Se a propaganda russa cresce na esquerda, tanto entre marxistas históricos quanto no próprio governo, a versão direitista dessa propaganda vai muito além da criação de memes ou vidros de perfume, semelhanças que intrigam num primeiro momento.
Pra Stuart Hall, um intelectual frankfurtiano que ajudou a esquerda a compreender a estrutura do jornalismo para ocupa-lo, o jornalismo tem como premissa a construção de uma realidade social baseada na ideia de uma sociedade consensual, isto é, cuja divergência de opiniões se limita àquelas permitidas. Para isso, pauta-se pelos definidores primários, fontes mais poderosas e consideradas legítimas pela sociedade. Dizia Nelson Traquina que “as notícias são como são porque as fontes privilegiadas decidem o formato e o conteúdo delas”. Isso significa que basta dominar o horizonte de premissas e crenças dessas fontes e estará feita a hegemonia.
Se durante a Guerra Fria foi a União Soviética, por meio da KGB, que tirou maior proveito dos estudos dessa estrutura, nada mais esperado que, em nossos dias, o espaço reservado à propaganda no jornalismo tenha sido dividido entre as agendas do globalismo, produto das operações soviéticas e, mais recentemente, da propaganda russa a partir da Guerra da Ucrânia. Já ao fenômeno da ascensão conservadora, que abastece iniciativas desde a política ao jornalismo, cabe responder aos estímulos e ser assimilado por uma das duas agendas (que na verdade são a mesma).
Vejamos como isso está ocorrendo.
O relatório publicado em fevereiro deste ano, intitulado “Enfraquecendo a Ucrânia: como a Rússia ampliou sua guerra informacional global em 2023” destacou o papel da Rússia na guerra informacional, citando sites como o Brasil 247 e o UOL como veículos sob influência russa. Há ainda o MSN Brasil, Isto É Independente, Correio Braziliense, Brasil de Fato, CNN Brasil e Folha de São Paulo, que no período analisado pelo relatório, utilizou como fonte sites oficialmente propagandistas do Kremlin como o Sputnik Brasil.
Se os sites conservadores não costumam ler o Brasil247, certamente se baseiam nas informações do UOL. Alguns podem argumentar que o instituto que publica o relatório é ligado aos globalistas. É verdade. Por essa razão, convidamos os leitores a comprovarem as afirmações e resultados na sua própria percepção diária, seja do conteúdo da grande mídia, seja da atuação e perigosas aproximações, viéses, da direita brasileira. Quem for suficientemente atento, perceberá. Basta uma postagem contra a Rússia nas redes sociais da direita e o leitor verá a onda de comentários favoráveis a Putin. Faça o teste. Mas não é só isso.
Outros relatórios também mostram o crescimento da rede de desinformação russa na América Latina, como o “Rede pró-Rússia espalha propaganda e desinformação na América Latina”.
Isso explica algumas coisas, como porque a acusação de nazismo contra a Ucrânia nunca foi confrontada com informações, por exemplo, sobre a onda de neonazismo em todo o Leste Europeu vindo justamente da Rússia. A “desnazificação” da Ucrânia, segundo o relatório, foi mencionada na imprensa brasileira 176 vezes.
Em cada país em que atua a propaganda russa possui uma plataforma regional, da mesmíssima maneira como foi feito no tempo da URSS, quando a KGB atuava em grupos nacionalistas, tendo sido responsável pela inserção, no Brasil, do antiamericanismo, realidade confirmada pelo livro de Mauro Abranches, 1964, sobre as operações da StB em solo brasileiro.
É através desse trabalho de décadas que hoje a mesma Rússia colhe benefícios de novos apoiadores nos meios conservadores que experimentaram crescimento do nacionalismo a partir da era Bolsonaro, o que já vem sendo apropriado por movimentos de esquerda. Isso quer dizer que quanto mais aderente ao bolsonarismo, no atual momento, maiores as chances de disseminar propaganda russa, pelo simples desinteresse nessa realidade e foco na retórica político-partidária superficial.
No Brasil, o nacionalismo ainda permanece como energia potencialmente revolucionária, confirmando as sugestões do próprio Lênin. Debates como a ingerência internacional da ONU, UNESCO e Agenda 2030, além das iniciativas de controle sanitário, são campos férteis para essa desinformação, que se vale de informações verdadeiras selecionadas para serem prioridades. Com isso, a propaganda russa cresce sem ser percebida enquanto se alastra tanto pelo Itamaraty e governo brasileiro, no apoio à Rússia e ao Brics, quanto na direita de forma negativa, por omissão do papel dessa agenda.
Essa diversidade de papeis foi destacada em uma reportagem recente da Gazeta do Povo.
Assim, na Venezuela, os russos preferiram falar de “mundo multipolar” e do bloco BRICS, espécie de “internacional fascista” que passou a fazer parte dos planos expansionistas da Rússia.
Em Cuba e na Nicarágua, o tema tem sido a ajuda dada pela Rússia ao ditador, além, é claro, do flagelo do embargo e do “imperialismo americano” e as sanções contra os países.
Na Bolívia, o assunto principal foi o lítio e, no México, os propagandistas de Putin preferiram acusar os Estados Unidos de ameaçar a paz mundial e a OTAN de incentivar a agressão ucraniana. Na Colômbia, o foco foi a neutralidade do governo e reclamações sobre viés político na imprensa.
Definidor primário da direita
Não é novidade que toda a direita política brasileira se baseia no conteúdo dos grandes veículos de comunicação como fonte de informação, opiniões e dados. Isso funciona tanto de maneira direta quanto indireta, em geral como para responder ou dar uma “versão direitista” de uma informação ou notícia. Em parte, isso se justificaria pela falta de uma mesma estrutura que gerasse conteúdo próprio, embora um foco em conteúdo atento às movimentações ideológicas que são, em essência, a verdadeira cobertura do poder, fundamento do jornalismo, não necessitaria estrutura maior do que estudo aprofundado.
A direita prefere, portanto, imitar o jornalismo da esquerda no seu método, abrindo mão do seu conteúdo. Esse é um erro que permite a entrada da desinformação e da propaganda por fendas que a maioria desconhece.
A premissa da legitimidade do canal de informação entra junto do conteúdo, além da própria seleção do fato. Todo o conteúdo de influenciadores e jornalistas da direita acaba sendo em resposta às questões levantadas pela grande mídia. Esse expediente estabelece a fonte de informação como definidor de pauta e de critérios de pauta, construindo uma rede de interdependência informativa e, consequentemente, de prioridades de pensamento e de foco de atenção prioritário, não apenas dos jornalistas, mas de todo o seu público.
Como a direita não possui um modelo de jornalismo, tampouco um conhecimento aprofundado de como a esquerda dominou a atividade, resta a prática do “clipping”, seleção de conteúdo conveniente entre aquilo que foi apurado por seus inimigos. Mas o efeito disso pode estar saindo do controle.
A razão para essa prática pode estar na crença geral, compartilhada entre conservadores, de que os grandes grupos de comunicação atuam em favor das pautas e agendas globalistas ocidentais, o que está amparado em uma série de pesquisas e demonstrações (muitas delas feitas por mim mesmo nos meus últimos livros). O relatório mencionado no início da matéria, porém, propõe uma visão diferente. Estaria a direita desatualizada? Dada a sua indiferença com o estudo aprofundado das agendas, que ficou estabilizado há mais de 10 anos, é possível que essa desatualização esteja em vias de provocar o maior dano ao fenômeno tão festejado da “ascensão conservadora”.
A falta de interesse pela estrutura ideológica da grande mídia pode ter gerado esse descompasso e essa profunda desatualização.
Exemplos de desinformação (talvez) involuntária
Recentemente, foi amplamente noticiado pela direita que o governo Putin classificou o movimento LGBT internacional como movimento terrorista. Pelo menos em um site de direita (Conexão Política) a informação foi noticiada exatamente nos termos em que o foi pela grande mídia, sem maiores esclarecimentos e aproveitando para “lacrar” contra a agenda identitária como um perigo para a humanidade, repetindo exatamente o discurso do Kremlin. Como se poderia esperar, a onda de comentários nas redes sociais foi elogiosa a Putin.
Independente do fato de isso ser verdadeiro, um jornalismo legitimamente independente e conservador deveria, se possível no título, indicar um dado contextual fundamental por trás do fato: a realidade do interesse geopolítico da Rússia em aproveitar-se da ascensão conservadora e da crise das ideias de esquerda como trampolim para as suas agendas geopolíticas de expansão. Mas se o jornalismo da direita dá muita atenção aos fatos, parece bastante indiferente àquilo que os explica e dá sentido: a contextualização.
No mínimo, algum site deveria ter noticiado da seguinte forma: “De olho em conservadores, Putin classifica LGBT como terrorista”.
Em outro caso, a sugestão de criminalização do partido de direita AfD (Alternativa para a Alemanha) foi interpretada por conservadores como tentativa de “criminalização da direita”. Omitindo-se o fato de que a AfD já é um partido pró-Rússia, a ideia subjacente é a de dar legitimidade ao partido como sendo vítima. Além de tantos outros problemas, como já mencionei, o foco na defesa da liberdade de expressão, principalmente como no caso do AfD, representará verdadeiro problema para conservadores quando estes quiserem se desvencilhar do rótulo de nazista, dadas as ligações já explicadas entre o neoeurasianismo de Dugin e as ideias neonazistas.
Stuart Hall menciona a tendência do jornalismo, amparado na crença na necessidade da sociedade do consenso, em construir meios públicos para traduzir verdades ou fatos para a linguagem do seu público alvo. Essas condições do jornalismo, quando repetidas pela direita, oferecem uma oportuna fenda de entrada tanto para a desinformação quanto para a propaganda.
Propaganda ou desinformação?
Uma importante parcela da esquerda, bastante atenta a esses movimentos e interessada na criminalização da direita e das ideias que se oponham às suas agendas internacionais, já vincula o bolsonarismo (ou pós-bolsonarismo) com o apoio declarado ou sutil das ideias propagadas pela propaganda russa. Jornalistas antes ligados ao olavismo ou bolsonarismo, aproximam-se cada vez mais das pautas pró-russas, dando espaço para propagandistas do Kremlin e aderindo a ideias do tradicionalismo guenoniano, uma das principais linhas de atração para ideologias políticas neofascistas.
Essa parcela da esquerda, que difunde estudos aprofundados propositalmente falaciosos traz um discurso que em pouco tempo poderá se tornar real, graças a essa aproximação, fruto da desatenção e desinteresse, de pós-bolsonaristas com propagandistas ou desinformadores russos.
Mas, afinal, os conservadores que estudaram com Olavo de Carvalho ainda lembram das definições básicas de desinformação e propaganda?
Distinções bastante conhecidas nos primórdios do conservadorismo, trazidas pelo filósofo Olavo de Carvalho através de autores de renome como Ion Mihai Pacepa, acabam sendo esquecidos em nome de uma estratégia de narrativa política.
Afinal, o propagandista é oficialmente lotado em agências de notícias ligadas ao partido, ao governo ou aos movimentos políticos claramente militantes da causa. Todo mundo sabe o que ele dissemina e qual a sua postura, não sendo novidade alguma que defenda os pontos de vista do seu patrão ideológico ou econômico.
Já o desinformador é alguém aparentemente neutro, sem vínculo algum e em termos gerais e que pode ser até um crítico do partido, do governo, da sua ideologia e daqueles que são seus verdadeiros patrões. O objetivo é ter credibilidade para o inimigo e inserir nas suas crenças e ideias premissas ou informações falsas ou verdadeiras que auxiliam o avanço da agenda.
Há entre conservadores tanto um quanto o outro. Ex-funcionários de mídia russa, treinados em Moscou, ganham credibilidade e recebem espaço generoso desde que critiquem a pandemia, o transumanismo e façam críticas vazias à Rússia. Suas críticas a Putin, não raro resumem uma mera contenda de caráter revolucionário, o que já aproveita para inserir na mentalidade de conservadores alguns pressupostos primários da ação de subversão revolucionária, como ideias igualitaristas e libertárias.
Tudo isso nos indica que, por mais que direitistas ainda se lembrem das explicações de nomes como Yuri Bezmenov, Pacepa e Walter Krivisky, os velhos métodos da KGB seguem sendo tão aplicados quanto esquecidos pela direita. A principal condição para o avanço de programas de desinformação é a prioridade da temática superficial, partidária, em um tecido de interesses eleitorais, comerciais, onde o campo da narrativa é dos slogans é sempre preferível sobre longos estudos da estrutura e intrincadas redes mantidas pelos reais inimigos.
Entre um vídeo de influenciador com notas de sarcasmo antipetista e um longo texto ou aula sobre desinformação soviética, o novo direitista nascido em 2018 (ou 2013) vai preferir o primeiro e zombar do segundo. E esta é a razão pela qual não precisa ser profeta para antecipar a catástrofe que virá.
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