Sobre a rave católica e eventos de adoração relacionados
Por Henri Kovar
Depois perguntou-lhe: “Que nome é o teu?” Ele respondeu: “O meu nome é Legião, porque somos muitos.” (Mc 5:9)
Ao último mês um padre e DJ chamado Guilherme, que pelo visto é internacionalmente famoso, realizou uma “rave católica” (foi este o termo utilizado pelos jornais) aos pés do Cristo Redentor, na cidade do Rio de Janeiro. A reflexão que farei terá em vista a natureza da rave e como ela poderia — e se poderia — beneficiar a adoração católica.
O que é uma rave? Segundo o texto que serve de base à página “Rave” no Wikipedia:
“Em termos simples, uma rave é um evento social, um fenômeno da cultura juvenil moderna. Na maioria dos casos, uma rave é uma festa de dança em que os participantes experimentam um senso de comunidade e uma consciência elevada através da audição de música e da resposta à música através de (1) movimento físico livre ou dança, (2) uma mudança positiva de humor, e (3) interação falada e não falada com outros participantes.“¹
E como o próprio texto afirma adiante, “a rave é uma experiência subjetiva”.
Fica claro, pela própria definição de rave, que ela é uma atividade voltada para o sujeito que participa dela e centrada nos sentimentos subjetivos que a pessoa experimentará enquanto o faz. Dessa maneira, não é contraditório que diversos religiosos a tenham utilizado, junto com o uso de alucinógenos, para “exacerbar” a percepção que o indivíduo tem de si mesmo e das coisas ao seu redor, assim como de sua visão de mundo; essa assimilação está bem documentada no livro False Dawn (Falsa Aurora), do escritor Lee Penn, tal como mostra o seguinte trecho da obra:
“Robert Jesse e Jeff Bronfman debruçaram-se sobre os aspectos religiosos das drogas alucinogénias e discutiram as implicações do seu trabalho para a política em matéria de droga.” (p. 374)
E, citando o artigo Do Drugs Have Religious Import? A Thirty-Five-Year Retrospect (As drogas têm importância religiosa? Um Retrospeto de Trinta e Cinco Anos), de Huston Smith:
“A minha sugestão pessoal, muito experimental, é ver se as autoridades responsáveis pelas drogas estariam dispostas a aprovar uma experiência devidamente monitorizada sobre o assunto. Encontrar uma igreja ou sinagoga, presumivelmente pequena, que esteja sinceramente aberta à possibilidade de Deus poder, em determinadas circunstâncias, atuar através de plantas ou substâncias químicas selecionadas (como eu pessoalmente acredito que fez através da Soma e da febre tifoide de Newman e continua a fazer através do peiote da Igreja Nativa Americana). Permitir que esta igreja inclua legalmente um psicoativo como sacramental, talvez uma vez por mês na sua Eucaristia. E, finalmente, encarregar cientistas sociais profissionais de observar o que acontece a esta congregação no que diz respeito a traços religiosos – nomeadamente compaixão, fervor e serviço. Uma variante desta proposta seria obter permissão legal para os estudantes do seminário terem pelo menos uma experiência com enteógenos num ambiente religioso.” (p. 85)
Robert Jesse, citado acima, não só considera positivo o uso de alucinógenos para obter melhores e mais profundas “experiências religiosas”, como é co-fundador da Rhythm Society (“Sociedade do Ritmo”), “uma organização dedicada a criar espaço para formas diretas e experimentais de prática espiritual, celebrando o espírito através da música, da dança, da meditação e de instrumentos musicais (“play”)”
E para que não reste dúvida sobre a ligação entre drogas e rave, diz o autor daquele texto citado acima:
“As drogas fazem parte de muitas cenas (sic) de música e festas, não apenas da cena rave. […] As drogas associadas à cena rave não são geralmente drogas “duras”. Embora existam excepções localizadas, as drogas mais comuns na cena rave são aquelas que melhoram a experiência rave e que não causam dependência física.”
Algumas das drogas citadas: marijuana, LSD e MDMA (Ecstasy).
É, portanto, fato assentado que há uma confluência de objetivos no uso de drogas que mudam o estado da consciência, e a finalidade da rave. Assim como nesta, o que as pessoas buscam quando utilizam esse tipo de droga é um tipo de “abertura espiritual ou da consciência”, e, como ela é usada na maior parte das raves (como a psicodelia), necessariamente deve favorecer a consecução dos objetivos comuns — pelo contrário, não seria utilizada.
E o que seria a adoração católica? Segundo o Catecismo da Igreja Católica:
“A adoração é o primeiro ato da virtude da religião. Adorar a Deus é reconhecê-lo como Deus, como o Criador e o Salvador, o Senhor e o Dono de tudo o que existe, o Amor infinito e misericordioso. “Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a Ele prestarás culto” (Lc 4,8), diz Jesus, citando o Deuteronômio (6,13).”³ (2096)
E ainda:
“Adorar a Deus é, no respeito e na submissão absoluta, reconhecer “o nada da criatura”, que não existe a não ser por Deus. Adorar a Deus é, como Maria no Magnificat, louvá-lo, exaltá-lo e humilhar-se a si mesmo, confessando com gratidão que Ele fez grandes coisas e que seu nome é santo. A adoração do Deus único liberta o homem de se fechar em si mesmo, da escravidão do pecado e da idolatria do mundo.” (2097)
De que maneira um evento cujo fim último é a própria satisfação espiritual (continuarei usando esse termo, embora ambíguo nesse contexto) e sentimental, através de músicas com ritmos e batidas rápidas e frenéticas, dança e até mesmo uso de drogas alucinógenas, poderia servir para adorar a Deus, reconhecendo “o nada da criatura”, libertando o homem “de se fechar em si mesmo, da escravidão do pecado e da idolatria do mundo”? Quais são os frutos espirituais, não digo do uso de drogas, mas da participação em raves? Um estudo científico seria necessário para responder essa questão tão ampla, mas é possível, através do que as pessoas disseram a respeito dessa “rave católica”, saber quais são esses frutos.
Segundo o Diário do Rio:
“Nas redes sociais, os vídeos do evento receberam diversos comentários positivos, destacando como “esse tipo de evento é cativante”
E a organização do evento, movimento Juventude pela Paz:
“A mensagem é que a fé pode ser vivida de maneira diferente, sem perder sua essência”
Segundo o mesmo jornal, “o padre recebeu a benção do Papa Francisco para seus fones de ouvido, destacando a conexão entre espiritualidade, música e tecnologia.” .
Que conexão seria essa, onde ambas vão em sentido contrário (tal como foi demonstrado acima)? Se os frutos devem seguir a natureza da árvore, da rave só poderá surgir pessoas cada vez mais centradas em si mesmas e nas suas crenças estritamente pessoais, subjetivas, onde o culto a Deus é substituído pelo culto à legião, à festa dionísica e onde o sacrifício Dele cede lugar a um tipo de explosão orgônica sob músicas cativantes e danças sensuais.
Não tirarei conclusões precipitadas sobre o que verdadeiramente motivou o evento e o “uso de novas ferramentas para divulgar valores cristãos”, nem se as drogas entram ou entrarão algum dia no meio disso (nesses tempos de crise, tudo é possível), mas concluirei com um questionamento: será possível chegar a determinado fim (adoração a Deus, objetiva) indo em sentido contrário (adoração de si mesmo, subjetiva)? O movimento da Nova Era diz que sim; a Doutrina da Igreja Católica, que não. Which way, western man?