Entre os cristãos, especialmente os católicos, a moda agora é ler A opção beneditina: Uma Estratégia para Cristãos no Mundo Pós-Cristão, de Rod Dreher, que defende o recuo dos cristãos para comunidades menores e fechadas, a fim de preservar as futuras gerações da degradação moral do Ocidente “pós-cristão” e suas mazelas. Sua percepção é a de que os cristãos estão perdendo a batalha cultural e, por isso, devem bater em retirada. Para provar isso, ele demonstra várias das incompatibilidades entre a fé cristã e a “fé” do mundo moderno e suas potencialidades futuras. A imagem que vêm à mente dos cristãos é a de Sodoma, cidade tomada pelo pecado que Deus ordenou abandonar para destruí-la. Muito verossímil à primeira vista.
Seria possível acrescentar males muito maiores, mais profundos e permanentes como característica e potencialidades deste nosso velho mundo moderno. Mas a questão central e mais polêmica do livro nem é o estado atual de coisas, sobre o que em geral todos os cristãos concordam. A ideia de abandonar o mundo, ou a unidade da Igreja como a conhecemos, trilhando o caminho das comunidades descentralizadas e menores, foi traçado também pelo Papa Bento XVI, quando disse que o futuro da Igreja não estaria mais na sua potência de poder temporal, mas no poder espiritual dado por Cristo quando disse: “onde dois ou mais estiverem em meu nome…”. Isso também torna a tese de Dreher bastante atraente ao católico cansado do assédio mundano sobre sua vida, sua família e valores.
No Brasil, onde algumas novidades se alastram com facilidade, a ideia avançou como rastilho de pólvora entre os tradicionalistas católicos, que trataram de comprar suas terras no interior, nas serras, e trilhar em peso, de mala e cuia, para as bandas interioranas. Outros, menos abastados para a compra do sítio salvador, ficam em seus apartamentos postando no Facebook as suas acaloradas defesas do isolacionismo radical do novíssimo catolicismo amish. Brincadeiras à parte, concordo com grande parte do diagnóstico e compartilho da preocupação dessa parcela de cristãos. Mas há aí vários problemas: o primeiro deles reside num certo ridículo da acertada tese quando parte de tipos que jamais suportariam uma semana sem internet, sem confortos burgueses a que se acostumaram ou com a privacidade já instintiva dos grandes centros. Embora eu entenda o seu desejo de transformar-se em nome de uma sociedade melhor, pera lá! Será que esses defensores estão falando de algo que de fato se aplicaria a eles?
Não estaria o natural e humano incômodo com o mundo falando mais alto do que um tão apurado senso de estratégia de longo prazo para a cristandade? Do outro lado, outros ainda viveriam em paz tão perfeita numa cidade de interior ou no mundo rural que questiona-se se de fato conhecem os verdadeiros males do mundo urbano. Se de um lado uns são já típicos moradores do interior, facilmente adaptáveis, isso não os afetaria e portanto nem representaria uma real fuga do conforto e das facilidades tentadoras típicas do mundo moderno. Para esses, difícil seria viver no caos da cidade, onde vivem terríveis pecadores e os pecados são aparentemente mais abundantes. De outro lado estão os que amam tanto as facilidades da cidade que a fuga dela representaria um sacrifício tão cruel ao ponto de fazer de suas vidas um verdadeiro inferno cheio de tentações. Não estou duvidando da sua capacidade de sacrificar-se, mas pensemos bem sobre a motivação real disso, muitas vezes enfeitada com uma razão elevada extraída de um livro. E que livro é esse?
O padre Paulo Ricardo já deu uma aula espetacular sobre este livro e sua polêmica, lembrando da importância central da relação pessoal e individual com a fé cristã. Não estou dizendo que os defensores da obra do escritor que tem nome de conhaque sejam desleixados com suas orações ou relação com Deus. Mas que mesmo mantendo todas as coisas que importam, talvez uma ênfase um tanto quanto equivocada possa ter seduzido o seu coraçãozinho devido ao constante ataque do mundo, da vida e da profunda impressão provocada pelas flagrantes derrotas do que gostaríamos de chamar de civilização cristã, cuja imagem está já distante no tempo por mais que não queiramos aceitar. Todos nós temos que lidar com a frustração diariamente. Mas nos importa muito aprendermos com ela, pois ela é nossa circunstância, a cruz dada por Deus.
Senão, imaginem comigo: São Paulo, São Pedro, diante da Roma pagã, chegando à conclusão de que o mundo jamais será cristão mesmo e que o melhor a fazer é fugir para as montanhas, montar barracas e formar famílias isoladas para, quem sabe um dia, retornar e dominar tudo. É mesmo? Quando? Imaginem como seria o mundo hoje se eles tivessem pensado assim. É uma imagem um pouco mais realista que a mítica Sodoma, pois além de termos em nosso mundo os resultados históricos dessa epoupéia civilizatória, não foi devido um aviso ímpar de Deus que se fez a cristandade, mas de vários recados compreendidos por meio de vidas inteiras, obras e construções.
Imaginemos os missionários portugueses que, quando chegaram ao Brasil, viram civilizações de indígenas pagãos, praticantes de uma cultura totalmente avessa ao cristianismo. Vamos embora, esses índios jamais nos entenderão, diriam eles. Vamos voltar para nossa vila em Portugal. É isso.
Infelizmente, a maioria dos cristãos nos últimos anos concentrou-se demais na guerra cultural ao ponto de esquecer-se de quem irá luta-la. Não se vence o demônio, o diabo ou a carne, defendendo a “família tradicional”. Vence-os através da ligação individual, pessoal, com Deus, a partir da fé nEle. E isso significa colocar-se em Suas mãos e não apenas deixar o mundo nas mãos dEle. O mundo é nosso, Ele nos deu. E o mundo não se cristianizará sozinho ou num ato divino de destruição como em Sodoma. O mundo nunca foi cristão por vontade própria, mas pelo trabalho e pela vontade de heróis, santos e mártires. Foi o sangue que fez brotar as instituições jurídicas, democráticas e políticas que hoje vemos ser derrubadas pela falta justamente do sangue dos heróis e mártires que optaram por vidas cômodas conferidas pela tecnologia nas grandes cidades. Mas todo prazer quando dura tempo demais vira dor, lembrou certa vez o professor Olavo de Carvalho. O que estamos vivendo é o cansaço, a dor do conforto urbano quando afastado de um sentido e, portanto, desordenado. Então, pode ser exatamente uma busca pela renovação desse comodismo que tem feito com que muitos desejem cidades do interior, em geral feias e ainda mais desvirtuadas moralmente. Eis o engano. Seduzidos por uma promessa de sossego ou de tranquilidade que Deus não prometeu, alguns acharam que era mais fácil pensar como monges.
Mas São Paulo foi claro quando dividiu os homens entre aqueles que vivem para as coisas de Deus e os que vivem para as coisas do mundo. A vida religiosa e a vida matrimonial.
Deus fez o mundo para o homem, embora o tenha entregado o governo a Satanás. Mas Ele o fez para que haja mérito no nosso trabalho e sacrifício de tomá-lo de volta e fazer este velho mundo algo novo. Colocar Cristo nas coisas é dever do homem e para isso Deus fez as coisas. As opções monásticas são uma coisa. As dos pais de família e dos homens do mundo é outra bem diferente. A opção beneditina é defensável a idosos, crianças, doentes, ou aos monges que optam por uma vida fora da agitação do mundo, mas não a homens a quem foi dada a missão da família, com saúde e fé forte para lutarem pela conversão do mundo, mas como um objetivo dentro da conversão diária, cotidiana e permanente, uma declaração diuturna de amor a tudo o que foi criado e pode, com a ajuda de Deus, ser revertido para o bem e para a Salvação.