Um dos nomes oficialmente mais influentes na nova síntese russa, que encontra citações do próprio Vladimir Putin, é o filósofo russo branco, Ivan Ilyn. Putin não apenas citou o nome de Ilyn como recomendou a sua leitura a altos oficiais militares e funcionários da administração e do círculo interno do Kremlin. Isso aconteceu em 2006, época claramente associada ao início das atividades ideológicas de Dugin. Ilyn é considerado um dos patriarcas do eurasianismo original. Mais de 30 obras de Ilyn foram republicadas na Rússia em 2005.
Ouça o podcast sobre Ivan Ilyn, o filósofo fascista de Putin
Diferente de Dugin, porém, cuja influência se dá no campo internacional, motivo pelo qual necessita de certa distância do Kremlin e uma agenda pró-russa aparentemente informal e marginal, Ilyn é a voz oficial de Putin, um dos principais ideólogos cujo resgate orienta formalmente a nova política externa russa.
Nascido em 1883 em uma família aristocrática em Moscou, Ivan Alexandrovich Ilyin se formou na atual Universidade Estadual de Moscou. Neste período, Ilyn tinha visões políticas radicais, ligadas ao anarquismo, mas acabou se tornando um protegido de um dos liberais mais ativos da Rússia pré-revolucionária, o filósofo jurista Pavel Novgorodtsev. Mas, ao contrário de seu mentor, não se juntou ao Exército Branco pró-tsarista em sua luta contra os bolcheviques na Guerra Civil Russa. Em 1914, após o início da Primeira Guerra Mundial, o professor Príncipe Evgeny Trubetskoy organizou uma série de palestras públicas dedicadas à “ideologia da guerra”. Ilyin contribuiu para isso com várias palestras, a primeira das quais foi chamada de “O Sentido Espiritual da Guerra”. Na faculdade, Ilyn se especializou na filosofia de estado de Hegel, que considerou como uma preparação para seu próprio trabalho sobre a teoria do direito. Sua tese sobre Hegel foi concluída em 1916 e publicada em 1918. Em 1922, porém, foi deportado como “inimigo do estado bolchevique”, juntamente com 160 outros filósofos, historiadores e economistas que ficaram conhecidos como “russos brancos”.
Exilado na Alemanha, Ilyn escreveu manifestos antibolcheviques junto a russos emigrados, com quem editou um jornal no qual difundiu a ideia do eurasianismo, que procurava na geografia uma alternativa ao bolchevismo. A partir de 1930, com o crescimento do nazismo na Alemanha, Ilyn se tornou um admirador de Hitler e Mussolini, publicando trabalhos como “National Socialism: a new spirit”, considerando-o como uma resposta legítima ao bolchevismo. Sua crítica aos alemães que simpatizavam com o comunismo soviético, porém, redeu-lhe a demissão da universidade alemã em que lecionava e, em 1943, fugiu para a Suíça.
Para Ilyn, o estado russo era uma entidade geo-histórica única e representava uma “união espiritual” com as demais nações euro-asiáticas. Embora crítico do bolchevismo, ele não considerou que a Revolução tivesse quebrado essa unidade espiritual, sendo tanto o Império Russo quanto a União Soviética um agente histórico-espiritual autêntico em sua ligação com essas demais nações. Tanto o nacional-socialismo de Hitler, quanto o fascismo de Mussolini ou o próprio movimento branco russo do qual ele fazia parte, teriam uma ligação espiritual. Essa ligação ele creditava a um “inimigo comum”: o comunismo soviético e a democracia ocidental. Apesar disso, a grande ligação entre esses povos era pela “disciplina ditatorial” ligada a uma “renovação espiritual”, motivo pelo qual defendia que a Rússia possuía uma vocação especial.
Um dos seus grandes feitos foi prever, já em 1950, a queda da União Soviética, o que considerou já antecipadamente como um risco para a Rússia.
Ilyn é um dos pioneiros no alerta de que “o Ocidente desejava destruir a Rússia”, por meio da sua fragmentação, assumindo a postura muito atual que justifica uma espécie de “expansionismo defensivo”, isto é, se a Rússia não conquistar novos territórios pode arriscar a própria existência, uma tese que só se sustenta de fato pela crença numa ameaça ocidental. Durante a Guerra Fria, Ilyn defendeu a tese de que a desintegração da Rússia levaria a uma permanente guerra civil e isso teria repercussões em todo o mundo. A Alemanha, escreve ele, “se mudaria para a Ucrânia e os países bálticos, a Inglaterra morderia o Cáucaso e a Ásia Central, o Japão atacaria as costas do Extremo Oriente”, previu ele com grande preocupação sobre o território ucraniano, que para ele não constituiria uma nação de fato e os ucranianos não tinham direito a nenhuma forma de organização estatal e a perda do território da Ucrânia, para a Rússia, significaria um maior desmembramento da Rússia.
Ilyn difundia a ideia de que os ideais de liberdade, democracia, do Ocidente eram, na verdade, uma estratégia para invadir a Rússia e tomar-lhe território seus por direito e por história. Como monarquista convicto, a ideia de “federalismo” também foi associada a uma ocidentalização e consequentemente um perigoso enfraquecimento da Rússia. A opção por um poder centralizado, forte e ditatorial é justificada, segundo ele, pela manutenção da unidade de um país tão culturalmente diversificado e extenso como a Rússia, motivo pelo qual o caos, a desordem e a anarquia seriam os eternos “fantasmas” a assombrar sua existência. Por esse motivo, Ilyn se tornou a grande opção da Rússia moderna, que justifica um poder quase ilimitado nas mãos do soberano, além de um expansionismo justificado por uma missão espiritual e simultaneamente uma defesa contra ameaças de extinção do país.
Contra a Rússia, ele elencou uma série de ameaças concretas, como grupos ocidentais maçônicos e judeus. Nos mesmos moldes dos neoeurasianistas e duguinistas atuais, a falta de uma prática religiosa ou convicção cristã profunda não impediu Ilyn de depositar na Igreja Ortodoxa Russa toda a esperança da renovação espiritual do mundo. Ele ficava horrorizado com a perseguição comunista à religião, que via como espiritual e obrigatoriamente ligada à política. Recentemente, Putin declarou a Igreja Ortodoxa como responsável por nada menos do que a manutenção do nacionalismo, uma associação que no Ocidente rememora horrores absolutistas: “[a Igreja Ortodoxa] trabalha incansavelmente para trazer unidade, fortalecer os laços familiares e educar a geração mais jovem no espírito do patriotismo”, disse Putin. Assim como Ilyn, Putin declarou algumas vezes que o ideal de liberdade, em referência ao patrimônio autenticamente ocidental, deve ser interpretado como “liberdade para a Rússia”, visto coletivamente. Ilyn odiava a palavra liberdade e acreditava que só o estado russo possui direito à liberdade.
Quando se sustenta que a Rússia de Putin não é mais a União Soviética e nada presta ao comunismo soviético bolchevique, devemos lembrar que Ilyn considerava o estado soviético também como uma continuação da missão espiritual russa, como dissemos. Mas mesmo o seu antibolchevismo poderia ainda ser utilizado para argumentar um anticomunismo de Putin. Vejamos então, nas palavras do próprio Ilyn, o que ele quer dizer com esse antibolchevismo.
O que Hitler fez? Ele parou o processo de bolchevização na Alemanha e, assim, prestou o maior serviço a toda a Europa. Este processo na Europa está longe de terminar; o verme continuará a roer a Europa por dentro. Mas ainda não. Não só porque muitos dos antros do comunismo na Alemanha foram destruídos; não apenas porque a onda de detonação já está se espalhando pela Europa; mas principalmente porque a hipnose liberal-democrática da não-resistência foi descartada. Enquanto Mussolini liderar a Itália e Hitler liderar a Alemanha, a cultura europeia terá um adiamento. A Europa entendeu? Parece-me que não… Será que ela vai entender isso muito em breve? Temo que ele não entenda…
Ou seja, o resgate de Ilyn por Putin é certamente uma negação de uma parcela do passado comunista. Mas apenas para resgatar algo diferente que alguns poderão justificar por ter “matado menos” que o comunismo. No entanto, como veremos também nas fontes intelectuais de Dugin, a síntese russa trás de volta algo no mínimo igualmente tenebroso, porque a substituição de uma ideologia ateia por sua versão espiritualizada é apenas um caminho natural à admissão de uma natureza profunda das motivações totalitárias.
A implicância de Ilyn com o comunismo era apenas devido ao fato dele vir de fora da Rússia, sendo que o seu regime ideal seria um totalitarismo autêntico russo, o que explica a sua admiração pelo Terceiro Reich. Assim como faz Dugin com as fontes esotéricas e ocultistas resgatadas por alemães sobre a herança ariana, Ilyn também desejou adaptar o nacional-socialismo ao estado russo, como uma versão eslava da doutrina do “sangue e solo”, manifesta hoje nos neofascismos de terceira posição.