A relação entre o jornalismo e a verdade é uma relação indireta, assim como quase tudo o que conhecemos tem um elemento intermediário. Conhecer esses intermediários é o primeiro passo para entender o processo de comunicação e poder agir nele de modo eficiente. Em si mesmo, o jornalismo é o intermediário entre a sociedade e o mundo real (medium). Mas ele só acessa a realidade através de um corpo intermediário, composto de várias partes. Uma das partes são os critérios de notícia. Afinal, são esses critérios que definem qual parte do real será selecionado. Outra parte são os interesses da estrutura midiática, o que chamamos em teoria da comunicação de “Agenda midiática”.
Há, por fim, os filtros ideológicos, mais pessoais, mas frequentemente compartilhados coletivamente. Eles precisam passar por todos os filtros anteriores para serem legitimados pela comunidade jornalística, sendo a ideologia a última justificativa, ou seja, aquela que nunca é mencionada. Aceitando todos os filtros anteriores, compartilhados pela comunidade profissional, o filtro ideológico é apenas aceito dentro do corpo de valores morais do grupo e podem ser inseridos tanto de maneira ambígua nos critérios de noticiabilidade quanto de forma totalmente silenciosa. Afinal, em nome da ideologia ou objetivo escuso, os demais filtros ou critérios podem ser facilmente falsificados mediante recursos que apelem à verossimilhança. O aval da comunidade é a última etapa, quando só então um conteúdo é considerado publicável.
Isso significa que toda escolha ideológica dos meios é legitimada pelos filtros anteriores. Evidentemente, temos no jornalismo aquilo que no direito chama-se “verdade dos fatos”, isto é, aquela verdade possível, na linha do discurso retórico, cujo nível de credibilidade está na verossimilhança. Trata-se da linguagem própria da persuasão, da produção e influência de decisões humanas. Este é o processo da criação da realidade social pelo jornalismo.
O jornalismo só atua no mundo a partir desta outra realidade criada por ele. Se a difusão de fatos gera novos fatos, essa nova realidade é algo que não podemos negar. Não se trata de uma realidade falsa, uma abstração apenas. Os efeitos dela são reais e podem destruir ou construir coisas, acabar com a vida de alguém ou tornar alguém um santo, alguém notável do dia para a noite. Não é uma mentira criada pelo jornalismo. Mas ela pode ser, sim, composta de pequenas mentiras para que, do dia para a noite, as pessoas não percebam a diferença entre mentiras e verdades.
Cabe ao jornalista escolher a parte da realidade mais relevante socialmente. Para isso, ele tem à sua disposição apenas os fatos narrados ou dizíveis. Estes constituem a verdade dos fatos, uma separação humanamente construída da verdade. É como uma imagem da verdade. Uma imagem provisória, mas legitimada para fazer as vezes da verdade para efeitos específicos.
A verdade dos fatos, isto é, o que pode ser dito por meio de testemunhos, declarações ou documentos oficiais, é composta de escolhas pessoais. Os jornalistas sabem que são os meios tradicionais de comunicação que possuem a legitimidade social para fazer essas escolhas. Isso implica no fato de que toda falta de informação será preenchida pelo jornalismo. Não apenas a ausência de dados ou fatos que possibilitem o preenchimento da lacuna, mas a inexistência ou indisponibilidade de conteúdos formatados conforme certas características. Como já expliquei em outro livro, o jornalismo só vai “traduzir em termos jornalísticos” (ou seja, tornar realidade social) aqueles fatos que sejam: 1) do interesse da agenda midiática, o que significa atender às demandas profissionais; 2) que sejam apresentados em linguagem jornalística aceitável; ou 3) que coincida com as agendas pré-midiáticas, isto é, os interesses dos grupos financiadores não apenas da estrutura jornalística específica como da estrutura de fontes ativas que abastece as redações com conteúdos prontos e com imagens adequadas às suas narrativas.
Tudo o que não corresponder a essa complexa gama de critérios, a redação tem autonomia e legitimidade social para ignorar ou inventar totalmente os elementos faltantes com aspectos que coincidam com um ou todos os tópicos citados.
Mas onde está o papel do jornalismo independente em tudo isso? Parece-nos que os blogs, canais do youtube ou perfis de redes sociais nunca possuirão a capacidade de descrever a realidade de maneira que sua versão seja parte da realidade social legitimada. Isso é ainda mais verdadeiro quando o jornalismo independente se vale de uma autodefinição herdada da própria grande mídia, onde os valores estão todos mimetizados em “instituições” e repetição de chavões sem significado. O problema do jornalismo independente está mais no que ele acredita de si mesmo.
Afinal, é fácil para grandes grupos de comunicação atribuir o rótulo de “fake news” às mídias independentes que vivem de combater o discurso hegemônico da elite financeira global. As hipóteses lançadas pela grande mídia convertem-se muito mais facilmente em decretos e decisões de autoridades, independente de estarem baseados em informações e pressupostos falsos ou verdadeiros. Ao passo que para os independentes, noticiar a verdade determina pouco da realidade social, já que não são lidos pelos iluminados responsáveis pela legitimação dos fatos. Durante a pandemia, por exemplo, ressaltamos estudos que mostravam como o uso de máscaras vinha sendo nocivo à saúde e ao mesmo tempo inútil à prevenção de contágio. Basta que as autoridades ignorem nossos alertas e será fácil um checador nos classificar como fake, usando para isso toda a indiferença das autoridades como justificativa da nossa absoluta insignificância. Mas a pergunta permanece: mentimos?
Quando um jornalista é confrontado com fatos reais que ele desconhece, oferece como resposta o conteúdo dos jornais, para onde refugia-se da própria ignorância. Para ele, o jornalismo é a única mediação legítima entre sujeito e objeto. Esta é a estrutura base na qual se sustenta a fé pública no trabalho jornalístico. A grande “pedalada” jornalística, porém, está no investimento psicológico do próprio informador. Essa fé cega no “magistério jornalístico” é a fonte primordial dos critérios de atenção, seleção e narração que orbitam a rija cachola de um editor da Folha, do Estadão ou do G1. Esta é uma das razões pelas quais os jornais acabaram se tornando o megafone de uma das mais extremistas e violentas bolhas ideológicas já surgidas no Ocidente. Ao exato contrário do que é alardeado nos jornais, o jornalismo se tornou porta voz do verdadeiro fascismo. O problema é que nenhum jornal irá noticiar isso. Exceto a mídia independente. E nisso reside a sua verdadeira e nobre função.