O filósofo Olavo de Carvalho falou e escreveu muitas vezes sobre os militares brasileiros, nem sempre de maneira educada. De maneira geral, suas falas resumiram a situação dos militares frente aos desafios nacionais.
Em um de seus textos, intitulado Um discurso, publicado em 2015, o professor se refere à crise de valores e à postura dos militares frente à própria consciência dessa crise. Ele se referiu a um discurso específico, de um general bem específico, que já teve grande participação na ativa.
“Num de seus últimos discursos, o comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas, afirmou que as Forças Armadas estão conscientes da atual ‘derrocada dos valores’, mas que sua missão é preservar acima de tudo a ‘estabilidade’ e a ‘legalidade’.”, escreve Olavo.
Em um artigo demolidor, o professor descreve e critica, com o realismo que sempre lhe foi particular, o estado deplorável e vergonhoso das nossas Forças Armadas. Diante dessa admissão de conhecimento da situação, por parte de Villas-Boas, a consequência é óbvia e automática.
Continua ele, no artigo:
“Ora, se o poder instituído é ele próprio o agente principal da derrubada dos valores – coisa que ninguém mais pode razoavelmente negar –, preservar sua estabilidade é garantir-lhe os meios de continuar a demolir esses valores tranqüilamente, imperturbavelmente, impunemente, sob a proteção de fuzis, tanques e navios de guerra pagos com o dinheiro do povo que ele espolia e engana. É a estabilidade da destruição.
Não creio que essa fosse a intenção subjetiva do general, mas é o sentido objetivo que suas palavras adquirem no contexto real. Lido nessa perspectiva, seu discurso é mais uma amostra do emocionalismo psitacídeo em que se transformou a fala brasileira nas últimas décadas, no qual as palavras valem pelas nuances emotivas associadas diretamente ao seu significado dicionarizado, independentemente dos fatos e coisas a que fingem aludir. Em termos de linguística, o significado usurpa o espaço do referente, que desaparece nas brumas da inexistência.
Quando à segunda expressão, “legalidade”, ela não tem nada a ver com a ordem legal substantiva, já destruída há tempos e que só subsiste na função de referente suprimido: ela visa apenas a marcar a diferença entre os militares de hoje e os de 1964, exigência indispensável do código “politicamente correto” contra o qual o general havia acabado de resmungar umas palavrinhas desprovidas de qualquer efeito objetivo até mesmo sobre o seu próprio discurso.
O general Villas-Boas não é nenhum imbecil e com certeza não é um homem desonesto. O que caracteriza o presente estado de coisas é precisamente que até os homens honestos e inteligentes começam a falar na linguagem dos cretinos e cretinizadores, pelo simples fato de que já não há outra disponível.
A finalidade dessa linguagem é construir aquilo que Robert Musil e, na esteira dele, Eric Voegelin, chamavam de “Segunda Realidade”, uma espécie de mundo paralelo feito inteiramente de significados dicionarizados e sem nenhum fato ou coisa dentro. Uma vez removida para a Segunda Realidade, a mente humana já não serve como instrumento de orientação na realidade genuína, mas conserva apenas duas funções essenciais: o engano e o auto-engano, que passam a vigorar como “ações políticas”, com resultados previsivelmente bem distintos das intenções alegadas.
Os dois milhões de manifestantes que foram às ruas protestar em março e setembro, com o apoio de 93% da população, diziam e berravam da maneira mais clara os nomes dos inimigos contra os quais se voltavam: PT e Foro de São Paulo. Centenas de videos do youtube confirmam isso de maneira incontestável.
A Constituição Brasileira, Título I, Art. 1o., alínea V, parágrafo único, estabelece: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.” Que significa esse “ou diretamente”? Significa que os representantes eleitos, ocupantes do Executivo e do Legislativo, são um “poder instituído”, o qual, por definição, não se sobrepõe jamais ao “poder instituinte”, a massa popular que o criou e que conserva o direito de suprimi-lo a qualquer momento pela sua ação direta.
Como, dos 7% que ainda apoiavam o governo àquela altura, 6% o consideravam nada mais que “regular”, o apoio substantivo de que ele desfrutava era de apenas um por cento. Nunca um governo foi rejeitado de maneira tão geral e avassaladora. Com ele, eram rejeitados também os ajudantes diretos e indiretos que o mantinham no poder contra a vontade do povo: congressistas omissos, juízes cúmplices, mídia chapa-branca.
O povo, em suma, voltava-se frontalmente contra o “sistema” como um todo, sabendo-o aparelhado a serviço do esquema comunolarápio e do Foro de São Paulo, a maior organização subversiva e criminosa que já existiu na América Latina, empenhada em colocar o roubo, o homicídio, o narcotráfico e a mentira em doses oceânicas a serviço da ambição de poder total, não só sobre o país, mas sobre o continente.
O termo “estabilidade” designa uma qualidade, não uma substância. Estabilidade é sempre de alguma coisa, isto é, de uma ordem ou sistema. Ora, nas passeatas de março e setembro havia claramente duas ordens ou sistemas em confronto.
De um lado, a ordem normal e constitucional, em que a maioria absoluta da nação, manifestando sua vontade de maneira direta e inequívoca, exigia o fim das entidades criminosas, PT e Foro de São Paulo. Do outro lado, o sistema federal de exploração, manipulação, roubo e auto-engrandecimento insano. De qual dessas duas ordens o general desejaria “manter a estabilidade”?
Ele não esclareceu esse ponto, que é a substância mesma do assunto nominal do seu discurso. Preferiu o adjetivo sem substantivo, como aliás é de praxe no Brasil de hoje. Acredita piamente ter dito alguma coisa porque a sua linguagem, coincidindo com os usos gerais do dia, soa bem aos seus próprios ouvidos e aos de todos aqueles que não precisam da realidade, só de palavras.