A volta da censura sob o disfarce de “combate à desinformação” já é um fenômeno estabelecido entre governos democráticos desde antes da pandemia. Os dados sobre os efeitos desse processo ainda são escassos, mas levantamentos importantes feitos por grupos nem sempre insuspeitos, podem ajudar no entendimento e enfrentamento do problema do inverno democrático sob o qual vivemos.
Em 2022, a prisão de jornalistas por exercer o seu trabalho bateu novo recorde e mantém a tendência de crescimento dos anos anteriores, demonstrando um processo de queda da liberdade de expressão e de imprensa em todo o mundo. Um dos fatores que tem levado à prisão e impedimento de jornalistas tem sido as frequentes campanhas contra a desinformação ou fake news promovidas por diversos países, tendo virado uma espécie de moda viral entre governos e seus órgãos reguladores.
Propostas de aumento da regulação sob a comunicação apresentam-se com a justificativa do crescimento das notícias falsas, uma espécie de fenômeno social em ascensão que vem cada vez mais ganhando traços de paranoia oficial e institucional. O tema tem pautado grande parte dos debates em países ocidentais desde que a interatividade das redes sociais começou a abalar poderes constituídos e noções de autoridade institucionalizadas. Se mesmo em democracias a acusação de fake news se tornou endêmica e tem levado a questionamentos sobre a liberdade de imprensa, em países ditatoriais ou autoritários esse discurso tem sido facilmente usado para justificar a perseguição e censura de opositores políticos.
De acordo com um levantamento feito pela ONG de Nova York, Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), no início de dezembro, havia 363 repórteres privados de liberdade (20% a mais que no ano anterior) no planeta, 39 deles sob a acusação de propagar notícias falsas. Os cinco líderes no ranking de encarceramento de profissionais de imprensa são Irã, China, Mianmar, Turquia e Belarus.
Mesmo antes da pandemia, agências de fiscalização começaram a despontar como legítimos verificadores da veracidade das notícias. Sua história remonta à primeira década do século, um processo de desenvolvimento relatado com detalhes em meu livro Fake Check: a máfia por trás da censura (2021).
Durante a pandemia, essa vigilância levou sites e jornalistas independentes a serem ainda mais censurados e não foram poucos os que tiveram seus perfis bloqueados por ordem judicial. Entre as acusações estavam dúvidas sobre o isolamento social proposto igualmente em todo o mundo, o uso arbitrário das máscaras faciais e a mera menção a medicamentos que estavam sendo pesquisados para tratamento da covid-19, mas que eram vistos como ameaça por não contarem com evidências científicas suficientes. Essa caçada aos “negacionistas”, como foram chamados, provocou intensas suspeitas sobre o conflito de interesses de grandes veículos com a indústria farmacêutica, que diante de uma doença nova tinha especial interesse em desenvolver novas drogas, além da própria demanda pelas vacinas, vistas como única salvação para o problema. Ao longo da pandemia, a mera citação de eventos adversos admitidos pelas farmacêuticas produtoras das vacinas era classificado como fake news e sites, como o próprio Estudos Nacionais, tiveram seu trabalho inviabilizado devido à rotulação algorítmica, que reduzia o alcance e punia publicações nas redes sociais.
Mas se mesmo antes da pandemia a caça às fake news já havia motivado a expansão dos gabinetes vigilantes, as agências de fact-checking, após o término do período mais crítico da doença isso também se verificou. A guerra na Ucrânia elevou o patamar de vigilância, muito embora tivesse se direcionado a aspectos diversos e lugares distintos.
Em 7 de março de 2023, a plataforma do Conselho da Europa para promover a proteção do jornalismo e a segurança dos jornalistas publicou “Guerra na Europa e a luta pelo direito de relatar ”, um relatório anual que forneceu acompanhamento instantâneo sobre a situação da liberdade de imprensa e de jornalistas quanto à sua segurança na Europa, incluindo recomendações para ação em meio à cobertura da guerra. O assédio ideológico da Rússia, por meio de canais de desinformação clássicos, assim como os interesses geopolíticos ocidentais no conflito, pesaram para que algumas informações ou versões não pudessem ser dadas. Os países mais diretamente associados ao conflito registraram aumento da perseguição a jornalistas, conforme apontou o relatório.
Países conhecidos por suas estruturas repressivas e basearem suas decisões em ideologias mais fechadas apresentaram diversos episódios de perseguição a jornalistas. O Brasil tem caminhado na mesma direção após a subida ao poder de um presidente alinhado ideologicamente com ditaduras da América Latina. Durante o governo de Jair Bolsonaro, o assédio jurídico que também tem se tornado endêmico em alguns países, somou-se à perseguição política pura e simples. Enquanto a ditadura da Nicarágua possui mais de 200 presos políticos, o Brasil, logo após a posse de Lula, manteve durante os primeiros meses mais de mil presos políticos acusados simplesmente de “ameaçar a democracia” ao promoverem um protesto contra o governo eleito sob suspeitas eleitorais.
Recentemente, o escândalo dos “twitter files”, exposto pelo bilionário Elon Musk, mostrou que a plataforma atuou na censura contra sites independentes que questionavam as medidas tomadas na pandemia através de um conluio com agências do governo americano.
Recentemente, documentos revelados mostram que o Twitter possuía um sistema chamado Flashpoint que era utilizado por diversas entidades governamentais, incluindo o FBI, DHS, CISA, HHS e USDT, para denunciar contas que deveriam ser censuradas. Até mesmo o Departamento de Polícia de Minneapolis tinha acesso ao sistema de denúncias. As entidades governamentais enviavam planilhas com centenas ou milhares de contas de usuários para que fossem revisadas pelo sistema.
De acordo com um dos e-mails revelados, o FBI alegou ter identificado 185 contas robôs “conhecidas ou suspeitas” ligadas à Venezuela e Cuba, que estariam coordenando um comportamento inautêntico na plataforma para amplificar a narrativa russa de “neonazismo” na Ucrânia, alegando que isso foi facilitado por um golpe de estado em 2014 arquitetado por Joe Biden, uma das razões usadas publicamente por Vladimir Putin para justificar a invasão do país. Entre as cinco contas apontadas como principais influenciadores, três já foram banidas, enquanto uma pertence a um influenciador chavista com 68 mil seguidores e outra é de uma mulher com 21 mil seguidores que defende o regime de Ortega na Nicarágua.
A paranoia tecnológica e institucional das fake news vem abastecendo de narrativas os países que desejam perseguir e censurar, dando fundamentação para leis que utilizam o combate às fake news para amplificar a censura contra opositores. Vejamos alguns exemplos.
Nicarágua
Em outubro de 2020, o ditador da Nicarágua Daniel Ortega, sancionou a Lei Especial sobre Crimes Cibernéticos, criminalizando o conteúdo considerado falso pelo governo. A chamada “Lei da Mordaça” determina pena de um a dez anos de prisão para jornalistas e cidadãos comuns que criticam a ditadura na mídia e nas redes sociais. De acordo com a legislação, é o próprio governo quem define se uma informação publicada é falsa. O dossiê é usado por Ortega para desacreditar reportagens investigativas, bem como denúncias de violação de direitos humanos cometidas pelo regime. Desde 2021, os chamados “crimes de ódio” são puníveis com prisão perpétua no país. Esta foi a acusação sofrida pelo bispo Rolando Álvarez, quando foi preso em agosto do ano passado. “Lembremo-nos de que o ódio é um crime, que todo crime é um crime e um crime que deve ser investigado”, disse Rosario Murillo, casada com Ortega e sua adjunta.
Acusado de “trair a pátria” , o bispo foi condenado no início deste ano a 26 anos de prisão, por “conspiração para minar a integridade nacional e manifestação de notícias falsas por meio de tecnologias de informação e comunicação em detrimento do Estado e da sociedade nicaraguense”.
Venezuela
Em 2005, a Venezuela acrescentou o artigo 297-A ao Código Penal, que pune com prisão de dois a cinco anos qualquer pessoa que, por meio de informações falsas veiculadas por qualquer meio, cause pânico na comunidade ou mantenha-a em angústia. Na prática, a legislação foi usada para embasar a prisão de jornalistas que publicaram informações sobre a Covid-19 durante a pandemia no país.
Durante a campanha eleitoral de 2021, o ministro das Comunicações da Venezuela, Freddy Ñáñez, informou que o governo planejava vigiar as redes sociais para “garantir a liberdade de expressão”. Segundo ele, garantir a liberdade de pensamento não se limita a dar voz e visibilidade às diferentes propostas, discursos e opções, mas também envolve a veracidade e a oportunidade de a informação chegar ao povo venezuelano.
China
Na China, o Partido Comunista controla os meios de comunicação e utiliza a censura para manter o controle da população. O país tem investido em tecnologias de vigilância para monitorar a atividade online dos cidadãos, reprimindo aqueles que criticam o governo e espalham notícias consideradas “falsas”. A política de controle de notícias falsas na China é conhecida como a “lei de informações na internet”, que foi implementada em 2017 para combater a disseminação de informações falsas e prejudiciais online.
De acordo com a lei, todas as empresas de internet e provedores de serviços de conteúdo devem monitorar ativamente as informações que são postadas em suas plataformas e remover qualquer conteúdo que seja considerado ilegal ou prejudicial. As empresas também devem relatar qualquer atividade suspeita às autoridades relevantes.
As autoridades chinesas também têm um sistema de monitoramento e censura em larga escala que é conhecido como o “Great Firewall”. O objetivo do Great Firewall é bloquear o acesso a sites e informações que o governo considera prejudiciais ou contrários aos interesses nacionais. Além disso, o governo chinês tem uma equipe dedicada a monitorar as mídias sociais e outras plataformas online em busca de informações falsas e conteúdo prejudicial. As pessoas que compartilham informações falsas podem enfrentar sérias consequências, incluindo multas, prisão ou até mesmo a perda de emprego.
Rússia
Outro exemplo é a Rússia, onde o presidente Vladimir Putin tem usado a desinformação como uma arma política para influenciar eleições e manipular a opinião pública. O governo russo tem controlado a mídia e perseguido jornalistas críticos ao regime, alegando estar combatendo a disseminação de informações falsas. Jornais e sites independentes tem sido fechados pela forma como fazem a cobertura da guerra na Ucrânia. Os jornalistas são proibidos de usar termos como guerra ou invasão ao se referirem ao conflito, mas devem usar termos sugeridos pelo governo, como “operação militar especial”.
Mas já em 2019, a Rússia aprovou uma lei que obriga os sites de mídia social a remover conteúdo considerado extremista ou prejudicial ao Estado. A lei também permite que as autoridades russas bloqueiem o acesso a sites estrangeiros que não cumpram com as regras estabelecidas.
A Rússia tem exercido um forte controle sobre a mídia do país, com leis que limitam a liberdade de expressão e a atividade da mídia independente. Os veículos controlados pelo Kremlin são amplamente vistos como meios de propaganda e desinformação do governo em uma tradição que remonta a até mesmo antes do período soviético, quando a polícia secreta do czar investigava possíveis opositores.
Brasil
No Brasil, o uso da desinformação para a perseguição política avança sob três frentes: as agendas internacionais, a esquerda política, agora associada ao governo, e o ativismo judicial.
Desde o governo de Jair Bolsonaro, a narrativa do perigo das fake news tem sido impulsionada inicialmente pelas agências financiadas por entidades filantrópicas, que têm interesses no fomento de determinadas pautas sociais. Elas fiscalizam explicitamente todos os questionamentos a essas agendas. Em um segundo nível, essas agências fornecem aos setores da esquerda política um expediente narrativo e de rotulação contra os seus críticos. Isso dá, em terceiro nível, o fundamento para a ativação de instrumentos jurídicos contra os críticos, identificados como conservadores, de direita ou bolsonaristas. O principal expediente para a perseguição desses grupos é a associação a racismo, fascismo, misoginia, homofobia, transfobia e outras narrativas.
Após as iniciativas ocorridas durante o governo anterior, que levaram à criação de inquéritos políticos, o governo petista de Luiz Inácio Lula da Silva, eleito sob suspeitas, usa desse ambiente narrativo para implementar a chamada “regulamentação da comunicação”, também chamada de regulação das redes sociais. Essa iniciativa, que conta com longa trajetória dentro da esquerda política no Brasil, se resume a controlar os meios de comunicação impedindo críticas ou questionamentos a tópicos vistos como dogmas para os grupos envolvidos.
Durante as eleições, a contestação do método e das urnas eletrônicas, foram considerados “desinformação”, embora a razão principal dos questionamentos tenha sido o fato comprovado de que o sistema não possui meios de verificação confiáveis e amplamente transparência, a chamada auditoria pública, garantida pela Constituição. A rotulação dessas críticas e ao levantamento dessas questões como desinformação aprofundou ainda mais a polarização envolvendo o tema, o que em última análise contribuiu para o questionamento não apenas do processo eleitoral como do seu resultado.
Análises e estudos sobre o tema permanecem parciais, como é o caso dos estudos de opinião pública da Fundação Getúlio Vargas, cujo financiamento de entidades interessadas como Open Society, levanta suspeitas e põe em xeque toda a autenticidade das intenções. Em estudo recente, a FGV buscou analisar o debate público classificando as críticas e questionamentos simplesmente como “desinformação”, sem levar em conta razões ou mesmo situações que gerassem essa suposta desinformação sobre o tema.
Considerada uma das principais e mais confiáveis instituições do país, alguns de seus estudos se tornaram exemplo de instrumentalização da ciência estatística por entidades e a transformação dessa estrutura em fundamento para censura e perseguição política.