“O único sistema que corresponde à eterna verdade do personalismo é o do socialismo personalista”
Nikolai Berdiaev, ou Bardiev, era um “anticomunista” e, como tal, já um candidato a ser chamado de direitista por qualquer comunista que se preze. Como anticomunista, ele desacatou o comunismo como “antipersonalista”, e sua filosofia deu a muitos expoentes da esquerda católica brasileira, por exemplo, a chance de defenderem que o comunismo poderia “não ser tão ruim” se não fosse ateu e tão militarista, tão hierarquicamente antiumano. Afinal, a ideia de hierarquia só pode ser vista, pelo gnóstico, como uma opressão. Um deles foi o nosso querido Alceu Amoroso Lima, que se emocionou com as palavras de Bardiev, assim como, depois, de seus continuadores como Emmanuel Mounier e Jacques Maritain, expoentes da esquerda católica do início do século passado.
Mas assim como seus continuadores, o personalismo de Bardiev trazia conceitos já amplamente combatidos pela Igreja Católica ao longo de sua história: o dualismo gnóstico, explícito na dualidade entre indivíduo e pessoa.
Baseados em Bardiev, intelectuais católicos influenciados pelas ideias modernas ficaram deslumbrados com a dualidade expressa de forma poética entre indivíduo e pessoa, fingindo não saber que esta remetia diretamente à velha heresia do dualismo neoplatônico, repetida historicamente pelos gnósticos de todos os tempos. O problema é que, depois de ser adotado pela esquerda, o neoplatonismo, refutado e demolido por Santo Tomás na Suma contra os Gentios, é revivido por uma nova geração de conservadores que pegam carona na evolução das ideias da esquerda revolucionária, achando-se muito originais. Tudo para evitar serem chamados de autoritários e anticomunistas demais.
Para a esquerda católica, se o comunismo falhou em propor a “libertação do homem”, caberia agora ao socialismo personalista de Bardiev, devidamente cristianizado, libertar verdadeiramente o homem do formalismo das ideias e conceitos, elevando-o à tão sonhada “dignidade da pessoa humana”, um emaranhado de ideais sentimentalistas e sem significado que, no fundo, remetem ao velho sonho gnóstico da superação de toda a hierarquia natural, isto é, o projeto divino.
Esta dualidade fica evidente quando Bardiev a insere no velho dualismo matéria-espírito, corpo-alma, tão comum na ciência moderna, também de base gnóstica e, por isso mesmo, incomunicável com o velho e visto como ultrapassado tomismo católico, cunhado sobre o aristotelismo.
Senão, leiamos do próprio Bardiev:
“O indivíduo é uma categoria naturalista, biológica e sociológica; ele pertence ao mundo natural. Do ponto de vista biológico, o indivíduo faz parte da espécie, e do ponto de vista sociológico, da sociedade. É um átomo indivisível, qualquer coisa de anônimo, não tendo vida interior. Não tem existência independente da espécie e da sociedade, é um ser inteiramente genérico e social, um elemento, uma parte determinada por sua relação com o todo” (obra cit., pp. 179-180).
Ou seja, o indivíduo é determinado pelo meio, pela natureza e ou a hierarquia da realidade.
Já a pessoa, diz Bardiev:
“A pessoa se acha enraizada no mundo espiritual, sua existência supõe o dualismo do espírito e da natureza, da liberdade e do determinismo, do que é individual e do que é geral, do reino de César e do reino de Deus” (p. 18:1).
Da mesma forma, dizia Jacques Maritain,
“enquanto indivíduo cada um de nós é um fragmento de uma espécie, uma parte deste universo, um ponto singular da imensa rede de forças e de influências cósmicas, étnicas, históricas, da qual sofre as leis; acha-se submetido ao determinismo do mundo físico. Mas cada um de nós é também uma pessoa, e enquanto pessoa não se acha submetido aos astros, subsiste todo inteiro da própria subsistência da alma espiritual, e esta é nele um princípio da unidade criadora, de independência e de liberdade” (artigo “La Personne et le Bien Commun” na “Revue Thomiste”, maio-agosto de 1946, pág. 248).
Voltando a Bardiev, essa distinção entre indivíduo e pessoa se demonstra mais alinhada à uma raiz gnóstica e, como não poderia deixar de ser, associada a Marx e Hegel ao retornar a “pessoa” para um “espírito coletivo”:
Para Bardiev, o homem
“é livre em face do poder do mundo das coisas, mundo objetivo, determinado, submetido a leis imutáveis; mas não é o homem individual, é o homem coletivo que goza dessa libertação. O homem individual não é livre em face da coletividade, da sociedade comunista, ele não atinge a liberdade senão confundindo-se com o ser coletivo. Esse pensamento existia já, não somente em Marx, mas também em Feuerbach, para o qual o homem não era inteiramente real senão na comunhão, no ser genérico. O comunismo é extremamente dinâmico, ele afirma uma extraordinária atividade do homem, mas não é a atividade da pessoa humana, é a da sociedade, da coletividade. O homem individual é inteiramente passivo em relação a essa coletividade comunista, não adquire força ativa senão dissolvendo-se no seio do ser genérico. O comunismo não afirma senão a atividade do ser humano genérico. Essa idéia já se acha em Feuerbach e remonta ao espírito universal de Hegel” (Berdiaeff, obra citada, pp. 192-193).
Santo Tomás rejeitou a tese da dualidade corpo-alma em sua doutrina da “totalidade do ser”. Não foi por acaso, portanto, que os personalistas tiveram que arquitetar de todas as formas a rejeição do tomismo por parte da teologia católica, pois nos termos deste jamais o personalismo poderia ser aceito. A desculpa deles era de uma “insuficiência” do tomismo. No entanto, trata-se de uma forma muito sagaz de evitar o debate e declarar-se vencedor. A hierarquia católica, infelizmente incapaz de lidar com a nova artimanha, deixou-se seduzir pela nova linguagem, arrogando-se a capacidade de saltar com a realidade por cima de uma linguagem dupla, diabólica e falaciosa como a do personalismo.
Os esquerdistas já nem tão católicos, como Herbert de Souza, o Betinho, adoravam Bardiev, considerando-o como “o pai do personalismo”, ainda mais do que Mounier, sobre o qual falamos em outro artigo.
Afinal, para esses autores personalistas, o socialismo realmente representava a “libertação” do homem, mas tendo falhado, caberia fazer alguns reparos e implementa-los.