Muitos analistas buscam causas diversas para explicar a atual cobiça russa pela Ucrânia, alguns afirmando que Putin deseja restaurar o território perdido com a dissolução da União Soviética ou que meramente estaria respondendo às provocações geopolíticas das potências ocidentais. Na verdade, as causas econômicas, militares, políticas e estratégicas geopolíticas concorrem ao lado de utopias vindas de crenças messiânicas anteriores ao século 20, que passaram a ser resgatadas há algum tempo pelo próprio Kremlin. Gary Lachman resgata as doutrinas messiânicas de uma Rússia purificadora do mundo, disseminadas na chamada Era de Prata, período compreendido entre 1890 e 1921. A Era de Prata, assim como utopias ocultistas nascidas no século 19 e movimentos intelectuais alemães, formam uma parte importante das fontes da grande catástrofe totalitária do século seguinte, representada principalmente pelo comunismo soviético e pelo nazismo.
Ironicamente (ou não), a base mística une tanto os atuais proponentes de uma ordem multipolar mundial quanto os globalistas ocidentais e sua espiritualidade nova era. Do tradicionalismo ao antitradicionalismo, da iniciação à contra-iniciação, armas espirituais tiveram um papel importantíssimo na tarefa da revolução permanente no século 20 e é desse resgate que se trata a “missão salvadora” que a Rússia acredita representar.
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Em 2014, em uma reunião anual do principal partido do país, o Rússia Unida, Vladimir Putin recomendou algumas leituras importantes para os seus governadores regionais. Considerando a linha dos livros e o que representam na história russa, o episódio é visto como o principal sinal de ruptura com o Ocidente e resgate de utopias que foram rejeitadas em sua forma original pelo período soviético. Os livros que Putin pediu que seus governadores lessem eram obras de filosofia. Eram livros de ideias sobre a Rússia. Foram três.
Os três pensadores que Putin sugeriu que seus governadores conhecessem eram Vladimir Solovyov, um amigo de Dostoievski e, de acordo com o falecido estudioso russo americano James Scanlan, “o maior e mais influente dos pensadores filosóficos da Rússia”; o segundo foi Nikolai Berdyaev, aristocrático cristão existencial considerado “filósofo da liberdade”. E o terceiro era Ivan Ilyin, um pensador mais político do que Berdyaev ou Solovyov, e cujas idéias para alguns formam uma espécie de “fascismo” russo.
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O que esses autores têm em comum? Eles pertencem à Era de Prata, que foi de alguma maneira destruída ou impedida de existir pela Revolução bolchevique, mais precisamente a partir da década de 1920. Os três escritores foram proibidos durante o período soviético e de alguma maneira Putin estava resgatando algo de anterior à revolução, como uma espécie de busca por remissão dos pecados comunistas. Mas que Rússia era essa que ele estava resgatando e vem sendo resgatada hoje em seu projeto imperial?
Desde o século 19, a Rússia era um país profundamente místico, com uma profusão de seitas gnósticas e esotéricas que encontraram um terreno fértil para se multiplicarem.
O estudioso tradicionalista de religiões, Mircea Eliade, em seu Tratado da história das religiões, criou a distinção entre épocas ligadas a conceitos religiosos. Segundo o seu conceito, conforme sugere Georges Nivat, especialista no mundo russo, o conceito russo de época ou era poderia ser dividido em época utópica e época epiléptica. “A época epiléptica é uma sucessão aleatória de crises que não permite uma visão prospectiva na História. A época utópica está inteiramente direcionada para o fim da História e para a idéia de salvação”, escreve Nivat.
Ao contrário do que se costuma dizer e imaginar, a autoridade da Igreja Ortodoxa sempre foi complicada na Rússia, especialmente nos períodos pré-revolucionários, como se pode observar na obra Os Demônios, de Dostoievski. Na verdade, como mostra Nivat, até mesmo no ambiente religioso a rebelião espiritual e o sectarismo estiveram sempre presentes, tanto em movimentos de conservação, como o dos Velhos Crentes quanto de seitas influenciadas por um tipo de anarquismo religioso, levando tanto ao ateísmo radical quanto à vida eremita. O milenarismo foi, segundo Nivat, um dos aspectos mais constantes da espiritualidade sectária russa. Milenarismo é a crença em uma era messiânica, profetizada. Cristãos milenaristas acreditam que a Segunda Vinda de Jesus Cristo seria manifestada por um império de mil anos, daí o termo milenarismo. Segundo Nivat, o sectarismo milenarista teve um papel importantíssimo para a preparação à revolução.
Os simbolistas russos estavam muito cientes do fenômeno milenarista na Rússia. Aleksándr Blok, estudante ainda, fizera pesquisas sobre a magia popular. Andriêi Biely estava muito interessado em todos os tipos de seitas, estudando-as no interior da Rússia com seu amigo Serguêi Soloviôv, e seu romance A pomba de prata é tanto político quanto místico.
Na busca por origens que justificassem o comunismo, intelectuais como o marxista Bontch-Bruiévitch encontraram a influência das seitas sobre a sociedade russa. Segundo ele, os Bezpopóvtsy – a vertente mais radical dos Velhos Crentes – e os Khlysty foram a expressão de um comunismo primitivo.
“Em 1912, o milenarismo floresceu em Tsarítsyn (hoje, Volgogrado) e lá apareceu uma nova figura chamada Heliódor. Ele era um monge honesto e um feroz propagandista do tchernossótienstvo. Tendo atacado Raspútin, foi exilado em um mosteiro e começou a pregar uma forma de anarquismo delirante. Existia um rumor de que ele seria irmão de Nicolau II (outra característica da psyché social russa é sua tendência para enganar-se e o fato de acalentar o sonho de um vínculo secreto entre o povo e o czar). Arrependeu-se publicamente por ter atacado os judeus e os intelectuais e proclamou que a Igreja e o Estado estavam nas mãos do anti-Cristo. Três mil ex-discípulos de Heliódor também renunciaram à ortodoxia”.
A Era de Prata, considerado ainda hoje como uma era de “despertar místico”, além do intelectual, a partir da compreensão de que a Rússia tinha uma missão para o mundo. O mesmo ambiente que deu ao mundo mentes doentias como Helena Blavatsky, no século 19, estava pronto a participar do despertar místico que precedeu os horrores totalitários do século que se iniciava. Blavatsky criou a Teosofia por meio de sua obra A doutrina secreta, supostamente ditada por uma entidade espiritual. Por meio dessa doutrina, Blavatsky espalhou confusão ocultista por toda a Europa e Estados Unidos e há quem diga que ela tinha exatamente a missão de espalhar contra-iniciação nos ambientes esotéricos iniciáticos, como uma espécie de arma de guerra espiritual contra o ocidente. Coincidência ou não, a praga do orientalismo que originou a confusa “new age” teve início justamente nesse período e os seus principais iniciadores foram os teosofistas. Em 1893, o primeiro “Parlamento das Religiões”, organizado por eminentes teosofistas e ocultistas europeus, visava uma aproximação entre oriente e ocidente. Essa era a proposta de Blavatsky na sua doutrina, segundo a qual os conhecimentos de todas as religiões tradicionais poderiam ser unidos em uma única doutrina global. O processo de criação de uma religião universal é amplamente descrito pelo escritor Lee Penn, no livro False Dawn (falsa aurora). Ele descreve as bases no que hoje chamamos de “nova era”, mas este é um movimento que compartilha do mesmo ponto de partida do despertar místico russo que passou a ser resgatado pelos “conservadores” russos atuais.
Não é á toa, portanto, que foram seguidores de Blavatsky que se espalharam pela Europa levando “a palavra” de uma nova era, descrita muito tempo depois por Ferguson como “a era de Aquário”, uma visão um tanto deturpada talvez por uma necessidade de adaptar à linguagem já decadente pelo processo contra-iniciático. O processo de expansão desse esoterismo, iniciado no início do século passado, representou a gestação da nova era, mas também dos regimes totalitários que conhecemos.
Em 1905, o teosofista Rudolf Steiner fez uma série de palestras na Alemanha para importantes figuras da elite russa de então. Como relata o livro de Lachman, Steiner trouxe uma mensagem que provocou profundo impacto na plateia, embora isso apenas confirmasse impressões cada vez mais presentes naquela elite esotérica europeia, cujos círculos eram frequentados por influentes russos. Steiner falou de uma época global guiada pela Rússia, na qual haveria uma superação de eras, a culminação de visões místicas e proféticas ancestrais. Ele explicou que a humanidade estaria se movendo para a “quinta época pós-atlântica”. A época atlântica era a Civilização Ocidental, época do desenvolvimento do indivíduo que, segundo ele, precisava ser superada. Essa superação ele identificava como uma missão da Rússia para o mundo. Seria o fim do que ele chamava “o ego ocidental radicalmente individual”, que daria lugar a uma era de iluminação e cooperação coletiva. Essa teria sido uma das fontes intelectuais que inspiraram a revolução bolchevique.
Não por acaso, encerrado o período soviético, foi justamente o resgate dessa era profética ainda não alcançada que guiou a criação dos novos movimentos nacionalistas por Dugin e Limonov. Além da profecia de Steiner, Blavatsky e outros centenas de místicos do início do século, o nacional bolchevismo russo também foi um resgate de um outro movimento, iniciado na Alemanha também no início do século, chamado “Revolução Konservadora”. Esse movimento buscava criar um novo nacionalismo em oposição tanto ao comunismo quanto ao liberalismo. Foi um grupo de intelectuais consideravelmente influentes no período da Primeira Guerra na Alemanha. A maioria desses intelectuais aderiram ao nacional-socialismo na década de 1930, como é o caso de Gottfried Benn, poeta expressionista com uma obra agressiva e niilista assumidamente inspirada em Nietzsche. O movimento teve nomes menos envolvidos com política revolucionária, como Hugo von Hofmannsthal e o escritor Thomas Mann. Mas proeminentes nazistas fizeram parte, como o próprio Martin Heidegger e Karl Haushofer, ambos bastante citados por Aleksandr Dugin.
Isso explica muito sobre o que significa ser conservador na Rússia.
Por meio de um movimento pós-moderno que misturava ocultismo e estética nazista, os ideólogos recuperaram a “profecia” de Jean Parvulesco, que em 1976 previu o surgimento de um homem que iria resgatar a Rússia e torna-la o grande farol que guiaria a humanidade “por mil anos”, o que Dugin chamou de “império do fim”.
Em um artigo publicado recentemente ao rememorar sua influência na atual política de invasão da Ucrânia, Dugin escreve:
“Fui radicalmente contra tudo o que o governo russo na década de 1990 pensava, mas fui ouvido por militares russos desde o início da década de 1990, comecei a dar aulas de geopolítica na instituição do Estado-Maior da Rússia e para eles isso era absolutamente necessário porque eles perderam a explicação do que está acontecendo em termos ideológicos e precisavam urgentemente de algo como alternativa. Eles não conseguiam entender por que a OTAN estava se aproximando cada vez mais de nossas fronteiras conosco abandonando nossa ideologia comunista. Eles sinceramente não conseguiam entender o porquê. Mas com a geopolítica apresentada ao Estado-Maior, tudo foi teoricamente, pelo menos logicamente, colocado no contexto. Esse foi o início da ascensão secreta de Putin ao poder”.
Lachman justifica a importância do assunto pela importância disso tanto para Putin quanto para seus “gurus” intelectuais. O destino da Rússia parece ter guiado as preocupações de várias gerações de escritores e místicos. Se, no mínimo, trata-se de uma nova forma de propaganda russa, ainda assim o seu estudo é urgente diante de demonstrações evidentes de expansionismo e do fascínio de ocidentais conservadores desavisados com a promessa de “restauração do espírito”.