A direita mundial festejou a vitória política de Trump ao ter sobrevivido a um atentado mortal contra a sua vida durante um comício. A cômica reação dos jornais brasileiros ao atentado, que fingiram não ver nada, ajudou a sedimentar a imagem de Trump na direita como voz inconveniente ao sistema. Isso alimentou ainda mais o antissistemismo que serve de veículo, entre conservadores, para um emaranhado de crenças estranhas ao cristianismo, o que no mínimo tem servido para ofuscar a visão de muitos sobre os efeitos reais da eleição de Trump.
Diferente da direita festiva brasileira, conservadores internacionais mais atentos demonstram preocupação com relação ao vice de Trump, J. D. Vance. Infelizmente, a colonização da direita por agendas neofascistas, pró-Rússia e até islâmica, vem sendo ainda a tônica abraçada não apenas pela grande maioria dos políticos europeus, mas também nos EUA. No Brasil, vigora a indiferença, o meme e a festa, como se não houvesse amanhã.
De início, o que salta aos olhos é a incerteza sobre o conflito russo na geopolítica dos EUA. A posição de Vance, e consequentemente de Trump, sobre a guerra na Ucrânia, tenderá a privilegiar o lado russo, já que a tendência será os EUA pressionar a Ucrânia a aceitar o “acordo de paz” no qual uma parte do território ucraniano ficará com a Rússia. Este é o objetivo de Putin ao ajudar, de muitas maneiras, a campanha de Trump, assim como os seus aliados pela Europa. O que para Trump será uma vitória política, para Putin será uma vitória geopolítica muito maior.
Em matéria recente do The Guardian, as posturas de Vance sobre a Rússia e Ucrânia vão ficando mais claras.
“O senador Vance foi um dos principais oponentes do novo pacote de assistência à Ucrânia na primavera passada e expressou indiferença ao que acontece naquela guerra”, disse Michael McFaul, diretor do Freeman Spogli Institute for International Studies e ex-embaixador na Rússia. “Ao escolher Vance como seu companheiro de chapa, Trump deixou clara uma escolha muito clara para os eleitores americanos em novembro sobre política externa.”
De acordo com o site da Axios, entre os principais doadores da campanha de Trump e Vance incluem Elon Musk, Tucker Carlson e David Sacks, ambos vistos como “céticos” em relação à Ucrânia, uma maneira de dizer que são favoráveis ao expansionismo russo. Uma das formas clássicas desse apoio à Rússia tem sido na forma de culpabilizar os EUA e a OTAN, repetindo, no fundo, as críticas russas. Sacks, por exemplo, disse que Biden “provocou, sim, provocou, os russos a invadir a Ucrânia com conversas sobre a expansão da OTAN”.
Assim como funcionaram os protestos pacifistas que pediam o desarmamento nuclear durante a Guerra Fria, os erros da Rússia vão se convertendo em “os erros do Ocidente”, representados pelos EUA e pela OTAN, obstáculos específicos à geopolítica russa.
O alinhamento da direita mundial com a Rússia, tendência que aparece mais nas esferas intelectuais do que no programa eleitoral, corresponde a um processo lento de sedimentação de ideias indiferentistas cujo principal efeito é o afastamento dos conservadores de uma visão verdadeiramente cristã. No Reino Unido, partidos como o AfD já contam com líderes convertidos ao islã e declaram que isso é uma questão “de foro íntimo”, contrastando radicalmente com posições antimuçulmanas de poucos anos antes. Algo mudou a partir da invasão russa à Ucrânia.
Peter Thiel e o conservadorismo das trevas
O homem por trás de J. D Vance é Peter Thiel, o metacapitalista dono do PayPal e da Palantir, que vem assumindo posturas supostamente “conservadoras”. Ao menos é dessa forma que a esquerda internacional gosta de rotulá-lo, pois isso favorece a associação de conservadores com ditadores. Na verdade, Thiel se vê como uma espécie de profeta do metacapitalismo, aquela postura oligarca retratada por Olavo de Carvalho como a desistência da democracia de mercado por parte de grandes capitalistas, para os quais a liberdade já não é negócio. Se Thiel é um adversário perfeito para a retórica antiliberal dos eurasianos, islâmicos e neofascistas do mundo, ele acaba sendo também um potencial e perigoso algoz para a mesma direita que entusiasticamente milita por Trump atualmente.
Afinal, quando para a maioria dos capitalistas o natural seria ser um típico liberal, o surgimento de um monopolista antiliberal neste momento não deixa de ser algo absolutamente previsível. Isso o permite favorecer seus negócios de controle total ao mesmo tempo que reitera máximas antissistêmicas e antiesquerdistas, aparentemente anti-igualitárias. A restauração da hierarquia perdida no iluminismo através da inversão simétrica do velho humanismo é chamada de Iluminismo das Trevas, tendência irracionalista e violenta que está na base da pós-modernidade, do neofascismo ciberpunk e do “Grande despertar” que se propõe como concorrente e alternativa ao “grande reset” de Klaus Schwab e do Fórum Econômico Mundial.
Ao que anseiam pelo fim da censura, pela liberdade de expressão, causas em si mesmas mais ligadas a utopias revolucionárias do que propriamente conservadoras, o aumento do poder de Peter Thiel com a eleição de Trump pode ser um grande balde de água fria. Afinal, Thiel acredita no direito inalienável dos capitalistas pela conquista de monopólios. Isso devia deixar os conservadores atentos ou com um pé atrás quando se trata de um homem com grande poder sobre tecnologia e segurança na Internet atualmente.
Junto de Elon Musk, Thiel é o membro mais influente da chamada “máfia do PayPal”. É cofundador do Palantir, apoiado pela CIA e o primeiro investidor do Facebook. Ele está listado como um membro do Comitê Diretivo do Grupo Bilderberg.
Quando trabalhou em Stanford, Thiel conheceu a obra de René Girard, cuja teoria mimética o influenciou profundamente. De acordo com ela, os seres humanos tomam seus desejos emprestados dos outros, o que pode levar a uma escalada de níveis de violência e destruição, culminando na necessidade do “bode expiatório”. Para Girard, porém, o sacrifício de Cristo interrompeu esse processo, dando origem a uma nova humanidade. Girard coloca, assim, religião e mitologia no mesmo patamar, como importante função de coesão social e equilíbrio da tensão mimética. Thiel acredita, dessa forma, que o abandono da mentalidade cristã, atrelado indissoluvelmente a algo de todas as estruturas tradicionais da Civilização Ocidental, fatalmente dará no retorno da violência pagã.
Como ávido leitor de ficção científica, como Isaac Asimov e do ocultista Robert A. Heinlein, Thiel é aficionado pela obra de JRR Tolkien, ao ponto de ler O Senhor dos Anéis mais de dez vezes. Pelo menos seis de suas empresas levam nomes ligados à mitologia tolkieninana, incluindo a Palantir, que tem investido radicalmente em pesquisas de Inteligência Artificial.
Um dos sócios de Thiel na Palantir é Alex Karp, que tem doutorado em teoria social neoclássica pela Universidade de Frankfurt e teve como orientador ninguém menos que Jürgen Habermas. Karp se identifica como “neomarxista” e até socialista A dissertação de Karp, explica Weigel, oferece uma reinterpretação “sistemática” da obra de Theodor Adorno Jargão da Autenticidade – uma crítica à linguagem usada por existencialistas alemães como Martin Heidegger em particular – e “visa descrever o papel que a agressão desempenha na integração social, ou o conjunto de processos que levam os indivíduos de uma determinada sociedade a se sentirem vinculados a uma outro.”
Heidegger, segundo Víctor Farias, tem sido o principal nome resgatado por neofascistas e fundamentalistas islâmicos desde o final da Segunda Guerra, como parte da construção de um ideal antiliberal de sociedade que tem muita similaridade com a restauração de mitos ancestrais pelos nazistas. Afinal, com o fim de uma era cristã, seria preciso reempoderar os mitos, os sonhos ancestrais e resgatar um neopaganismo que já transparece no horizonte.
Procurando o que Thiel e Karp teriam em comum, Wiegel aponta que “Agressão no Mundo da Vida demonstra que ambos “consideram o desejo de cometer violência como um fato constante e fundador da vida humana”.
Com a frase “Toda grandeza está no ataque”, uma distorção da tradução de A República de Platão, Heidegger desfere seu “ataque” em um discurso reitoral de 1933, no qual declarava seu apoio ao nazismo. Simultaneamente, estava delineando-se um movimento que não terminaria com a Segunda Guerra, mas parece estar sendo resgatado a cada ano.
A ambiguidade é a linguagem do iluminismo das trevas, que ora quer restaurar a ordem por meio de uma mitologia nascida das ruínas do cristianismo (como queria Evola) e ora se diz porta-voz de uma destruição apocalíptica e salvífica (como quer Dugin).
Diante de tudo isso, de acordo com uma matéria do site Hangout Unlimited, a empresa de Thiel, a Palantir, aparece como nada menos que o motor no qual o estado de vigilância globalista funciona. Depois que Vance foi anunciado como vice de Trump, o cofundador da Palantir, Joe Lonsdale, bem como a própria Palantir, estavam apoiando um super PAC Trump-Vance chamado America PAC.
Se os conservadores não estão preocupados em vincular-se ao conservadorismo das trevas do horizonte pró-Rússia da direita americana, quem sabe ainda se preocupem com a sua querida liberdade de falar.
*Colaborou André Figueiredo