Marcos Akira d’Ávila | Especial para Regina Milites*
Uma característica dos escritos perenialistas é a sutileza com excessiva “sofisticação intelectual”, que pode induzir a alma a cair na soberba, levando a pessoa desavisada a adentrar em sendas espirituais perigosas, movida pelo fascínio de um suposto conhecimento superior oculto
Wolfgang Smith foi um matemático, físico e filósofo, conhecido principalmente pelo seu trabalho de interpretação das teorias científicas modernas, notadamente da física quântica, cosmologia e evolucionismo. Falecido recentemente, em julho de 2024, deixou nesta área um legado que não pode ser desprezado, tendo em vista a importância do tema e a sua contribuição relevante à filosofia da ciência, dado o seu profundo conhecimento científico e filosófico. Declaradamente católico, Wolfgang Smith atuou em círculos importantes da escola tradicionalista ou perenialista, tendo contribuído na revista “Sophia: The Journal of Traditional Studies”, onde muitos capítulos de seus livros são reimpressões de artigos publicados nesta revista. Seus principais livros que abordam a interpretação das teorias científicas estão traduzidos para o português e estão difundidos em meios católicos no Brasil e no exterior.
Fazendo contraposição às interpretações cientificistas e materialistas, que são praticamente hegemônicas no meio científico das universidades e que permeiam a sociedade em geral como critério de verdade, Wolfgang Smith propôs uma ontologia buscando esclarecer o que são os objetos estudados pela ciência, apoiando-se nas filosofias platônica, aristotélica e escolástica e, em certa medida, na filosofia hindu. Combateu o cientificismo materialista nesses tempos em que é lugar comum a crença de que a chamada “comprovação científica” é a palavra final em qualquer discussão sobre qualquer assunto. Longe de ser o único, muitos autores de influência tomista também trataram do problema da interpretação das teorias científicas desde a primeira metade do século passado, como Pierre Duhem (em certa medida) e Jacques Maritain e, mais recentemente, William A. Wallace e Edward Feser.
Em suas principais obras, o ponto de partida é a crítica à filosofia cartesiana e de como ela está incorporada na cosmovisão do cientista, mesmo que esta não seja necessária para a boa prática científica. Ele argumenta que a weltanschauung (cosmovisão) científica admite sem ressalvas a chamada bifurcação cartesiana, que postula que somente aquilo que possui extensão pode ser conhecido objetivamente (res extensa), reduzindo as qualidades não quantificáveis como puramente subjetivas (res cogitans).
Em seu “O Enigma Quântico”[1], publicado originalmente em 1995, e talvez o seu livro mais conhecido, Smith apresenta uma abordagem que demonstra que os objetos estudados pela física não são de fato objetos corpóreos reais, mas sim objetos abstraídos de toda qualidade, contendo apenas os elementos quantificáveis, chamados objetos físicos. Assim, a física lidaria com os objetos físicos, que corresponderiam à materia signata quantitate (matéria marcada pela quantidade) dos escolásticos, chegando à conclusão de que os objetos da física quântica deveriam ser entendidos como uma potência (no sentido aristotélico), indo de encontro com o entendimento de Werner Heisenberg sobre o que seriam os entes quânticos. O objeto físico seria, então, atualizado no processo de medição, onde este ato corresponderia a um modo de causalidade que se dá em níveis ontológicos distintos, do físico para o corpóreo, que ele chamou de “causalidade vertical”.
Posteriormente, Smith tratou de vários outros problemas da ciência, como a percepção visual, o problema da não-localidade, a cosmologia do big-bang, dentre outros e que estão em livros como “Ciência e Mito” [2] e “A Sabedoria da Antiga Cosmologia”[3]. Também fez críticas ao evolucionismo e aos graves erros em Teilhard Chardin em “Teilhardism and the New Religion”[4], sendo posteriormente revisado e republicado como “Theistic Evolution: The Teilhardian Heresy”[5]. Esses estudos o levaram a ampliar a sua concepção da causalidade vertical, chegando a propor uma ontologia chamada de cosmos tripartido, culminando no que ele chamou de totalidade indivisa, exposta em seus últimos livros “A Ascensão Vertical”[6] e “Física: Uma ciência em busca de uma ontologia” [7]. Segundo ele próprio, trata-se de uma ontologia de base platônica, que seria equivalente à concepção cosmológica da tradição védica, que forneceria uma chave interpretativa para as ciências, incluindo também as chamadas ciências tradicionais, como a astrologia, definindo o alcance ontológico das ciências modernas.
Tradicionalismo e Perenialismo
A obra de Wolfgang Smith pode ser vista dentro do contexto da escola tradicionalista ou perenialista. Tendo admitido que René Guénon exerceu nele uma influência considerável, apresentou as suas divergências, principalmente quanto à visão radicalmente negativa de Guénon em relação à ciência moderna, que a considerava como uma forma degenerada de conhecimento.
A crítica à ciência moderna, considerando-a como uma forma inferior de ciência em relação às ciências tradicionais, sempre foi abordada por autores perenialistas importantes, como Titus Burckhardt e Sayeed Hossein Nasr. Em alguns de seus livros, ele aborda o tema das ciências tradicionais e da cosmologia de forma muito próxima a esses autores. Assim, não é possível desvincular o conjunto da obra de Wolfgang Smith do perenialismo.
Vale dizer aqui que Wofgang Smith rejeitou a unidade transcendente das religiões de Frithjof Schuon, assumindo uma posição de que seria impossível a convergência das religiões a um “cume” comum; porém, de modo não muito claro, admitia a veracidade das religiões, apesar de não convergentes. Em sua comparação da escatologia védica e cristã com base na totalidade indivisa, ele afirmou:
“há uma distinção categórica a ser feita entre a tradição védica e cristã; e embora não haja nenhum conflito entre as duas – o que significa que ambas podem ser simultaneamente verdadeiras –, elas não são de modo algum equivalentes”[7]. [grifo nosso]
Smith também acreditava na existência de uma tradição primordial, com base em seus estudos e em suas diversas viagens a locais da Índia e do Nepal, onde a “cultura McDonald’s não havia ainda penetrado” [8]:
“Estou convencido de que existe uma sabedoria pré-cristã de origem supra-humana, perpetuada em uma corrente ininterrupta de transmissão de mestre a discípulo – começando, possivelmente, com o próprio Adão – cujos vestígios ainda podem ser encontrados em várias partes do mundo. Passei a acreditar, além disso, que a sabedoria em questão – esta verdadeira sophia perennis – é algo de que nós, na época atual, necessitamos urgentemente”. [8]
Gnose Cristã
Uma obra pouco conhecida de Wolfgang Smith é “Christian Gnosis: From Saint Paul to Meister Eckart” [9].
Trata-se da exposição do que ele considerava ser um autêntico esoterismo cristão, que remontaria ao cristianismo primitivo, estando em conformidade com a doutrina de São Paulo. Apesar de ele não trazer o assunto de forma muito explícita em seus outros escritos, o conteúdo deste livro apresenta visões heterodoxas, que também estão presentes no livro “In Quest of Catholicity”[8], que é uma coletânea de correspondências trocadas entre ele e Malachi Martin.
Dentre os conteúdos deste livro, ele dedica um capítulo para expor a cabala cristã do período do Renascimento; outro é dedicado à “gnose de Jacob Böheme” e dois capítulos dedicados a Meister Eckart. Segundo o autor, o estudo do livro
“…não é um exercício acadêmico, mas tem de fato um objetivo eminentemente prático. O próprio conceito de gnose, na medida em que é compreendido, afeta a nossa percepção de tudo o mais. A gnose pode ser comparada ao “ponto no infinito” que – embora inacessível – define uma perspectiva. Virtualmente todo texto bíblico (de qualquer um dos Testamentos), bem como toda concepção básica de teologia, revela um sentido oculto e muitas vezes “surpreendente” quando visto “em face da gnose””[9] [grifos nossos]
Há no livro uma menção de que o seu conteúdo não seria para todos e que serviria para pessoas que “precisam de um esoterismo cristão bona fide
“que, para alguns, um ensinamento desse tipo pode de fato fornecer o único acesso efetivo para seguir a Cristo. Isto parece ser verdade especialmente no caso dos aspirantes que, de alguma forma, tiveram contato com a sabedoria do Oriente, o suficiente talvez para lhes dar “um gosto da gnose”. Tais pessoas exigem, no plano doutrinário, mais do que um catecismo, mais do que aquilo que as autoridades didáticas da cristandade estão atualmente preparadas para fornecer. Deve-se ainda notar, neste contexto, que a religião cristã ficou sujeita ao ataque da modernidade de modo mais extenso e com grande ferocidade, do que qualquer outra tradição espiritual, e consequentemente sofreu grande devastação. A necessidade de “carne forte” – a gnose doutrinária – dentro do domínio cristão é, portanto, mais aguda do que nunca: perguntamo-nos, de fato, se mesmo o mais valente fideísmo pode resistir por muito tempo ao ataque contemporâneo.”[9]
Creio que as passagens citadas acima não precisam de comentários, pois são autoexplicativas.
Algumas considerações finais
O intuito deste artigo foi chamar a atenção sobre a obra de Wolfgang Smith como um todo, mostrando que a sua leitura e estudo requer cuidados e sérias considerações sobre as concepções religiosas e espirituais presentes em sua obra. Para aqueles que têm interesse ou atividade profissional relacionada à ciência, a leitura de Wolfgang Smith pode ser vista como uma solução ao problema do cartesianismo e aponta para uma restauração da inteligibilidade no conhecimento das ciências naturais.
Porém, deve-se enfatizar que, embora suas obras forneçam chaves e insights importantes na filosofia da ciência, os desdobramentos de sua ontologia também devem ser examinados em suas consequências espirituais. Assim, cabe ao estudioso católico ir além e examinar a sua obra também no contexto do perenialismo e de suas incursões no chamado “esoterismo cristão”. Ainda, a sua ontologia do cosmos tripartido e da totalidade indivisa, requer um estudo cuidadoso quanto ao seu real alcance metafísico, tal como defendido por ele em seus livros. Uma característica dos escritos perenialistas é a sutileza com excessiva “sofisticação intelectual”, que pode induzir a alma a cair na soberba, levando a pessoa desavisada a adentrar em sendas espirituais perigosas, movida pelo fascínio de um suposto conhecimento superior oculto.
* Artigo presente na segunda edição da revista Regina Milites
Referências
[1] W. Smith; “O Enigma Quântico”; Vide Editorial, 2011. (Publicado originalmente em 1995)
[2] W. Smith; “Ciência e Mito”; Vide Editorial, 2017. (Publicado originalmente em 2010)
[3] W. Smith; “A Sabedoria da Antiga Cosmologia”; Vide Editorial, 2017. (Publicado originalmente em 2003).
[4] W. Smith; “Teilhardism and the New Religion”; Tan Books and Publishers, Inc, 1988.
[5] W. Smith; “Theistic Evolution: The Teilhardian Heresy”, Angelico Press/ Sophia Perennis, 2012
[6] W. Smith; “A Ascenção Vertical: Das Parículas ao Cosmos Tripartido e Além”; Ed. Speculum, 2022. (Publicado originalmente em 2021)
[7] W. Smith; “Física: Uma ciência em busca de uma ontologia”; Vide Editorial, 2024 (Publicado originalmente em 2023).
[8] W. Smith; “In Quest of Catholicity: Malachi Martin Responds to Wolfgang Smith”, Angelico Press, 2016.
[9] “Christian Gnosis: From Saint Paul to Meister Eckart”; Sophia Perennis, 2008.