Muitos tradicionalistas, em nome da defesa da fé católica e de um zelo com a Tradição, terminam por rejeitar o que chamam de “Igreja conciliar”, figura que sintetizaria os problemas ocorridos no Concílio Vaticano II. Evidentemente, o conhecimento destes problemas pode levar a grande sofrimento e dúvidas. É diante dessa postura de insegurança e fragilidade que surgem grandes tentações. Se o demônio se regozija em perder almas tornando-as impuras, muito mais vantajoso aos seus planos seria perder almas zelosas e piedosas, propondo-as pela lisonja da erudição e do conhecimento, caminhos secretos por meio do interesse vão por maquinações políticas e humanas.
O impulso legítimo de rejeitar os erros pode conduzir a uma divisão espiritual perigosa se não houver atenção devida a certos princípios fundamentais e característicos da tradição no sentido católico do termo. Afinal, a Sucessão Apostólica, o respeito e a obediência devida ao Magistério por meio do Papado, é uma parte indissociável desta tradição.
O primeiro problema dessa dissociação poderia ser de ordem pastoral, sobre a qual caberia apenas a leitura da Carta de São Clemente aos Coríntios, diante de uma série de divisões em que os leigos queriam depor o clero por supostas imposturas. Clemente os exorta e admoesta para que permaneçam na humildade, sendo preferível que sejam pequenos dentro da Igreja do que se sintam grandes fora dela. Sobre isso, basta ler a carta.
O segundo risco de apostasia aparece, em nossos dias, na ligação com determinadas heresias, ainda que de maneira sutil e não raro desapercebida pelos próprios fiéis que se entregam perigosamente a ela. Trata-se do erro do perenialismo gnóstico, também chamado pelo termo tradicionalismo, facilmente confundido com o zelo pela Tradição Católica. Ele surge justamente dessa dissociação entre Tradição e Fé Apostólica.
Poderia o católico dissociar a ideia de Tradição da Sucessão Apostólica? Não, pois o conceito católico de Tradição sem a devida submissão à Sucessão Apostólica, representado pelo Magistério e o Papado, aproxima-se perigosamente das noções não católicas do termo. Pior do que isso, aproxima a alma de uma ruptura com a ortodoxia católica por meio do perenialismo.
Indiferentismo em nova moldura
O perenialismo gnóstico repete, de maneira mais sofisticada, o erro do indiferentismo religioso que deu origem à modernidade, transposto agora em uma linguagem supostamente tradicional e antimoderna. Este erro induz à ideia de que todo conjunto de práticas tradicionais (incluindo as falsas religiões), poderiam ser espiritualmente válidas por estarem ligadas a uma “Tradição Primordial”, termo popularizado pelo místico francês René Guénon, que defendia a prática religiosa esotérica, isto é, iniciática como única forma de “satisfação metafísica”. É evidente que a maioria dos católicos tradicionalistas não chega a se tornar perenialista prático, tampouco buscar uma iniciação de tipo maçônica para se “realizar mefatisicamente”. No entanto, no seu conceito prático de tradição reside uma perigosa centelha do conceito gnóstico, o que já abre um perigoso precedente espiritual à ação do adversário que busca subverter a fé e levar as almas para fora da única comunhão possível com Cristo, isto é, por meio da Sua Igreja na forma como Ele a fundou. “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”.
Existe na doutrina católica uma interpretação de tradição que possa estar independente da Sucessão Apostólica que une os papas até o seu primeiro Papa, São Pedro, escolhido pelo próprio Cristo?
Essa mera hipótese de tradição descolada da descendência apostólica poderia aproximar a razão humana de uma conclusão que divide a alma humana. Como dissemos, para o perenialismo existiria uma tradição que uniria todas as grandes tradições, expressas pelas chamadas religiões tradicionais (judaísmo, islamismo, budismo, hinduismo e cristianismo). Uma coisa é afirmar que todas essas religiões, embora falsas, busquem a seu modo conectar-se com um modo culturalmente próprio de entender a divindade (o que é ainda bastante discutível e perigoso). Outra coisa, bastante diversa, é propor que os meios criados pelas falsas religiões se identificam, aproximam ou podem ser associados em forma análoga, à prática católica imortalizada na vida dos santos.
Neste sentido, não é possível nem lícito ao católico comparar as tradições existentes com a Tradição Católica como se fossem espécies do mesmo gênero. Isto porque a diferença explícita entre essas tradições e a Tradição católica não permite qualquer ponto de confluência: trata-se da Tradição revelada pelo próprio Deus comparada às doutrinas humanas e falsas, muitas delas com a atuação de inspirações espirituais desconhecidas (para não dizer demoníacas).
A Rebelião Primordial
Ainda que o perenialismo seja obviamente um erro para a maioria dos católicos, a conclusão dele pode estar implícita na postura pública dos que desferem palavras duras e muitas vezes divisórias contra o clero atual, padres, bispos e o Papa, como se fossem eles simples políticos corruptos que blasfemam contra um sistema social ou religioso idealmente perfeito.
O padre exorcista José Fortea alertou em certo momento sobre esta conduta: atacar verbalmente, sejam em palavras públicas ou em pensamentos de ódio e rancor, contra a autoridade sagrada abre perigosas portas para a ação daquele que é o autor da rebeldia primordial, o princípio mesmo do pecado e da irreverência, base sobre a qual se apoiam todas as revoluções. O mesmo se pode aplicar aos que levam outros a pensar ou falar contra a autoridade sagrada.
Mesmo padres e bispos ordenados insurgem-se contra o próprio clero, afirmando serem eles de uma “falsa Igreja”. Qual a diferença entre estes e os Adventistas e sua crença de que o Papa de Roma é o Anticristo? Da mesma forma, os protestantes acreditaram numa tradição transmitida somente pela fé e não pela fidelidade às pessoas que Cristo escolheu, os Papas. Lutero apenas acreditou que o Papa não era realmente Papa, o que o levou à divisão, apostasia e consequente condenação.
Esta é uma questão que muitas vezes se confronta com uma postura orgulhosa que conduz à irreverência às pessoas sagradas pelos sacramentos, independente de informações ou reflexões teológicas que se possa fazer, fruto de um anseio por “descobrir” verdades ocultas e caminhos escondidos. Tudo isso é obra da tentação do adversário que anseia por instigar a rebeldia.
Afinal, rebelar-se contra qualquer autoridade legítima, civil, social ou natural (patrão, pai e mãe), impõe uma dura pena neste mundo e na eternidade, expressa na advertência contra os pecados do 4º Mandamento (honrar pai e mãe). Se esta obediência tanto independe da sua justiça humana, embora esteja sujeita à Lei de Deus, muito mais pode se aplicar à Santa Igreja, fundada por Nosso Senhor por meio da escolha de homens igualmente falíveis. Cristo poderia ter desistido de Pedro após o primeiro Papa O ter negado três vezes, mas não o fez.
Cristo sabia que a Sua Igreja seria vítima da má ação dos seus próprios filhos e sobre isso há diversas passagens que exigem, ao mesmo tempo, rigor e zelo pelas coisas de Deus e paciência com o sofrimento. Se Cristo sofreu na cruz a maior dor já sentida, e somente suportada por se tratar do próprio Deus, tanto mais sofrerá a Sua Igreja no Calvário da História.
O sofrimento de ver a Igreja de Cristo ser desfigurada pelo demônio e pelos erros humanos é o castigo permitido por Deus pelos nossos pecados. Além do mais, por mais que isso cause sofrimento intelectual e moral, a uma certa indignação insuportável nos é exigido suportar, ainda que nenhuma impostura modernista ou progressista nos impeça de cumprirmos os mandamentos e os preceitos, assim como aproveitarmos das graças dos Sacramentos: ninguém é proibido de comungar estando em estado de graça, confessar-se e assistir missa, ainda que nos seja exigido em algumas circunstâncias buscar comunidades ou paróquias menos tomadas pelos erros modernos para isso.
Mas a rebeldia humana, ainda mais a moderna, não suporta o mínimo sofrimento.
A Rebeldia Primordial de Lúcifer foi um brado que ecoou na eternidade. Diante do plano divino de encarnar-se em Cristo e nascer de uma mulher, que além de redimir a mãe primordial (Eva) seria, ao final, coroada como Rainha dos Anjos, deixou Lúcifer escandalizado. Diante do brado de “não servirei”, São Miguel Arcanjo desferiu uma palavra que pode ser repetida a muitos apóstatas da fé católica: “Tu és um soberbo!”
O próprio Cristo disse que as portas do Inferno não prevalecerão. Teria ele mentido ou se enganado? Ninguém pode ter dúvidas de que não pode ser católico quem duvida das palavras do próprio Cristo. Também não pode a salvação se tornar restrita apenas a eruditos e intelectuais, aqueles que estudam maquinações e conspirações, escapando por sua própria argúcia das investidas do demônio. Necessitando da Graça Santificante, a única forma de proteção contra a ação diabólica até mesmo dentro da Igreja são os sacramentos, o que se obtém pela prática da confissão e da comunhão em missas. Esta prática é tanto mais eficaz quanto maior a disposição de obediência e humildade, contrição e submissão à autoridade legítima, a hierarquia sagrada instituída pelo próprio Cristo.
Os que recomendam a não assistência aos preceitos dominicais, substituindo-os por rosários e outras orações (boas em sim mesmas) afastam as pessoas dos únicos meios de obtenção da graça, além de ser em si mesmos atos de desobediência e rebeldia apenas enfeitadas com molduras de zelo e amor à tradição. Trata-se de uma impostura diabólica que se aproxima sorrateiramente como tentação aos mais piedosos para justamente afastá-los da graça necessária à sua santificação.