Sara Andrade
A pior coisa do mundo é chamar o mal de bem e o bem de mal. Não há absolutamente nada que supere isso em malícia e corrupção. Nada: é por isso que o diabo sempre foi representado por uma serpente. Porque as cobras têm uma particularidade curiosa: suas línguas são bifurcadas, e, portanto, duplas.
E a língua dupla, tão ardilosa e pertinente para este primeiro de abril, é tão capaz de fazer parecer repugnantes as coisas que são belas, como também –e esta é a sua especialidade– é bem apta a transmutar em bonitas, e aceitáveis, aquelas coisas mais feias e pavorosas.
Assim é a Campanha da Fraternidade, lançada todos os anos pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, durante a quaresma. Assim também é a própria CNBB: o grupo oficial dos bispos em que os mais sérios vivem a tecer críticas, ou então preferem manter distância: a conferência é, ela mesma, uma espécie de língua bifurcada dentro da estrutura Igreja, suportada com não-sei-qual paciência por Nosso Senhor.
Só mesmo uma paciência divina para suportar o braço político-brejeiro infestado de anticatolicismo atacando a religião de dentro para fora, sem que saibamos como reagir: porque se a Teologia da Libertação é o plano de fundo que nutre a tal Campanha da Fraternidade, essa última nada mais é que seu panfletinho anual.
A Teologia da Libertação, ilustre desconhecida, foi a maior pedra no sapato vermelho do papa João Paulo II no tempo do seu pontificado: no fim das contas, era mais uma invenção de gringo testada no território da América Latina, mas apresentada como fruto de um “florescimento natural“.
À época, o papa mandou o cardeal Ratzinger, seu braço direito que um dia seria Bento XVI, para meter as esporas e acabar com a folia: e lá estavam, sob os golpes, os brasileiros Leonardo Boff e Frei Betto. Lembra deles? É mais fácil que você se recorde pela política do que pela religião. Por um partido do que pela Igreja (os figurões são membros fundadores e atuantes do PT). De um comício televisionado do que de uma missa.
Basicamente, a Teologia da Libertação é o modo como teóricos de influência marxista encontraram para vencer a Igreja Católica, a maior muralha contra seus planos de dominação, sem dar na vista que a estavam combatendo. Afinal, que povo religioso receberia de bom grado um discurso abertamente contrário à sua fé? Nenhum: por isso é um plano genial, peçonhento e bifurcado.
A característica principal deste bonde do faz-de-conta é a confusão dos discursos: esta pseudoteologia causa na Igreja um decaimento do sentido espiritual e uma planificação das coisas elevadas. Por exemplo: Jesus Cristo não é Deus Filho, mas um mero libertador social. Quase um Che Guevara hippie da Palestina.
O pior resultado é a orfandade à qual os devotos foram entregues, desde que, nos anos 60, este câncer se espalhou no Brasil: o pobre sujeito entra na Igreja para elevar o espírito a Deus, ter a alma consolada em suas tristezas, mas, quando o padre finalmente tem a chance de falar intimamente ao seu coração, em vez disso, escolhe entoar um afervorado discurso sobre a reforma agrária.
Ora, quem vai à igreja para saber de reforma não-sei-das-quantas? Do movimento não-sei-do-quê? Nem eu, nem você: sobra ao coitado deixar o templo pior do que entrara, sem o consolo que buscava, já que o encarregado em ser a voz do próprio Deus preferiu ser a voz do próprio Marx. E nem só de Marx vive o homem… (Depois de 100 milhões de vítimas, melhor seria dizer que nem só de Marx morre o homem, mas de toda a fuleragem que sai da boca dos seus).
Ademais, a CNBB tem sido desmascarada nos últimos anos, como de fato deveria ser. E em resposta, nenhum pedido de desculpas ou sinal de “mão na consciência“. Pelo contrário: fomos apregoados com uma bifurcação maior neste ano. Com uma confusão linguística mais sutil e uma capacidade de fantasiar ideologias diabólicas com uma roupinhas de sacristão.
Em tudo poderia parecer, no texto-base deste ano, que a Campanha da Fraternidade finalmente tomou jeito: com o tema “Fraternidade e Fome” (que é aparentemente isento), chegaram a fazer as pazes com seus carrascos, citando ambos Bento XVI e João Paulo II.
Também tocaram nas túnicas sagradas de Santo Tomás e São Jerônimo, dois dos maiores doutores da tradição católica (como se tivessem sido curados repentinamente da alergia crônica que sempre tiveram pelo tradicionalismo). Termos como “fome de céu“, “realidades eternas” e “plenitude da eternidade” apareceram junto a um incomum destaque à Eucaristia à Doutrina Social da Igreja. Então, agora, católicos? Quase…
O texto foi montado como se monta um sanduíche: primeiro, duas fatias de catolicismo tradicional mantendo uma boa aparência nas extremidades. Depois, quando se prova o recheio… ah, este guarda toda a malandragem da peça. Deliciosamente descarada, esta parte do “livrinho” mais parece um panfleto de apologia ao Partido dos Trabalhadores do que qualquer outra coisa.
O documento se rende às ditas “normas internacionais“, que por alguma razão deveríamos seguir com afinco, como se um bocado desses “países exemplos” não tivessem se revelado como um bando de lunáticos que terminaram em situações muito piores do que as que vivemos no Brasil: França e Alemanha, para princípio de conversa. É a velha pagação de vassalagem internacional que a esquerda considera de uma chiqueza ímpar.
Com pose de iluminação divina, marcaram presença os já esperados enaltecimentos do “Fome Zero“, do movimento dos Sem-Terra, de uma inacreditável sugestão de “espiritualidade ecológica” e do fortalecimento do poder dos Estados (enquanto o mesmo texto os culpa de atitudes desumanas). Chegam ao ponto de afirmar que precisamos de um órgão especializado em controlar o que comemos: talvez nos deem também cadeirinhas de papinha, onde antes seremos servidos de gafanhotos fritos da Patagônia do que de uma boa… picanha bovina.
A narrativa ainda jura de pés juntos que o Brasil estaria no caminho do bem, rumo à terra prometida de além do horizonte, até isto ser rompido abruptamente em 2016… e tudo o que veio depois teria sido apenas uma sucessão de “desmontes” desastrosos: deixando-nos numa espécie triste de paraíso perdido. Vocês bem se lembram do que aconteceu em 2016? Ora, o górpe. As pedaladas que descambaram Dilma Rousseff da rampa do Planalto.
E por falar em pedaladas, a mente me leva agora à infância no interior, delimitada pela redoma da Diocese de Goiás (na antiga cidade de Goiás). Entre anéis de coco, sandálias Birken surradas, dancinhas Alceu Valênticas em procissões de entrada e minhas camisetas vermelhas da CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), lembrei-me de uma breguice em particular que eu já detectava mesmo com uma mente infantil:
Os eventos gerais “dos excluídos“, normalmente liderados por padres. Pode ser qualquer coisa, em suas criatividades aparentemente infinitas: passeata dos excluídos, cavalgada dos excluídos, gincana nos excluídos; só que numa dessas ocasiões, lembro-me de convocarem o “povo de Deus” para o imperdível “pedal dos excluídos“.
Que maçada! Fiquei imaginando o quanto isto era, na verdade, estigmatizante, insensível e desrespeitoso: com qual facilidade eles não chegavam frente às pessoas, normalmente diante dos mais pobres, e os convidariam para o seu suposto evento ideal… “o pedal dos excluídos“? O “forró dos marginaliziados“, que seja?
Eu costumava ensaiar que um dia eu poderia ser miserável o quanto fosse… se alguém me convidasse para a pedalada dos excluídos, especialmente preparada para o tipo de gente da minha pobreza, eu mandaria às cucuias com muito gosto e sem enrolação. Mandaria pastar, à meu estilo: “Bicicletada é a minha monark na sua cabeça oca!”.
Ora, o pobre tem honra! E com que facilidade eles reduzem as pessoas a meras caracterizações grosseiras: “marginalizado“. Que feio! Vi a mesma coisa acontecer, anos depois, na época da faculdade, direto da boca tão encarecida dos militantes fraternos. Esta prática só persiste porque existe uma instrumentalização das pessoas e de suas condições de vida em prol dos objetivos ideológicos do movimento político: então o pobre não é mais Seu José, um homem com dignidade. É só “marginalizado” sem nome.
Já para o pedantismo terminológico do texto da Campanha da Fraternidade, com seus pluralismos típicos, veneração de títulos intermináveis que não significam coisa alguma identificável, sentimentalismos baratos, afetações exageradas e um pieguismo incurável, só para estas coisas eu sinto que devo dedicar um texto inteiro.
“No entanto, os tempos e as realidades mudam e é preciso outra vez confrontarmo-nos com o Evangelho de Jesus Cristo frente a este grande desafio que permanece gritante em nossa sociedade, a fome“: boa conclusão de redação do Enem, não é mesmo? Feita, normalmente, por adolescentes que passaram o ano todo decorando a fórmula.
Mas isso não pega com o povão brasileiro, ainda nutrido de senso comum. Palavras vazias, isentas de verdade e insuportavelmente forçadas ficam rodando em mão dupla no mesmo camarote abafado, entre os ideólogos e os grupinhos seletos de militantes que formam uma minoria barulhenta e organizada. “Não compramos, porque isso não vende!“, respondeu-me a atendente da paróquia daquela mesma cidadezinha de infância, quanto tentei, há dias, comprar o texto-base para ler.
Tudo, para que no Domingo de Ramos a Campanha da Fraternidade faça uma coleta nacional nas missas do país, com 40% dos fundos destinados aos projetos que eles bem decidirem patrocinar. Veja bem: parece cobra, rasteja como cobra, tem língua de cobra… mas ainda há quem prefira morder a maçã para abrir os olhos.