Em geral, os conservadores acostumaram-se a diagnosticar a mentalidade revolucionária como um sinônimo ou força integrada à ideia da modernidade. Quem pensa dessa forma, porém, mal sabe o que é mentalidade revolucionária, tampouco conhece conceitos básicos sobre o que seja a modernidade. A confusão de termos acabou se tornando endêmica atualmente, mas poucos estão dispostos a compreender a raiz do problema. Isso porque a tônica política e a metafísica dos noticiários inseriram o conservador médio em uma espécie de segunda realidade, incapacitando-o ao estudo e ao julgamento das ideias que o rodeiam.
Do ponto de vista contemporâneo, pode-se partir da observação de Eric Voegelin de que a modernidade é um grande sentido cultural e psicológico identificado com o gnosticismo, conjunto de correntes espiritualistas que se confundiam com o cristianismo primitivo, mas que foram delimitados pela Igreja como heresia. A partir daí já podemos delimitar duas grandes tradições, conforme mencionamos recentemente, a tradição católica e a tradição da desordem metafísica que se opõe, direta ou indiretamente, a ela.
Convencionou-se a acreditar, entre conservadores, que toda resistência à mentalidade revolucionária deve definir-se pela oposição à modernidade, o que nos parece verdade. Consequentemente, porém, toda oposição á modernidade passa a ser vista obrigatoriamente como conservadora e ortodoxa do ponto de vista católico. Mas isso de fato não é assim.
Esse tipo de erro, fruto de desconhecimento histórico e filosófico que deveria ser básico para qualquer movimento de ideias genuinamente conservador, leva à indiferença em relação ao lado mais perigoso da mentalidade revolucionária, aquele que se traveste de conservador aos desavisados. Mas onde está esse erro fundamental?
A definição de modernidade
O primeiro erro está na definição de modernidade. Em geral, conservadores mais sensíveis às decadências dos costumes acabam vinculando a modernidade apenas às suas consequências culturais experimentadas na sociedade ocidental após as operações de subversão cultural soviéticas, uma condição bastante específica e que representa apenas uma das muitas possibilidades da modernidade.
Na verdade, é preciso compreender que a modernidade foi uma condição cultural que tem como raiz a filosofia nominalista, isto é, aquela inovação medieval trazida por nomes como Guilherme de Ockam, que se contrapunha aos princípios da filosofia tradicional. Para os nominalistas, não existem princípios metafísicos antes das coisas existentes. Não há humanidade ou animalidade, exceto como convenção mais ou menos cultural e linguística, escolhida para nomear um conjunto caótico e sem sentido de fatos e coisas. Os homens escolhem, por seu arbítrio, nomear e criar princípios e valores. Eles não existiriam antes das coisas, tal como defendiam os filósofos clássicos e os escolásticos, para os quais os princípios eternos são a expressão da vontade de Deus para o mundo e o homem, incluindo a salvação. Salvação se torna naturalmente um conceito que passa a depender da cultura.
Pode parecer absurdo que algo tão relativista tenha florescido em plena Idade Média, mas isso ocorreu graças a diversos processos que produziram uma decadência educacional formidável, incluindo disputas entre o poder monárquico e a Igreja, para resolver o problema do feudalismo e sua descentralização que “empoderou” senhores feudais locais, a peste negra, entre outras mazelas que levaram, mais tarde, ao movimento humanista da Renascença e ao absolutismo monárquico que conduziu à sequência interminável de revoluções que se arrasta até hoje.
As diversas modernidades
Com o nominalismo, encerrava-se a autoridade da Igreja como detentora da tradição verdadeira. O edifício racionalista da modernidade, assim, veio exatamente para tentar resolver a desordem metafísica trazida pelo nominalismo. O resultado foi a ordenação racional da realidade que culminou no utilitarismo e, por fim, na lógica liberal do capitalismo. Mas a crise dessa modernidade também impulsionou a criação de outras modernidades, como o marxismo e o fascismo, que tentavam resolver as contradições dessa modernidade.
Tal como explica o antimodernista W.D. James,
“Marx procurou construir, com base nas conquistas da modernidade burguesa, uma realidade social que exploraria a capacidade produtiva desencadeada pelo capitalismo liberal e burguês para fins sociais e humanos. Historicamente, essa opção não foi concretizada e é amplamente vista como desacreditada. Outro foi o fascismo. O fascismo tentou substituir, funcional e psicologicamente, a comunidade orgânica desaparecida pelo estado totalitário e por uma identidade nacionalista. Tipicamente, os regimes fascistas procuraram restringir e canalizar a energia do capitalismo industrial numa direcção socialmente mais harmoniosa através de meios “nacional-socialistas” ou “corporativistas”. No entanto, mais uma vez, a história não tem sido favorável à sobrevivência de regimes organizados de forma fascista”.
O espantalho
Se a modernidade advinda do nominalismo se propôs como edifício racional e lógico de organização do mundo, pautado no conhecimento objetivo, ela criou ao mesmo tempo o seu rival: o irracionalismo, a superstição e o mito como um resultado do império do subjetivo. Ora, os antimodernos adotaram exatamente esse espantalho para suplantar o mundo moderno.
Como a modernidade buscou expandir seu controle sobre a sociedade e sobre a natureza, como forma de controlar e definir o homem, temos a crítica antimoderna exatamente na idealização dessas duas realidades: sociedades primitivas e a ligação com a natureza, precisamente na criação de um novo homem sob a ênfase da “libertação”. A libertação é palavra-chave da razão antimoderna justamente por se opor ao controle moderno. É neste sentido que o antimodernismo é também igualitário, pós-moderno e profundamente anticristão, já que traz consigo o anticlerlicalismo. Mesmo quando se apresenta sob uma forma de restauração da “hierarquia espiritual”, ele o faz por meio de tradições subjetivistas, originárias ou pagãs, espiritualistas de maneira “libertária”.
Surgem aí duas vertentes de antimodernismo, o aristocrático e o igualitário. Por razões óbvias, veremos que eles hoje se encontram unidos. O campo dos aristocráticos começa com Nietzsche e passa por Julius Evola, Ernst Junger e Alexandr Dugin. Junger, por exemplo, era um “revolucionário conservador”, mas explicitamente antinazista. Acredita-se que chegou ao ponto ter participado na tentativa fracassada dos superiores alemães de assassinar Hitler em 1944. Já Dugin, apesar de inscrito por James como um aristocrático, defende o mundo multipolar, alternativa igualitária ao chamado mundo unipolar do ocidente moderno.
Os aristocráticos se aproximam muito mais do que se imagina do campo dos igualitários ou alternativos. Segundo o próprio expoente dessa vertente, os pais desta linha de pensamento são Jean-Jacques Rousseau e William Blake. Outros pensadores seminais incluiriam pessoas como Henry David Thoreau , John Ruskin , William Morris , Leo Tolstoy , GK Chesterton, Ananda Coomaraswamy , Mahatma Gandhi , Simone Weil, Jacques Ellul , JRR Tolkien, Ivan Illich, EF Schumacher e Wendell Berry.
Os antimodernistas igualitários apostam no organicismo, no comunalismo (o que Paul Cudenec chama de “comunidade”), o valor inestimável intrínseco de cada pessoa (personalismo), uma preferência pelo que é comum e do que lhe parece humilde, a cooperação, a liberdade, dignidade da pessoa humana e uma abordagem holística da natureza e da relação do homem com ela.
A maioria dos conservadores atuais nem desconfia dessa distinção e costuma lançar mão de intelectuais como num mosaico criativo no qual o maior critério de seleção é a aceitação desses autores no mundo mainstream ou na esfera acadêmica da qual quer fazer parte. Uma das vertentes características dessa última corrente pode ser expressa no pensamento católico contemporâneo associado ao personalismo, como Jacques Maritain e seu “humanismo integral”, tentativas de diálogo com a modernidade que, assim como as vertentes das quais falamos, representam uma tentativa de “salvar” a modernidade dos aspectos que se considera falhos ou insuficientes.
No entanto, ambas as correntes do antimodernismo se caracteriza pela vinculação direta ou indireta com a tradição gnóstica, o primeiro igualitarismo, a tradição da Serpente do Éden, que vincula Deus à opressão e tirania, bem como a realidade criada e o universo sensível, a matéria, como má em si mesma. É dessa vertente que surge tanto a modernidade e seu nominalismo quanto todas as tentativas de recriá-la sob o mesmo princípio.
Até mesmo o tradicionalismo perenialista, que pertence à corrente igualitária segundo James, visa aparentar uma oposição ao nominalismo moderno, mas insere-se dentro dele ao proclamar a unidade transcendente das religiões e o indiferentismo tradicional de René Guénon, marca inconfundível da descendência da Serpente.