As recentes declarações de Donald Trump sobre possível anexação do Canadá, Groenlândia e antigos territórios norte-americanos, como o Panamá, puseram alguns países europeus em alerta sobre suas defesas nacionais, como é o caso da Dinamarca, Rússia e o Reino Unido, que exercem controle sobre o Atlântico Norte. Isso também parece enfraquecer ou dividir internamente a OTAN, organismo que está no centro do enfrentamento com a Rússia na Ucrânia. Estaria Trump preparando uma justificativa para sair da organização? As declarações também possuem relação com novas e antigas doutrinas geopolíticas, mostrando que o mandatário norte-americano pode estar buscando um alinhamento amplo com as novas propostas geopolíticas. As falas podem ser relacionadas tanto à Quarta Teoria Política, de Alexander Dugin e o projeto Multipolar russo, quando a uma possível reestruturação da Doutrina Monroe. Mas o mapa geopolítico de Trump guarda grandes semelhanças com o projeto de um velho e aparentemente fracassado movimento do início do século passado que vem atraindo cada vez mais o interesse no Vale do Silício e pode estar por trás das ideias de criptomoedas.
Não há dúvidas de que Trump está bastante alinhado ao projeto multipolar da Rússia, que aparentemente “autoriza” grandes impérios mundiais a anexar territórios que julguem de direito histórico ou cultural como parte de seus impérios. Neste sentido, Trump pode estar buscando uma doutrina que embase essa restauração que ele deu o nome de MAGA. Mas ao contrário do que se pensa, essas novas doutrinas geopolíticas nada têm de oposto ou adversárias do atual globalismo que dizem combater.
Não é novidade que o seu marqueteiro do primeiro mandato, Steve Bannon, aproximou-se do ideólogo russo Alexander Dugin, mostrando entusiasmo pela utopia multipolar. Já o vice atual de Trump, D. J. Vance, é um russófilo declarado e financiado pelo neo-globalista Peter Thiel, que é membro do Clube Bildenberg. Thiel é defensor de uma agenda de “transcendência por meio da liberdade”, amalgamando uma coleção de cultos e doutrinas espiritualistas.
As declarações de Trump podem, evidentemente, servir de ativação para os militantes que invadiram o Capitólio em 2020, cujas ideias são sintetizadas no movimento QAnon, uma típica rede de desinformação russa que colocou milhares de direitistas dentro de uma bolha facilmente classificável. Mas a sua relação mais óbvia é com uma outra maneira de seu movimento surfar na nova onda do globalismo. O Technate of America, assim como o slogan “Make America Great Again”, também prometia uma grande América: o movimento pregava exatamente a anexação do Panamá, Groenlândia e Canadá aos EUA. E ao contrário do que muita gente pensa, o movimento da década de 1930 nunca morreu.
Technate of America e Elon Musk
Na primeira metade do século XX, um grupo chamado Technocracy Inc, ou movimento tecnocrático, ambicionava reorganizar toda a sociedade colocando cientistas no comando ao invés de políticos. Aparentemente, o movimento fracassou naquela época, mas a sua mensagem subjacente ainda atrai muitos no Vale do Silício. Não podemos dizer que ela não está bastante presente na vida de Elon Musk, tanto nas suas ideias quanto na história da sua família.
Em 2019, Musk tuitou: “acelerando o desenvolvimento da Starship para construir a Tecnocracia Marciana”.
Facilmente inserido no horizonte multipolar defendido pelas ideias de Dugin e da própria política externa russa atual, as declarações de Trump levam facilmente à associação com um antigo projeto do Technocracy Inc, intitulado “Technate of America” (mapa na imagem em destaque), que incluía exatamente o Canadá e a Groenlandia numa espécie de “polo americano” do mundo.
Trata-se de um projeto do movimento tecnocrático, surgido nos anos 1920 e 1930, nos EUA e Canadá que defendia uma sociedade governada por engenheiros, cientistas e outros especialistas técnicos, em vez de políticos, algo semelhante à ideologia positivista de Augusto Comte, que domina o oficialato brasileiro desde os tempos imperiais. O Technate seria uma reorganização da sociedade norte-americana baseada na eficiência técnica, controle total dos recursos e a economia por meio de ciência e tecnologia.
O avô de Elon Musk, Joshua Haldeman, se interessou pelas ideias da Technocracy Inc. durante sua juventude no Canadá. Ele se envolveu com o movimento durante os anos 1930 e 1940, quando a organização ganhou força em meio às dificuldades da Grande Depressão. A Technocracy Inc. criticava o capitalismo e o socialismo, propondo a distribuição de recursos com base no consumo energético e no bem-estar geral, em vez de depender de sistemas monetários tradicionais (criptomoedas?).
O fundador da Technocrary, Howard Scott, declarava-se “salvador” do problema dos preços e da economia que chegaria a um colapso. “Sob o Technate, seremos responsáveis pela saúde e bem-estar de cada ser humano”, declarou. “Isso é mais do que qualquer governo político já fez.”
Um dos projetos dos tecnocratas da época era a famosa renda básica universal, que seria de US$ 1.000 mensais.
O contexto em que surgiu a utopia da Technocracy era o da ameaça de perda de empregos que seriam substituídos por máquinas, algo que guarda grande similaridade com o atual sucesso da Inteligência Artificial.
Geograficamente, o Technate of America era uma espécie de domínio do norte cujo mapa abrangia do Panamá ao Polo Norte.
Originalmente, a tecnocracia manteve-se viva nos políticos democratas. O empreendedor do Vale do Silício Andrew Yang, buscou a nomeação democrata para presidente dos EUA, em 2020, fazendo campanha de uma renda básica universal. Mas os republicanos vêm flertando facilmente com essa doutrina. A mudança alegada de Musk, que disse ter votado muito tempo nos democratas, parece ser um sinal dessa mudança.
Na Cúpula Mundial de Governos em Dubai em 2017, Elon Musk expressou seu apoio a uma renda básica garantida. “Desemprego em massa” será um “desafio social massivo”, Musk alertou. Ecoando palavras que seu avô provavelmente proferiu muitas vezes, Musk concluiu: “Haverá cada vez menos empregos que um robô não possa fazer melhor. Com a automação virá a abundância.”
Um dos termos mais usados na indústria da tecnologia é “disrupção”, que significa rompimento de paradigma de um período histórico para um salto qualitativo em matéria de produção e inovação. Esta tem sido a marca da “nova era” do globalismo, que aponta para um cada vez mais forte e persuasivo anti-sistemismo com vias de uma ampliação e maior abrangência.
Durante a Pandemia, cresceu a aversão à chamada “big tech”. Atualmente, tanto Musk quanto Zuckerberg, os maiores representantes do grupo, parecem estar cada dia mais alinhados às novas prerrogativas libertárias. Bill Gates, que se aproxima de Trump causando ainda mais confusão entre conservadores, parece ir no mesmo sentido. Será que veremos os mestres das big techs se tornarem heróis para os conservadores?
Misticismo e tecnocracia
Quando se fala em tecnocracia a primeira ideia que vem à mente é o materialismo, utilitarismo etc. Essa parece ter sido a tônica de grande parte do último século, apesar de movimentos paralelos que agora ressurgem num novo espiritualismo embasado justamente na tecnhologia.
Hoje a multipolaridade russa que orienta ideias geopolíticas como o Brics ressurge sob um manto de tradições ancestrais e mitos regionais, lastros das novas “epistemes” que orientarão o novo contexto de igualitarismo relativista supostamente hierárquico de Dugin. Ora, a ideia tecnocrática também possui suas ligações místicas para acrescentar a essa colcha de retalhos.
O avô de Musk, Haldeman, não foi apenas um defensor da tecnocracia. Ele e sua família mudaram-se para a África do Sul, onde empreendeu aventuras em busca da cidade perdida de Kalahari, lenda associada a movimentos esotéricos muito em moda naquela época. Cidades perdidas como Shamballa, Agartha e Shangrilá eram a febre dos espiritualistas que buscavam conhecimentos secretos. Da mesma forma que o avô de Musk, o ocultista Gurjieff também empreendeu suas buscas no deserto de Gobi. Kalahari é uma região da atual Namíbia, território que foi colônia alemã até a Primeira Guerra Mundial. Como se sabe, naquela época o desejo por uma sabedoria ancestral perdida também moveu os nazistas.
A substituição de políticos por sábios (ou cientistas) já foi pensada muito antes, sendo parte indissociável das utopias espiritualistas de matiz esotérica e ocultista que embasaram, por exemplo, a eugenia antes e durante o período nazista. Os nazistas, como se sabe, misturavam um ideal espiritualista com uma retórica científica. Ou será que as duas coisas são indissociáveis?
Desde o início dos anos 1930, o eugenista Alexis Carrel defendeu o uso de câmaras de gás para livrar a humanidade de seu “estoque inferior” e endossou o racismo científico. Em 1935, Carrel publicou um best-seller, L’Homme, cet inconnu (“Man, The Unknown”), que Carrell defendeu, em parte, que a humanidade poderia melhorar seguindo a orientação de um grupo de elite de intelectuais e incorporando a eugenia à estrutura social. Esta utopia era parte do pacto sinarquista.
As ideias de Carrel coincidiam com as ambições do fundador do globalismo, H.G. Wells, e Sergei Chakhotin, que trabalhavam para o Carrel’s Institute. Chakhotin era um biólogo russo emigrado que trabalhou com o fisiologista Ivan Pavlov. Chakhotin teve vários contatos com a Fabian Society, incluindo Bertrand Russell, seu “grande amigo” H. G. Wells.
Em 1944, Chakhotin fundou a Science Action Liberation (SAL), para cumprir o “Plano”, que coincidia exatamente com as ideias da Conspiração Aberta de Wells, base tradicional do globalismo contemporâneo. Os cinco fundadores da SAL foram Pierre Girard, GE Monod-Herzen, François Perroux, Morris B. Sanders e Chakhotin. Monod-Herzen era membro da Sociedade Teosófica, bem como da Irmandade Polaires de René Guénon, e autor de obras sobre alquimia. Perroux, economista francês, aluno de Joseph Schumpeter e amigo de Carl Schmitt, foi Secretário-Geral da Fundação Francesa Carrel para o Estudo dos Problemas Humanos. Em 1934, Perroux recebeu uma bolsa Rockefeller que lhe permitiu viajar para Viena, onde conheceu Ludwig von Mises, cujos seminários ele acompanhou e cujo prefácio para a edição francesa ele escreveu em 1935.
Por trás disso, estava o movimento sinarquista, cuja filosofia foi desenvolvida pelo mestre ocultista Saint-Yves d´ Alveydre (1842-1909) continuado e mantido por sociedades secretas como a Maçonaria e outras organizações iniciáticas antigas. O projeto defende o estabelecimento de “um governo mundial único, uma economia única, uma religião sincrética única e um padrão geral de direitos humanos tendo em vista o bem-estar da humanidade e a eliminação das guerras”. Saint-Yves teorizou a existência de uma cidade subterrânea, Aghartha, que seria o centro do poder mundial onde viveria aquele que René Guenon, outro esoterista, descreveu como o “rei do mundo”.
Ocaso do globalismo: dinâmica revolucionária
Está já bastante evidente que o globalismo, proponente da chamada Nova Ordem Mundial, passa por um momento de transformação e adaptação frente às conjunturas globais. O movimento Woke, último suspiro do identitarismo sexualista, é atacado em todo o mundo tendo como agentes os seus próprios promotores. Depois da onda conservadora que levou à primeira eleição de Trump, Brexit, o avanço de Putin e a invasão do Capitólio, muitos líderes antes alinhados à esquerda globalista, de base liberal e social-democrata, parecem estar percebendo o momento de uma mudança de posicionamento de maneira a “reciclar” suas utopias e adaptá-las à renovação das expectativas revolucionárias por parte de movimentos como o eurasianismo, o BRICS, etc, renovando o discurso anticolonialista das esquerdas e adaptando-o aos sentimentos de humilhação popular que ganhou vozes anti-sistema desde a Pandemia.
Como já viemos alertando, a Pandemia foi, na verdade, um projeto de saturação, o que explica os seus exageros, como prisões e censura de maneira mais ampla e numa postura de ousadia que poucos compreenderam. A pandemia de covid-19 representou uma caricatura criada pelo próprio globalismo como parte dessa mudança de posicionamento e renovação das expectativas igualitárias e libertárias que estavam estagnadas e afastadas do seu sentido original. Trata-se de um processo típico da Revolução.
É fundamental recordar que na Revolução Francesa, os primeiros revolucionários terminaram guilhotinados depois de terem cumprido seu papel, dando lugar à nova geração ainda mais radical, mas com uma linguagem mais adaptada e polida, que pudesse converter-se num sentimento de equilíbrio e harmonia com a nova realidade construída pelo terror. O terror foi sucedido pela Restauração, um movimento que manteve e estabeleceu finalmente todas as propostas da agenda revolucionária, já com a devida moldura de normalidade e tendo conquistado não mais o campo das ideias, mas os corações e as almas. Isto é precisamente o que ocorre no atual cenário, quando Mark Zuckerberg desmonta em sua plataforma as agências de checagem e seu mecanismo de censura para dar lugar a uma nova era de aparente liberdade.
Em um momento em que conservadores estão cada vez mais ávidos pela participação política e ocupação de espaços, o estudo dessa estrutura parece fundamental. No entanto, esse estudo também mostra o quanto os próprios conservadores vão, aos poucos, servindo a interesses que dizem combater. Afinal, no âmbito da América Latina, o mundo multipolar se concretiza pelo projeto chamado Pátria Grande, a cargo do Foro de São Paulo. Mas esta é outra história.