Até o início do século XX, a base filosófica e doutrinal do catolicismo era o tomismo. Já em meados do século, sofreu inovações como a chamada Metafísica do Ser, do neoescolástico Etienne Gilson, entre outros, como forma de renovar a tradição católica frente às transformações da sociedade de massas, fenômeno que dividiu intelectuais e produziu uma série de movimentos de reação e conciliação. Desde o Iluminismo, a Igreja se viu diante de um inimigo que a cercava de todos os lados, resgatando em linguagem por vezes polida, cultural e politicamente, as velhas heresias enfrentadas frontalmente no passado.
As mudanças sociais trazidas pela Revolução Industrial, diante da novidade do liberalismo e, por fim, do impacto da Primeira Guerra Mundial, fizeram com que teólogos buscassem novas alternativas filosóficas para incluir ou aproximar a doutrina católica do homem moderno, visto cada vez mais como um “novo homem”, de mesma essência, porém, apresentado de maneira diversa. Depois da Metafísica do Ser, a principal e mais influente desses caminhos escolhidos foi a chamada “metafísica da pessoa”, que abriu caminho ao recurso da filosofia moderna como instrumento de evangelização.
A Igreja se viu forçada a aceitar o caminho proposto como único, acatando a um pressuposto antes tido como herético: a inevitabilidade do mundo moderno.
De um lado, o liberalismo trazia um conceito de homem individual atomístico, sem Deus, sem base metafísica e reduzido. De outro lado, o marxismo apontava para uma sociedade dividida contra si mesma, através da dualidade burguesia e proletariado, numa promessa de luta de classes. A Igreja não poderia aceitar nem o individualismo sem Deus, nem o coletivismo belicista do comunismo, um igualitarismo que mais tarde foi manifestado pela opressão evidente em suas revoluções sociais. Igualmente contra o individualismo e o coletivismo, dois erros vistos como extremos que se tocam, a Igreja buscava um equilíbrio. Poucos foram os que acusaram a falsa dicotomia, mas muitos foram os teólogos que preferiram considerá-la verdadeira e partir dela para oferecer uma “resposta”.
Foi assim que teólogos cristãos e judaicos começaram a repensar as opções filosóficas disponíveis para buscar algo que aprofundasse o conceito de pessoa, vendo a teologia católica tradicional como insuficiente para isso no mundo moderno.
Nessa época, três correntes principais do personalismo convergiram entre si. Haviam os “personalistas franceses”, os “filósofos do diálogo”, com Martin Buber, entre outros. Em terceiro, diversos autores do grupo de fenomenólogos franceses próximos de Edmund Husserl, especialmente Edith Stein, Max Scheler e Von Hildebrand, frequentemente chamados de “Círculo de Göttingen”. Há quem credite a essa filosofia a conversão de Edith Stein, mas o fato marcante em sua vida foi, na verdade, a leitura da vida de Santa Teresa do Menino Jesus. O termo “empatia”, usado hoje quase exclusivamente para acusar católicos de intolerantes em favor de agendas identitárias, tem como principal referência filosófica justamente Edith Stein. Mas a sua conversão não se deu por meio da filosofia moderna que se especializara, mas na biografia de uma santa do século XVI. Isso bastaria para identificarmos quais são os grupos que prioritariamente conseguem se beneficiar dessa via de aproveitamento das filosofias modernas. Seria possível usar uma ferramenta a um fim para o qual ela não foi criada?
Mas o mais conhecido filósofo do personalismo católico foi Jacques Maritain, considerado o precursor do que pode ser chamado de humanismo cristão. Acontece que, após a morte de São Pio X, que combateu abertamente a heresia do modernismo, muitos filósofos, entre eles Maritain, começaram a ver esse modernismo algo irreversível, sendo preferível lutar contra ele por meio de sua própria linguagem, apostando em uma espécie de “existencialismo cristão”.
O personalismo nasce do próprio iluminismo, produto da modernidade. Mas sua versão católica tentou instrumentalizar uma crítica.
Mas apesar dessa crítica ao iluminismo e à modernidade, o personalismo católico buscou uma “restauração” da cristandade por meio daquilo que há de universalmente humano na filosofia moderna, baseando-se no pressuposto de que o homem moderno seria algo muito diverso e radicalmente novo em relação ao homem de outras épocas, necessitando, assim, de uma abordagem adaptada para o seu tempo. Tempo este marcado por profundas transformações sociais, de maneira que impressionaram a classe intelectual e, por consequência, também os teólogos modernos.
Como disse, certa vez, o professor Plinio Corrêa de Oliveira a respeito de Jacques Maritain, este teólogo buscava uma “cristandade sem Cristo”, por meio dos valores, dos universais, mais ou menos na linha do empreendimento iluminista e da educação clássica, apenas inspirada pelo cristianismo, mas cujo conteúdo passa a estar presente apenas como analogia ou em sua essência e fundamento, mas distanciado da mensagem literal do cristianismo, aquela que esteve presente na vida de tantos santos ao longo da História da Igreja.
Trata-se, de certa forma, do mesmo empreendimento iluminista, guiado por elites maçônicas, de secularizar os valores cristãos, tornando-os passíveis de uma re-sacralização em chave pagã, judaica e esotérica. Este projeto já se efetivou na chamada pós-modernidade, por meio da metafísica moderna da New Age. Nela a espiritualidade é individual e subjetivista, o que podemos considerar um produto acabado e finalizado do personalismo.
O teólogo mais importante que apostou no personalismo foi Karol Wojtyła, o Papa São João Paulo II, assim como seu seguidor, Joseph Ratzinger, Bento XVI. Para Wojtyla, a “dignidade da pessoa” proposta pelo iluminista protestante Emmanuel Kant, significaria que as pessoas não devem ser tratadas como meio, mas com fim, acrescentando como apêndice cristão a recomendação de que as pessoas “merecem o amor”. Para João Paulo II, o amor pessoal, exigido por Cristo, é a forma adequada de tratar uma pessoa, porque é assim que Deus a trata. Qualquer pessoa pode recusar-se a retribuir esse amor (será o inferno), mas é aquilo a que aspira a partir das profundezas do seu ser e para o que é feito, e o que é mais definitivo da sua personalidade. É fato que nada disso destoa da doutrina cristã, mas propõe uma grande distinção na forma de apresentação. O que haveria de errado nisso?
Não foram poucos os teólogos contemporâneos, porém, que apontaram os problemas do uso da filosofia personalista na teologia. O primeiro deles é a flagrante adesão, ou ao menos em suas premissas, ao universalismo e à noção de um Deus pessoal que aproxima-se perigosamente da noção gnóstica. Mas se a maioria dos teólogos logrou não flertar com heresias, também é verdade que os frutos do personalismo acabaram originando uma série de erros descendentes.
Para muitos, o erro foi o de acatar a premissa individualista do liberalismo como forma de supostamente combatê-lo. Entrando no jogo para instrumentalizá-lo, introduziu-se na Igreja uma noção de indivíduo pouco ligada à tradição. Optou-se por omitir certas noções tradicionais que representariam verdadeira alternativa ao mundo moderno. Mas isso porque opor-se ao mundo moderno passou a estar, infelizmente, fora de cogitação. Para o individualismo moderno, base da filosofia personalista, a soma de interesses individuais resulta no conceito chamado “bem comum”, espécie de conceito-chave que virou uma “Cidade de Deus temporal”, ou seja, um elogio da Cidade dos Homens, o que inverteu uma das mais importantes bases da filosofia da história da Igreja. O verdadeiro bem comum temporal está ordenado ao bem da Cidade de Deus, na Terra e no Céu. Tratou-se, assim, de um grande empreendimento de secularização da teologia, cujo resultado só pode ser o progressivo silenciamento da Igreja até a sua consequente perseguição. Mas não é isso o que estamos vendo hoje?
Embora se possa encontrar muitos pontos de convergência entre a filosofia personalista e um fundo cristão, o que se vê é uma espécie de “jeitinho” para acomodar as perspectivas modernas, fruto de uma decadência moral sem precedentes, a uma forma de “cristianismo mínimo”, pouco exigente ao homem moderno justamente devido a essa condição. Paradoxalmente, essa é uma aposta que visa suprir o vazio da modernidade explorado pelo existencialismo ao propor uma versão cristã das doutrinas vindas do ateísmo. Trata-se de um paradoxo porque a falta de exigências de conversão e de esforço, sacrifício e confiança, para apostar numa vida de facilidades e de “compreensão”, é justamente um dos combustíveis preferidos desse vazio, dessa falta de sentido que se tornou tema principal na modernidade.
Já que o homem só pensa em si mesmo, a Igreja ofereceu uma “teologia” de si mesmo, que por definição deixa de ser teologia enquanto, ao mesmo tempo, afasta-se do homem real que anseia por imitar a Cristo na sua radicalidade e sentido maiores, a partir de uma ordem superior a ele.
Emmanuel Mounier
Passa-se do eu empírico para o “eu transcendental”, aproximando-se perigosamente da gnose moderna. A abordagem principal do personalismo cristão provém de Emmanuel Mounier, inspirador de Paulo Freire no Brasil. Mas pouco se fala da razão que o motivou a fazer a bela afirmação de que o homem não pode ser objeto. Na verdade, Mounier se nega a definir o homem por considerá-lo “indefinível”. Ele acreditava num processo de evolução que levaria a humanidade a uma espécie de panteísmo.
Não foi por acaso que outros nomes, antes negados como hereges, acabaram se tornando populares até mesmo no interior do Concílio e admitidos pelos papas seguintes como grandes filósofos. Estamos falando de Teilhard de Chardin, o evolucionista, e Henri Bergson, o apóstolo do intuicionismo.
Em Mounier, reaparece a mesma delimitação radical entre matéria e espírito vista tanto na gnose primitiva quanto na ciência moderna com a qual os teólogos recentes tanto buscaram conciliação.
“Por mais abundante e sutil que seja a luz que o espírito humano pode fazer verter até às articulações mais finas do universo, a materialidade existe sob uma forma de existência irredutível, autônoma, hostil à consciência” (Emmanuel Mounier, Le Personalisme, Que Sais-Je, PUF, Paris, 1967, n0 395, pp. 27-28).
Como bem descreveu Eric Voegelin, a velha heresia gnóstica se encarna quase que perfeitamente no que hoje chamamos de modernidade. Por trás de toda elocubração teórica e metafísica, encontramos a mesma negação da ordem divina e afirmação de uma “liberdade”, de um igualitarismo que esteve na base do “non serviam”, de Lúcifer.
Com efeito, para Mounier, a pessoa é um “lugar da liberdade”, não um ser, mas uma “presença ativa e sem fundo”. Sendo a matéria, o mundo, hostil à consciência, resta-nos transformá-lo por meio do ativismo. O homem é, para ele, “atividade vivida de auto criação” no movimento de personalização.
Conclusão
Poderia um católico trilhar uma estrada de lama sem se sujar? Poderia aliar-se ao pecado sem se contaminar com ele? Viveria entre demônios sem ser tentado? Há uma nova teologia que propõe que sim. Para ela, se Cristo morreu por nós, estamos definitivamente salvos e preservados de pecar. Para os gnósticos, o caminho esotérico permite transitar entre o pecado e a virtude sem manchar-se. Esta é uma presunção tipicamente gnóstica e esotérica. Os protestantes criaram a sua versão ao dizer que certas virtudes não são possíveis, porque parecem inalcançáveis e, por isso, já resultam perdoadas. É por isso que veio de lá a doutrina da predestinação, do “Sola Fidei” e tantas outras. Mas será mesmo que o ser humano é este menino mimado que não pode saber de suas responsabilidades espirituais? Não foi bem isso que testemunharam tantos santos em suas vidas de radical entrega à Lei de Deus.
Apenas por meio de uma perspectiva igualmente evolucionista da teologia, de que esta, assim como a Igreja, deva ser conciliadora das ideias modernas ao invés de corrigi-las com coragem, seria possível dissuadir as interpretações gnósticas de Mounier, extraídas aqui do polêmico Orlando Fedeli, que a despeito de seus exageros em muitos casos, aponta assertivamente o caso presente. Porque do ponto de vista estritamente católico, elas sempre foram gnósticas, sendo apenas no século XX relativizadas.
Mas o projeto de “cristianização” de certas ideias não seria presunção demais, principalmente se considerarmos o exemplo do termo “empatia” e tantos outros? O fato é que, assim como a recente polêmica das “bençãos de casais gays”, embora se possa fazer uma ginástica para impedir erros doutrinais, o fato inegável é que, se existem teólogos modernistas e hereges (e sabemos que existem), a apropriação católica de filosofias modernas trará benefícios apenas para a heresia e não para a doutrina, ao menos nos domínios dessa parte do clero. E qual a parte da Igreja controlada por este clero? Pode ser pouco, mas eles contam com toda a mídia, o meio acadêmico, a indústria cultural, o cinema e as artes. Pode a Igreja contra tudo isso? Sim, pode. Desde que seja radicalmente fiel Àquele que a fundou.