Editores de esquerda estão vencendo a queda de braço pelo controle da verdade na enciclopédia virtual Wikipedia, criando verdadeiras peças de desinformação amparados em fontes de pesquisa que trazem o mesmo objetivo de conter o crescimento das críticas à esquerda. Recentemente, descobrimos que o verbete “marxismo cultural” é definido pela plataforma como “uma teoria da conspiração antissemita de extrema-direita que reivindica o marxismo ocidental como a base de alegados esforços académicos e intelectuais contínuos para subverter a cultura ocidental“. Para rotular críticos como antissemitas, o autor do texto faz do Wikipedia um panfleto revisionista da história sob a forma da omissão seletiva.
Mas como essa distorção foi possível?
Trata-se de uma confusão proposital que se atém apenas ao fenômeno norte-americano, cujos expoentes mais famosos são os intelectuais judeus da Escola de Frankfurt, para associar toda denúncia do fenômeno a grupos supremacistas brancos e antissemitas, o que só foi possível colocando para debaixo do tapete todo o restante das etapas, autores e movimentos por não coincidirem com a tese da “teoria conspiratória antissemita”.
Depois de rotular dessa forma, o autor simplesmente sentencia que: “a análise académica da teoria da conspiração concluiu que esta não tem, de facto, nenhuma fundamentação”. Depois deste “porque sim”, segue-se uma série de ilações referenciadas exclusivamente por bibliografia de esquerda e cuja seletividade expõe uma clara intenção de distorção do fenômeno. As duas fontes usadas para dar peso a essa afirmação alinham-se, direta e indiretamente, a grupos e intelectuais assumidamente continuadores da Teoria Crítica, da Escola de Frankfurt.
O verbete da Wiki é refutado pelo próprio texto, repleto de chavões confirmando o forte poder cultural que a esquerda deseja utilizar contra seus críticos ao classificá-los pejorativamente amparados em truques de verossimilhança retórica. Afinal, embora o termo marxismo cultural possa carecer de exatidão e tenha se tornado um chavão em setores políticos da direita nos últimos anos, isso não refuta a existência da corrente marxista mais atuante da atualidade.
Para amparar a tese (esta sim conspiratória) de que a mera evocação do termo reverencia teses antissemitas, o autor, ou autores, dá relevância ao fato de que a grande maioria dos intelectuais da Escola de Frankfurt eram judeus. O autor maliciosamente escolheu falar dos intelectuais alemães porque são judeus, para amparar a tese do antissemitismo. Ele só esqueceu propositadamente de Antonio Gramsci, Althusser, Engels e tantos outros, verdadeiros antecedentes da Teoria Crítica. Se Gramsci pudesse ser classificado como judeu certamente não teria sido esquecido para os fins a que o texto se prestou. A desculpa para tal esquecimento é o fato de que a “teoria conspiratória” foi difundida nos EUA, onde o italiano não teve tanta influência. No entanto, até isso pode ser duvidoso, considerando a influência do italiano em nomes de especial poder intelectual nos EUA e Reino Unido, como Stuart Hall, entre outros.
Afinal, é consenso entre intelectuais marxistas que a maioria dos movimentos heterodoxos lançados, e muito bem adaptados à conjuntura, foram inspirados no anseio generalizado entre intelectuais marxistas ocidentais de fugir ou romper com o dogmatismo stalinista que estava pegando mal em todo o mundo. É possível dizer que alternativas culturalistas estiveram presentes no marxismo desde as primeiras décadas do horror soviético. Tanto a escola de Frankfurt quanto Gramsci, Althusser e tantos outros, representam exatamente essas vertentes que valorizavam o amálgama entre ideologia e cultura como forma de libertação intelectual e cultural da mera reprodução ideológica panfletária.
Ainda assim, o melhor resumo da aplicação de todas as representações dessa “libertação” estão sintetizados nas palestras do ex-agente soviético Yuri Bezmenov, tratado como peça de desinformação ou manipulação justamente por não deixar dúvidas e meios de refutação de uma praxis marxista que está inscrita na ideologia, como veremos, desde a sua origem.
O marxismo cultural de Antonio Gramsci e os frankfurtianos
Embora a vertente culturalista do marxismo seja quase hegemônica há muito tempo no Brasil e na América Latina, há cerca de 7 anos surtiu no Brasil uma entidade chamada International Gramsci Society, que faz simpósios e reuniões, análises de conjuntura profunda e revisões históricas que mostra o poder e a permanência do pensamento de Gramsci no Brasil e no mundo.
As semelhanças entre frankfurtianos e gramscianos são precisamente no foco da cultura como campo de batalha que, como veremos, encontra-se muito bem delineado e declarado em todo o conteúdo marxista desde sua origem.
Tanto Ambos Gramsci quanto a Escola de Frankfurt criticaram a cultura dominante como um meio de controle social. Eles argumentavam que a cultura popular, a mídia e a educação foram usados para manter o status quo e impedir a transformação social. Isso nos leva ao conceito gramscista de “hegemonia cultural”, que refere-se ao controle da classe dominante sobre a cultura e a ideologia. Da mesma forma, a Escola de Frankfurt argumentou que a cultura dominante molda as ideias e valores das pessoas e é usada como uma forma de controle social.
Tanto Gramsci quanto a Escola de Frankfurt enfatizaram a importância da cultura na transformação social. Eles argumentaram que a cultura tem um papel fundamental na formação das ideias e valores das pessoas, e que a mudança social só pode ocorrer através da mudança cultural.
Ambos também criticaram o positivismo e o reducionismo determinista do marxismo ortodoxo. Eles argumentaram que a transformação social não poderia ser alcançada simplesmente através de uma revolução econômica, mas exigia uma mudança na cultura e nas ideias das pessoas.
Papel dos intelectuais: Gramsci e a Escola de Frankfurt também enfatizaram o papel dos intelectuais na transformação social. Eles argumentaram que os intelectuais têm um papel fundamental na formação das ideias e valores das pessoas e que devem se engajar ativamente na luta pela mudança social.
Embora o estudo de Gramsci tenha estado presente em países da América Latina, especialmente a Argentina, desde meados do século passado, a recuperação do pensamento de Gramsci para os ingleses, por parte de autores como Peter D. Thomas, tenta apresenta-lo como uma alternativa aos dogmatismos tanto do trotskismo como do stalinismo, e inclui as lições da Terceira Internacional e a luta contra sua burocratização, luta essa encabeçada por Leon Trotsky, assim como as elaborações teórico-políticas e estratégias do fundados da IV Internacional.
De acordo com o Celso Frederico, professor aposentado e sênior da ECA-USP, autor de Ensaios sobre marxismo e cultura,
No campo marxista, a relação entre cultura e ideologia será o divisor de águas que irá separar os discípulos de Gramsci dos de Althusser
Na Inglaterra, Stuart Hall teve papel importantíssimo na adaptação de Gramsci para o mundo anglo-saxão.
Hall abandonou o referencial classista, decretando o fim das “solidariedades tradicionais”, preferindo falar sobre outras formas de identificação baseadas no gênero e etnia para, finalmente, remeter o tema da identidade para o indivíduo, o sujeito nômade, flutuante, híbrido, portador de influências díspares.
A necessidade marxista da subversão cultural, portanto, está intimamente ligada ao seu desenvolvimento. No entanto, isso é precisamente porque estava já em sua origem.
Engels, o pai do feminismo e da Ideologia de Gênero?
Em sua obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” (1884), Fredrich Engels argumenta que a família monogâmica é uma construção social que se desenvolveu como resultado da propriedade privada e da necessidade de transferir a propriedade de geração em geração. Ele descreve como a família, sob o capitalismo, se tornou uma instituição opressiva para as mulheres, que são forçadas a permanecer em casa e cuidar dos filhos, enquanto os homens trabalham fora de casa e detêm o poder econômico.
Em relação à igreja, Engels a via como uma instituição que serve aos interesses da classe dominante. Em sua obra “Anti-Dühring” (1878), ele argumenta que a igreja existe para manter a opressão da classe dominante sobre as classes trabalhadoras, encorajando a submissão e a obediência às autoridades. Engels via a religião como uma ilusão que obscurece a realidade da luta de classes e impede que as pessoas vejam o mundo de forma objetiva.
O próximo passo do autor do Wikipedia talvez seja evocar o fato de que Marx e Engels eram judeus para poder chamar de nazista todos os seus críticos, o que equivale precisamente a jogá-los na cadeia para, com isso, banir para sempre os críticos da esquerda da opinião pública.
Há uma densa bibliografia sobre o tema, que foi solenemente ignorada no verbete do Wikipedia, transformado em arma de propaganda revisionista contra críticos da esquerda que denunciam os planos abertos e declarados ao longo de todos os debates marxistas dos últimos 100 anos. O autor chama seus leitores de idiotas e ignorantes, mas o que o dá a ousadia necessária para este tipo de manipulação é a certeza de que suas teses serão aceitas bovinamente por jornalistas.
No livro provocador Acredite, estou mentindo, o jornalista Ryan Holiday expõe a sua descoberta de que o Wikipedia é a fonte principal das redações jornalísticas, de onde vêm os rótulos e estereótipos sociais. No Brasil, por exemplo, nos últimos anos tem sido o conteúdo dos jornais responsável por decisões e a criação de inquéritos judiciais contra todos os tipos e formas de críticas feitas à esquerda e seus aparelhos ideológicos.
Holiday explica como os Press Releases podem ser usados para serem citados, palavra por palavra, nas notícias de veículos da grande mídia. Ele conta como é comum o uso de alterações no conteúdo de verbetes da Wikipedia para exagerar uma verdade ou plantar um fato na mídia. Depois de alterado ou construído, uma vez que algum site ou jornalista escreva sobre o assunto com base na informação, a matéria que menciona o fato inventado na Wikipedia é adicionada como a fonte daquela informação falsa que foi plantada e ela se torna verdade no mundo digital.
Como verdadeiro monumento ao obscurantismo e revisionismo históricos, o verbete do Wikipedia se dirige ao leitor médio, em geral sem nenhum conhecimento do que seja o marxismo, grande parte da população e até mesmo de setores da direita que repetem automaticamente chavões como forma de identitarismo político, o que abastece e alimenta o tipo de desinformação de editores do wikipedia acostumados a distorcer bibliografias.
Algumas referências bibliográficas esquecidas pelo Wikipedia:
Gramsci, A. (1971). Selections from the Prison Notebooks. International Publishers.
Jay, M. (1973). A imaginação dialética: a história da Escola de Frankfurt e o Instituto de Pesquisas Sociais.1923-1950. Contraponto Editora, 2015
Laclau, Mouffe. Hegemonia e estratégia socialista: por uma politica democrática radical. Cnpq, 2015.
Held, D. (1980). Introduction to Critical Theory: Horkheimer to Habermas. University of California Press.
Buck-Morss, S. (1977). The Origin of Negative Dialectics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin, and the Frankfurt Institute. Free Association Books.
Episódio do Brasil Paralelo sobre o Marxismo Cultural