Não é novidade para ninguém que há algo de muito errado com nossa sociedade. A cada dia deparamo-nos com bizarrices mais incríveis. E a causa da maioria delas, se não de todas, é a renúncia completa ao mundo real. As pessoas têm optado, sistematicamente, por abrir mão da realidade, descolando-se dela, para viverem em cenários inventados. Vidas de mentirinha.
Tomemos como exemplo uma conversação, entre dois professores universitários, um homem e uma mulher. Ela, de cabelos grisalhos, aparentando mais de cinquenta, usava saia longa e um anel em cada dedo. Desabafava, com o colega, a respeito dos percalços que vinha enfrentando para concluir sua tese de doutorado. Sem lecionar há meses, vivendo às custas de bolsa de estudo financiada por dinheiro público, a jovenzinha cinquentona queixava-se a seu interlocutor, também professor e bolsista, que seu orientador estava exigindo coisas que ela não pretendia abordar em sua relevante pesquisa, que versava sobre
“A adoção da linguagem neutra como instrumento de fortalecimento das minorias.”
Pois é. Além de, impunemente, sem prestar serviço algum, alimentar-se de dinheiro público, a “intelectual” em questão ainda presta um enorme desserviço: massacra a gramática e torna mais pobres a cada um de nós, devorando, com seus delírios semânticos, uma das poucas riquezas que ainda conservamos como povo: a língua.
Mas o mais chocante naquela cena ainda estava por vir.
O garçom, ao servir, alegre e cantarolante, a mesa dos dois letrados pensadores, anunciou:
– Dois queijos quentes, com queijo minas!
Escutou, em retruque imediato, o tom arrogante e altaneiro dos que são servidos sem nunca servir:
– Queijo minas? Mas pedimos gruyére!
E fizeram voltar os sanduíches à cozinha, pouco se importando se o garçom teria ou não que arcar com o prejuízo. Que nos banque, o Estado, nosso sanduíche! Somos seres elevados, intelectuais e, com nossas pesquisas, modificamos o mundo! Se esse garçom, coitado, que ganha o pão com seu trabalho, tiver que arcar com o prejuízo de nossos caprichos, não somos culpados… a culpa é dele, de sua incompetência… aliás, nunca somos responsáveis por nada! Movemo-nos à sombra do real e, aqui, nesse mundo de abstrações, não podemos ser senão eternas crianças que querem queijo gruyére!
E então passemos a elencar, sinteticamente, para não nausear o leitor, algumas manchetes que ilustram, com perfeição, o divórcio com a realidade, a teatralidade como único fundamento lógico para a ação, a prevalência absoluta da aparência e da mentira sobre a verdade da existência:
1- “Alinhado com o tema da inclusão social e da diversidade, o Museu da Língua Portuguesa adotou em algumas peças de comunicação o pronome neutro todes. A linguagem é usada para incluir pessoas não binárias e integrantes da comunidade LGBTQIAP+ que não se identificam com um gênero específico”.
2- “Os desafios de criar um filho em uma sociedade patriarcal, machista e dolorosa para a mulher.”
3- “Atletas da seleção brasileira são vítimas de gordofobia durante Olimpíadas.”
4- “Adultos de chupeta: comunidades online de regressão infantil encontram conforto usando objetos como fralda, brinquedo e mamadeira.”
5- “Pais de Reborn: Febre das bonecas hiperrealistas transforma adultos em pais de reborn.”
6- “Relação mais ética e livre: para eles, a não-monogamia é um ato político.”
Nessa sociedade de faz de conta, o resultado óbvio só poderia ser exatamente o que vemos: mulheres privilegiadas posando de vítimas da sociedade patriarcal, adultos que se recusam a crescer, custe o que custar, pessoas que não querem e não aceitam ser aquilo que são, e relações humanas reduzidas a instrumentos político-ideológicos.
No caso da última manchete, é chocante considerar “ética” e “livre” uma relação entre duas pessoas (e aqui pouca importa se a relação é hetero ou homossexual), que pretenda ser usada como recurso de luta política. Uma relação dessas pode ser tudo, menos livre! É o utilitarismo atingindo seu apogeu. Mas, a bem da verdade, as palavras “ética” e “liberdade” são, para essas pessoas, inclusive os jornalistas, apenas palavras.
Gustave Le Bon[1], estudando a psicologia das multidões, alertou, há muito, que são impressionadas sobretudo por imagens. Na ausência dessas imagens, é possível evocá-las pelo judicioso emprego de palavras e fórmulas, que provocam na alma das multidões verdadeiras tempestades, e podem também acalmá-las. O poder das palavras está ligado às imagens que evocam e é completamente independente de seu significado real.
O mesmo ocorre com a palavra amor. As pessoas não sabem o que é o amor, mas utilizam o termo com exagero, esbanjando-o na propaganda. Quando ouvem a palavra, imediatamente a associam a uma troca pragmatista, do tipo “te sirvo se você me servir, te dou o que você me der”; ou a uma “coisa” que não precisa ser explicada, contanto que forneça o máximo de satisfação momentânea e hedonista; ou a um jogo, cujo vencedor é o que consegue aproximar o outro, o mais possível, do paradigma existente em sua mente, repleto de esquemas fixos. Para tanto, a estratégia é “aparar as arestas” até que o ser “amado” corresponda perfeitamente ao padrão ideal.
Mas o amor é exatamente o contrário: só é possível amar o que se conhece, o que se percebe, e se aceita, como verdadeiro e real. Uma das mais lindas definições é a de Ortega Y Gasset[2]: “há dentro de toda coisa a indicação de uma possível plenitude. Uma alma aberta e nobre sentirá a ambição de aperfeiçoá-la, de auxiliá-la para que alcance essa plenitude. Isto é amor – o amor da perfeição do amado”.
A perfeição já está em cada um, e, diante disso, quando amamos de fato, queremos tão-somente que o ser amado a encontre dentro de si. A perfeição do ser amado não pode ser invenção nossa!
E o amor à verdade, à realidade, às coisas como elas realmente são, é o único mecanismo que pode nos salvar do caos. Infelizmente, o rancor e o ódio estão dirigindo o mundo e, para não fugir da lógica do falseamento, estão disfarçados, mascarados.
Um desses disfarces é o falso moralismo. Uma sociedade moralista[3] é doentiamente apegada à imagem e, portanto, superficial. Seu foco é a aparência, o visível e seu critério é o aspecto quantitativo. A pessoa caridosa se reconhece pela quantidade de pessoas que ajuda, e por quanto dinheiro distribui. O bem-sucedido se mede pela quantidade de dinheiro, ou de seguidores, que possui. O bom religioso se revela pela quantidade de terços que reza, e pela fidelidade intransigente aos compromissos paroquiais. O bom padre é medido pelo número de missas que celebra, e por quantos fiéis atende por dia. O bom marido e o bom pai é o que nada nega à esposa e aos filhos, reduzindo a zero o grau de suas frustrações. A boa mãe é a que tira mais fotos, e tem mais curtidas nas redes sociais.
Com todas essas sutilezas, a sociedade do espetáculo vai nos prendendo a todos, reduzindo nosso alcance, tornando-nos imediatistas e cada vez mais cínicos.
Ludwig Feuerbach[4] sintetizou, com maestria, a triste realidade de nosso tempo: prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. Sagrado não é senão a ilusão, o que é profano é a verdade; ou melhor, o sagrado cresce à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que, para esse tempo, o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado.
E ficamos, assim, presos na roda do discurso e da imagem, num mundo invertido e reinvertido, onde o verdadeiro é apenas um momento do falso, e somos todos espectadores e atores da sociedade do espetáculo[5].
É dramática a conclusão, mas esse modo de ser (ou de não ser) está mais impregnado em nós do que gostaríamos de admitir. A todo momento, munimo-nos do martelo de juízes da moral, afundados até as orelhas nesse moralismo de impostura, e distribuímos nossas “sentenças”.
No mesmo “Meditações do Quixote”, Ortega Y Gasset reflete que é mais fácil nos exasperarmos em razão de um dogma moral do que abrir nosso peito às exigências da verdade. Entregamos nosso alvitre a uma atitude moral rígida com mais boa vontade do que mantemos nosso juízo aberto e pronto para a reforma e correção devidas; abraçamos o imperativo moral como uma arma para simplificarmos a vida, mas, com essa atitude, aniquilamos porções imensas de mundo.
A experiência humana integral não pode ser vivida sem abertura à surpresa e à adaptação que nos exige cada momento, cada circunstância. É como na velha frase de Sartre: é preciso mudar para continuar sempre o mesmo. Mas a sociedade do espetáculo nos reduz a números e formas, que se encaixam, ou não, nas marteladas do juiz moralista.
A boa notícia é que a disposição interior, nossa motivação real e verdadeira, vista pelo Onisciente, é capaz de transformar a qualidade de nossos atos. Quando modificamos nosso olhar interior, a atitude externa segue. Exatamente por isso São Paulo Apóstolo escreveu a Tito que “tudo é puro para os que são puros”. A nossa disposição interior tem o condão, e somente ela tem, de revestir de pureza tudo aquilo que nos circunda. Mas, ao contrário, para os cínicos, para os hipócritas, para os imediatistas e corrompidos de todo tipo, na expressão do Apóstolo, nada é puro. A responsabilidade é individual.
Um compromisso com a verdade nos torna responsáveis por todos os nossos atos, sem possibilidade de nos escondermos. Às vezes tem-se a impressão de que estamos falando apenas para uma meia dúzia de “iniciados”, para pessoas que já saíram do encantamento e não precisam mais ser convencidas de nada. Porém, os que vivem nesse mundo de mentirinha, permanecerão surdos.
Mas, quando sentimos vontade de nos calar, pensamos na possibilidade de que nosso eco ressoe no futuro. Move-nos a esperança de sermos ouvidos pelas gerações futuras, pelos que, hoje, ainda são apenas crianças. E não desistimos de falar, pela vontade de formar pessoas livres dessas hipnoses, capazes de pensar por si e se autodeterminar, com a luz vinda do Alto, e da verdade que está dentro delas mesmas. É preciso calar as mil vozes dissonantes que insistem em captar a atenção.
Quando somos contrariados por nossos primos, pais, irmãos, cunhados, temos que, internamente, alimentar-nos de uma única certeza: não estou falando/compondo/escrevendo/denunciando por você ou para você, mas por/para meu filho, meu neto. Este é o único modo de não desanimar e não ser tragado pela espiral do silêncio, da mentira, da representação. E, assim, servir, desinteressadamente, sem esperar ver a recompensa. Afinal, nada há neste mundo, senão servir, que possa fazer feliz um ser humano com sede de eternidade.
[1]Le Bon, Gustave. Psicologia das multidões. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.
[2]Ortega Y Gasset, José. Meditações do Quixote; tradução de Ronald Robson – Campinas, SP: Vide Editorial, 2019.
[3]Reflexão sempre reiterada pelo professor de Filosofia Vítor Meireles, do Instituto Lavelle.
[4]Feuerbach, Ludwig. A Essência do Cristianismo. 4.ed. – Petropólis, RJ: Editora Vozes, 2013.
[5]Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 1997.