Temos visto um retorno do nacionalismo em diversas partes do mundo. Muitos pensam estar compreendendo o processo como um resgate das identidades, fruto de uma crise de sentido da modernidade, mais ou menos como um fenômeno natural e espontâneo. Desde que, em 1922, Walter Lippman escreveu que as opiniões precisavam ser fornecidas para os jornais e não pelos jornais, e que esta era uma função da ciência política, não temos mais o direito de falarmos em movimentos espontâneos de ideias. É preciso, e possível, sondar os movimentos ideológicos até as suas bases originárias e identificar claramente seus agentes promotores em nosso meio.
Nenhuma forma concreta e eficaz de orientação política pode, além disso, deixar de fora o ensinamento fundamental expresso na frase de Hugo Hoffmansthal, de que “nada está na política de um país que não esteja antes na sua literatura”. Isso vale não apenas para os países, mas para as ideias globais que se propõem como supostos consensos.
Uma das chaves fundamentais para compreendermos o avanço das ideias atuais está no filósofo Martin Heidegger, um dos nomes mais lidos, estudados e amados por intelectuais e pseudo-intelectuais da modernidade (e da antimodernidade). Seu pensamento serviu e serve de base para quase toda doutrina revolucionária, desde os neofascismos esotéricos, o neopaganismo, terrorismo islâmico, passando pelo ambientalismo e a ideologia de gênero.
Pela altíssima influência de Heidegger atualmente, compreende-lo minimamente pode ser uma forma eficaz de orientar-se no meio das confusas doutrinas atuais, que misturam maliciosamente componentes tradicionais e nacionalistas, a uma profunda e maligna concepção revolucionária e anticatólica. É preciso ter em conta que a crítica de Heidegger apenas aparentemente centra-se na modernidade liberal e na religião civil do estado moderno, sendo este o elemento que funciona como uma grande isca a conservadores.
É inegável que o nacionalismo moderno chegou ao seu fim. Resta saber o que o substituirá. Heidegger é chave para compreender essa nova alternativa.
Profundamente anticatólico e neopagão, Heidegger era um crítico das ideias fixas e das doutrinas, advogado das concepções “fluidas” e cíclicas, nostálgico do paganismo grego e tribal, dono de um ódio descomunal de tudo o que distanciasse o ser humano da terra, do sangue e da raça como fator de identificação profunda. Assim como Marx, ele via no cristianismo, especialmente a Igreja Católica, como uma alienação que ao prometer a salvação eterna distraía das missões tribais e raciais do destino dos povos. Não por acaso, o único cristianismo que ele suportou foi o luteranismo.
Fascismo e neofascismo
A relação de Heidegger com o nazismo é um dos aspectos mais controversos de sua trajetória. Em Ser e Tempo (1927), Heidegger busca romper com a corrente metafísica moderna e iluminista, pautada pelo cartesianismo, mas propõe no lugar disso o conceito de Dasein (ser-aí), um ser finito e historicamente situado, cuja autenticidade depende de sua relação com a própria comunidade e tradição. Tradição, neste sentido, não é análoga à ideia de tradição cristã ou católica, mas num sentido antropológico e relativista, bem ao modo moderno. Esse pensamento foi facilmente utilizado pelo nacional-socialismo alemão como um suporte filosófico para a exaltação do Volk (povo) e da identidade nacional baseada no pertencimento histórico e no destino comum que já estava expresso no esoterismo nazista da ariosofia (versão germânica da teosofia). Heidegger buscou resgatar o nacionalismo pagão pré-cristão, razão pela qual seu pensamento foi facilmente adotado por diversas correntes neopagãs e pseudo-tradicionalistas, que viram nele uma rejeição da modernidade cristã e uma tentativa de retornar a uma visão do mundo mais próxima da natureza e do destino dos povos.
Quando assumiu o reitorado da Universidade de Freiburg em 1933, Heidegger se alinhou inicialmente ao regime nazista, promovendo um ideal de educação baseado no compromisso existencial com o Estado e o povo. Apesar de ter se distanciado do partido nos anos seguintes, seu pensamento permaneceu influente no movimento, especialmente na crítica ao humanismo e à técnica moderna, que os nazistas viam como degeneração da pureza cultural.
Anticatólico, pagão, panteísta e revolucionário
Por baixo da sua crítica à modernidade, porém, há uma profunda crítica ao cristianismo e à Igreja Católica, o que fica cada vez mais evidente pela identidade que promove praticamente todas as doutrinas revolucionárias anticristãs que atualmente estão em perigosa ascensão.
Heidegger cresceu em berço católico, mas começou a se afastar da Igreja a partir das discordâncias filosóficas que o aproximavam de uma visão neopagã. Ao invés do catolicismo, porém, assumiu certa simpatia por Lutero através da influência protestante do amigo Kierkegaard. Profundamente igualitário em sua personalidade intelectual, Heidegger via o protestantismo, especialmente em sua ênfase na experiência individual da fé e na crítica à instituição eclesiástica, como mais próximo de uma “experiência autêntica do Ser”.
Na concepção de Heidegger, o cristianismo degradou as noções de Absoluto e do Ser através da estabilização da doutrina, que dava expressão conceitual e fixa. Para ele, o cristianismo enfatizava demasiadamente a Eternidade e deixava de lado a experiência do indivíduo com o mundo, a terra e o sangue, do qual ele é originário e possuiria uma função ou missão sagrada. Esse pensamento coincide perfeitamente com a visão pagã de mundo, na qual a realidade não é fixa, mas sim dinâmica e cíclica, sujeita às forças do destino (moira) e da necessidade (ananke). Seu conceito de Dasein, o ser humano enquanto ser-no-mundo, também sugere um enraizamento na tradição e na experiência coletiva, algo fundamental para as religiões pagãs antigas. Por esta razão, Heidegger se tornou o principal patrono da pós-modernidade relativista e identitária, ainda que se expresse por linguagens aparentemente tradicionais e esteja seduzindo um número cada vez maior de ativistas revolucionários “tradicionalistas”.
Essa perspectiva o aproxima bastante da heresia panteísta, ainda que numa forma moderna.
Embora ele não afirmasse, como no panteísmo tradicional, que o Ser era Deus ou que tudo era uma manifestação divina, sua filosofia sugeria uma relação íntima entre o homem e o Ser, sem recorrer a um Criador transcendente. Heidegger possui semelhanças com o panteísmo romântico alemão, especialmente o de Goethe e Schelling. Ambos enfatizavam uma visão orgânica e unitária da realidade, rejeitando a separação radical entre Deus e natureza. Isso ficará mais claro quando falarmos da sua relação com o ambientalismo filosófico, razão pela qual Heidegger é uma das bases do Partido Verde alemão, por exemplo.
Vejamos algumas das suas influências nas ideologias que mais crescem na atualidade.
Islamismo e revolução “tradicionalista”
Assim como, no campo das religiões, fez René Guénon, o pensamento heideggeriano influenciou profundamente as ideologias opostas ao Ocidente liberal, incluindo o Islã atual. O filósofo argelino Mohammed Arkoun e o jihadista Abu Musab al-Suri exploraram Heidegger para criticar a modernidade ocidental e a colonização do pensamento islâmico pela razão iluminista. A rejeição da metafísica ocidental e da tecnologia como forma de dominação se encaixa na crítica islâmica contra o secularismo e o materialismo europeu. Este expediente funciona muito bem como isca para conservadores zelosos de sentido absoluto e tradições, órgãos do vazio materialista da modernidade. No entanto, assim como o demônio, o que Heidegger oferece ao prometer tradição é mais caos e mais falta de sentido.
O conceito heideggeriano de “retorno à autenticidade” foi reinterpretado pelo islamismo contemporâneo como um apelo à volta da ummah islâmica original, rejeitando influências ocidentais e promovendo uma existência baseada na tradição e na lei islâmica (Sharia). Baseado nisso, o islã atual está promovendo o processo agudo de descristianização da Europa.
Eurasianismo
No pensamento do ideólogo russo Aleksandr Dugin, Heidegger desempenha um papel central. Dugin, um dos principais teóricos do eurasianismo, utiliza Heidegger para justificar a rejeição da globalização e do liberalismo ocidental. Para ele, o Ocidente está em decadência porque se afastou da ideia de destino histórico e caiu no império da técnica, exatamente como Heidegger criticava.
O conceito de Dasein é reinterpretado por Dugin para justificar a ideia de um “ser russo” autêntico, em oposição ao individualismo europeu. Assim como Heidegger via a técnica como um perigo para a existência humana autêntica, Dugin vê a globalização como uma imposição destrutiva da modernidade liberal, contra a qual a Rússia deve se erguer como força civilizacional alternativa. Além disso, Dugin propõe Heidegger como uma “receita” subjetivista para que cada povo crie o seu próprio fascismo.
A Teoria de Gênero
Assim como ocorre com Tolkien, que muito antes de ser descoberto por católicos depois dos sucessos de Hollywood, já havia promovido a devastação ocidental por meio da contracultura, o Heidegger adorado por conservadores é o mesmo lido e estudado no meio acadêmico. Heidegger sempre foi lido no meio acadêmico de esquerda e entre promotores do igualitarismo identitário.
Nomes como Judith Butler utilizam a desconstrução do sujeito realizada por Heidegger para questionar a identidade fixa e essencialista. Se, para Heidegger, o Dasein não tem uma essência fixa e é sempre um “projeto”, então a identidade de gênero pode ser vista da mesma forma: como uma construção social e performativa, em oposição a uma essência biológica.
O pensamento heideggeriano também ecoa nas críticas de Michel Foucault e Jacques Derrida à metafísica ocidental e às estruturas de poder que definem identidades. A teoria de gênero pós-moderna herda essa visão ao afirmar que os conceitos de “homem” e “mulher” são produtos históricos e sociais, e não dados naturais fixos.
O ambientalismo
A influência de Martin Heidegger no ambientalismo moderno se deve principalmente à sua crítica à tecnologia, sua visão do Ser e da relação entre o homem e a natureza. A relação entre sangue e terra, trazidos do neopaganismo, impôs no seu pensamento uma óbvia adoração da natureza por representar o campo máximo da ação humana e da identidade dos povos. Neste sentido, novamente ele faz uma crítica à modernidade que, ao final, acerta no universalismo cristão. Para Heidegger, esse processo tem raízes na metafísica ocidental, especialmente no pensamento cartesiano e iluminista, que coloca o homem como “mestre e possuidor” da natureza, algo que os ambientalistas consideram a origem da degradação ecológica. Para o catolicismo, porém, a natureza física foi feita para o homem e entregue a ele como criatura a servi-lo. Esta realidade, verdadeiramente tradicional, não aparece no seu pensamento, mas sim a tradição pagã e panteísta.
Seu pensamento foi adotado por diversas correntes do ecologismo filosófico, incluindo o ecocentrismo, o ambientalismo profundo e o tradicionalismo ecológico, que veem nele um caminho para superar a exploração da natureza promovida pela modernidade técnica.
Movimentos de ecologia espiritual, como a “ecologia profunda” de Thomas Berry e algumas vertentes do budismo ecológico, também dialogam com Heidegger. Eles absorvem sua crítica ao materialismo moderno e defendem uma reconexão do ser humano com a totalidade do cosmos, semelhante ao que Heidegger propunha ao criticar a separação entre sujeito e objeto imposta pela modernidade. Certas correntes do ambientalismo tradicionalista, como as promovidas por Alain de Benoist e o movimento “ecologia identitária”, também se baseiam em Heidegger. Eles interpretam sua filosofia como um chamado para o retorno a uma relação mais orgânica entre os povos e seus territórios, rejeitando a artificialidade da globalização e da industrialização moderna.
No neopaganismo ecológico, a ênfase heideggeriana na “terra” (Erde) e no pertencimento ao solo inspira uma visão espiritual da natureza. Esse pensamento aparece em movimentos de eco-nacionalismo, que defendem a preservação tanto da identidade cultural quanto do meio ambiente como parte de um mesmo projeto civilizacional.
Por fim, a teologia católica moderna
Se Heidegger tem sido apropriado por católicos tradicionalistas, a sua verdadeira identidade filosófica combina muito mais com o modernismo combatido pelos conservadores. Afinal, o modernismo teológico católico surgiu no final do século XIX e início do XX como uma tentativa de adaptar a doutrina católica às novas correntes filosóficas e científicas. Os modernistas buscavam reinterpretar o dogma cristão em termos mais existenciais e históricos, abandonando leituras fixistas da revelação.
Heidegger repetiu este chavão moderno ao procurar oferecer uma visão espiritual “mais aprofundada” e existencial. Sabemos que muitos teólogos católicos modernistas foram influenciados pelo existencialismo, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Entre eles, muitos procuraram dialogar com o pensamento de Heidegger.
Um deles foi Karl Rahner, considerado um dos mais influentes teólogos católicos do século XX. Ele incorporou conceitos heideggerianos em sua teologia transcendental ao reinterpretar a relação do homem com Deus em termos existenciais, vendo a abertura ao Ser como uma dimensão fundamental da fé.
Hans Urs von Balthasar, embora não fosse um modernista, também se interessou pela fenomenologia e pelo pensamento de Heidegger para aprofundar a relação entre ser e revelação. Da mesma forma, Jean-Luc Marion foi influenciado por Heidegger e pela fenomenologia ao questionar a metafísica clássica da teologia em favor de uma abordagem mais experiencial da fé.
Embora esses teólogos não fossem propriamente modernistas, no sentido da condenação feita por Pio X na encíclica Pascendi Dominici Gregis de 1907, eles reinterpretaram conceitos centrais da teologia a partir do pensamento fenomenológico e existencialista, muitas vezes convergindo com as preocupações modernistas de adaptação da fé ao mundo contemporâneo.
Este é um grande cavalo de Troia dentro da direita mundial, que começou como uma legítima resistência ao globalismo moderno, mas a cada dia se dirige perigosamente para simpatias ao neofascismo por meio da influência russa. A indiferença sobre estes temas, entre conservadores atuais, especialmente no Brasil, antecipa grandes sustos e fracassos repentinos. No entanto, mesmo quando compreendidos, são vistos como não dignos de atenção, mas apenas de alertas pontuais. Este engano custará caro e disso não há mais nenhuma dúvida.
O Instituto Estudos Nacionais é o único site a fazer este alerta de maneira permanente e como uma de suas principais bandeiras, assim como a defesa intransigente e radical da Santa Igreja Católica. Colabore com o nosso trabalho para manter a nossa continuidade.