A Rússia pós-soviética, em busca de uma nova identidade, encontrou na religião e no conservadorismo uma ferramenta poderosa para consolidar sua influência global. Essa abordagem, articulada com o apoio da inteligência russa, utiliza movimentos conservadores para minar as democracias liberais, polarizar o Ocidente e promover a Rússia como a defensora da “ordem moral”. A relação entre Konstantin Malofeev, a inteligência russa, e movimentos conservadores como HazteOir e CitizenGO exemplifica a estratégia mais ampla do Kremlin para usar uma “moralidade restauradora” como ferramenta geopolítica e cultural. Essa abordagem se consolidou após o colapso da União Soviética, quando a Rússia buscava se redefinir como uma nação moralmente distinta do Ocidente liberal e secular.
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Após o fim da União Soviética, a Rússia entrou em um período de profunda crise cultural, econômica e social. O vazio ideológico deixado pelo comunismo foi preenchido com narrativas que mesclavam a fé ortodoxa, o nacionalismo e a rejeição, fruto de um ressentimento, ao que era percebido como “decadência” vinda do Ocidente. Nesse contexto, o governo russo, liderado por Vladimir Putin, passou a promover valores conservadores como parte de sua estratégia de reconstrução nacional. O Estado russo, com apoio da Igreja Ortodoxa e de oligarcas como Malofeev, projetou esses valores internamente para unificar a população e externamente como uma forma de soft power, criando redes globais de movimentos conservadores.
Konstantin Malofeev é um oligarca profundamente ligado ao governo russo e à Igreja Ortodoxa. Ele desempenha um papel central na promoção da agenda moral do Kremlin. Ele usa sua riqueza para financiar iniciativas como o World Congress of Families (WCF), uma organização que defende valores tradicionais e é um canal de conexão com conservadores ocidentais.
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A rede espanhola HazteOir, organização espanhola fortemente preenchida por membros de grupos como a Opus Dei, criou a CitizenGO, em 2013, como uma plataforma internacional de mobilização conservadora. Alexey Komov, aliado próximo de Malofeev, ocupa uma posição no conselho da CitizenGO, indicando uma ponte direta entre a Rússia e a organização. Diversos relatórios de agências de inteligência sugerem que Malofeev ofereceu apoio financeiro e logístico para expandir a CitizenGO e sua influência global.
Embora seja o país que mais pratica o aborto, a Rússia influencia a agenda da CitizenGO, que inclui a defesa da “família natural”, a oposição ao aborto e aos direitos LGBT, alinha-se perfeitamente com os objetivos do Kremlin. Essas questões não apenas reforçam a posição moral da Rússia, mas também criam divisões em democracias ocidentais, minando a coesão social.
Após a queda da URSS, o Kremlin utiliza movimentos conservadores para reforçar sua agenda de influência. A parceria com HazteOir e CitizenGO permite à Rússia alcançar uma base global, infiltrando-se em debates culturais e políticos em vários países. Essa colaboração também reflete uma estratégia deliberada para fortalecer laços com conservadores cristãos, especialmente nos EUA e na Europa, unindo-os em torno de uma causa comum que serve aos interesses russos.
Ao promover valores conservadores, a Rússia busca se apresentar como o líder de um movimento global contra a modernidade liberal, da mesma forma como no século passado liderou o movimento socialista contra o capitalismo. Agora essa estratégia combina religião, política e operações de influência para projetar poder além de suas fronteiras. A disseminação de ideais conservadores ajuda a polarizar as sociedades ocidentais, criando tensões entre progressistas e conservadores, mas direcionando para o apoio à Rússia direto ou indireto. O apelo a valores tradicionais indistintamente (ecumênico) também legitima o regime de Putin, consolidando seu poder ao apresentar a Rússia como guardiã da moralidade.
Origens da colaboração pode ser traçada até 1995, quando Allan Carlson, um historiador americano conservador, foi convidado pelo sociólogo russo Anatoly Antonov e posteriormente embaixador da Rússia nos EUA, para discutir a preservação da “família natural”.
O encontro ocorreu durante um período de transição pós-soviética na Rússia, onde a sociedade enfrentava rápidas mudanças culturais e econômicas. Este evento marcou o início do que viria a ser o World Congress of Families (WCF), atualmente IOF, uma das maiores plataformas globais contra os direitos LGBT.
O WCF foi formalmente estabelecido em 1997 e começou a realizar congressos internacionais que reuniam líderes religiosos, políticos e ativistas de direita de várias partes do mundo. A Rússia desempenhou um papel central nos esforços do WCF, promovendo sua agenda moral e utilizando-a para fortalecer os laços com os conservadores ocidentais. Durante as décadas seguintes, essa aliança se expandiu, com políticos americanos conservadores visitando a Rússia e vice-versa.
A parceria foi cimentada por interesses compartilhados em resistir à influência do Ocidente liberal e secular, promovendo valores tradicionais como base para políticas nacionais e contou com vasto apoio estratégico do Kremlin. O movimento conservador foi usado pelo governo russo como uma ferramenta de soft power para exportar seus valores e desafiar o liberalismo ocidental.
Por meio de agentes como Antonov, o Kremlin buscou criar pontes com líderes religiosos e políticos nos EUA, promovendo agendas conservadoras que pudessem dividir a sociedade americana e enfraquecer sua unidade política, o que aponta para o mesmo alvo da Guerra Fria de outrora.
O World Congress of Families (WCF), embora inicialmente apresentado como um esforço acadêmico e religioso, serviu como plataforma para expandir a influência russa nos círculos conservadores americanos.
Como sociólogo, Antonov tinha credenciais acadêmicas que ajudaram a mascarar sua função como possível agente do Kremlin, seu papel foi fundamental para abrir portas para alianças com líderes religiosos americanos, usando a retórica da “defesa da família natural” como um ponto de convergência. A influência de Antonov também pode ser vista na formulação de leis russas repressivas contra direitos LGBT e feminismo, alinhadas com a visão do Kremlin para consolidar o poder interno e reforçar sua posição moral no exterior. Nos anos seguintes, a Rússia intensificou seus esforços de influência através de campanhas digitais, financiamento oculto de organizações conservadoras e encontros bilaterais.
Esses esforços foram amplamente revelados durante as investigações sobre a interferência russa nas eleições presidenciais de 2016, quando redes conservadoras foram alavancadas para espalhar desinformação e polarizar o eleitorado americano, confirmando que a Rússia utilizou Antonov e outros agentes do Kremlin para infiltrar e cooptar movimentos conservadores ocidentais, promovendo uma agenda que servia tanto a interesses geopolíticos quanto à estabilização de seu regime internamente. Essa estratégia tornou-se uma das principais ferramentas do Kremlin para expandir sua influência global enquanto enfraquece democracias liberais no Ocidente.