamente um aprofundamento do que chamamos de “polarização”, uma palavra que tem vários significados, a depender de quem usa, mas que de maneira geral significa simplesmente falta de comunicação.
Quando dois grupos ou duas pessoas não comungam dos mesmos códigos, tem-se um distanciamento progressivo e cujo único resultado possível é o enfrentamento físico na falta de quaisquer outras formas de diálogo. Este problema da linguagem foi referido por Rosenstock-Huessy no célebre A Origem da Linguagem, em que põe a necessidade da submissão à verdadeira linguagem como único meio de alcançar uma comunicação real. Não é isso o que vemos atualmente.
Outra fonte de importante apontamento sobre o fenômeno da generalização e culpa podem ser René Girard, com seu bode expiatório, mas principalmente Noica, nas “Seis doenças do espírito contemporâneo”, no qual uma delas, a sede de geral, que acometeu escritores como Tolstoi, demonstra a força das grandes obras na mente de toda uma geração de intelectuais que se sucedem em busca das mesmas coisas, terminando muitas vezes em influenciar doutrinas dogmáticas e fechadas com as quais as gerações futuras irão apenas receber estímulos, traduzidos em sentimentos e emoções, construídos a partir de seus sonhos mais perturbadores.
Obviamente, a culpa genérica nunca fica restrita ao plano abstrato de onde surge. Ela migra rapidamente, pois esta é a sua natureza, para o mundo dos atos e pessoas reais, vitimando e escolhendo grupos e indivíduos reais, punindo-os pelo suposto pertencimento ao grupo de fatos, ao sentimento generalizado de massas raivosas, como verdadeiro bode expiatório do ódio contra aquele princípio genérico e abstrato.