A Igreja Católica construiu a civilização ocidental inteira com base na separação e distinção muito clara entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens, tendo a primeira o lugar mais alto e à qual a segunda deve se submeter harmonicamente. Essa distinção se funda em Santo Agostinho e implica numa outra dualidade evidente da vida humana: o imutável e o mutável, sendo o mutável em ordem inferior ao imutável. Isso modificava a visão da heresia maniqueísta e a gnóstica, para as quais esses dois aspectos representariam o Sumo Bem e o Sumo Mal, como forças simétricas e absolutas. Ao contrário, os Padres da Igreja defenderam que o mal é apenas a ausência do Bem, este sim absoluto. O Bem é íntegro, indivisível, mas difusivo por definição, necessita de expansão, assim como o mal é dinâmico, adaptável e amoldável, diverso por natureza. Isso quer dizer que a ideia de “diversidade”, como um valor de igualdade entre tudo o que é diverso, é a própria afirmação da dinâmica do mal. Em lugar disso, a Igreja sempre defendeu a maravilhosa desigualdade da criação, expressa na forma hierárquica e ordenada, onde a tudo o que é maior e mais elevado é dado mais, enquanto ao menor e menos digno é dado menos. Isso nos parece injusto? Se a ordem e a hierarquia naturais dos princípios nos parecem injustos somos gnósticos, adeptos da rebelião metafísica contra a autoridade de Deus expressa na realidade e refletida na estrutura humana, seja da Igreja ou do próprio Estado.
Aos olhos do mundo, essa profunda desigualdade pode parecer “atenuada” pelo valor da humildade, no qual o menor e mais pobre, menos afortunado e mais sofrido terá grande recompensa nos Céus. Mas é enganosa a contradição entre humildade e hierarquia, porque para o cristianismo a maior dignidade é dada tanto à força, realeza, nobreza e superioridade (física, intelectual, política), quanto a aplicação desses valores na adversidade e nas provações da vida individual ou de povos inteiros, para as quais Deus concedeu ao homem a virtude do heroísmo cristão. Esta aparente confusão é justamente o que é dito no Magnificat, que Deus confunde os soberbos. Muitos veem naquela demonstração de força humanamente valorizada como um sinal de grandes graças, mas a verdade que se impõe dela é a de que a quem muito é dado muito será cobrado. É por isso que o valor da humilhação, da aceitação e resignação com as adversidades e, principalmente, com a ordem hierárquica imposta por Deus, é o valor final da santidade e do heroísmo num mundo que quanto mais arrasta o ventre na terra (como foi condenada a Serpente), mais necessita de provas externas de superioridade e força, expressas no anseio por saúde e dinheiro, mas também pela efetividade da política quando vê a razão humana como força criadora.
Desde o século XIX, porém, essa tem sido a ideia que favoreceu inúmeras iniciativas de tentativa de harmonizar a Cidade de Deus com a Cidade dos Homens. Os antigos padres sabiam que tal harmonia só é possível quando os homens se deixam amoldar-se, modificar-se e adaptar-se às verdades divinas. Mas o que se convencionou fazer foi o contrário: adapta-se a Cidade de Deus aos sabores do mundo, o que Bento XVI identifica, em seu livro Jesus de Nazaré, como tentou o Demônio a Cristo no deserto: o domínio dos reinos deste mundo, identificado pelo Papa como as notas principais do marxismo e progressismo na teologia. No entanto, é preciso acrescentar que há um risco disso até mesmo por parte de conservadores que, zelosos da manutenção de certo protagonismo da Igreja de Cristo no mundo, consentem com as adaptações teológicas às filosofias do mundo.
Mas dado o fracasso dessa empreitada, que começa a ficar tão evidente quanto vão se tornando anátemas os seus apóstolos, a Igreja parece realizar a profecia do mesmo Bento XVI, de se voltar às catacumbas, o que significa uma maior e mais radical ortodoxia. Isso também significa a necessária recuperação do relacionamento com Cristo por meio dos infindáveis exemplos de santos pelo seu radicalismo e fidelidade, o que irá cada vez mais se identificar com um abandono do mundo em todos os aspectos em que este nega a Cidade de Deus — o que significa quase a sua totalidade no mundo de hoje.
O predomínio dos demônios
Dizia a mística Santa Francisca Romana, que os demônios do ar e da terra são aqueles que ficaram indecisos na batalha inicial que precipitou um terço dos anjos para o Inferno. Nas profundezas, reina Lúcifer, cujo vício original é o do Orgulho, seguido por Asmodeu, cujo vício é o da impureza. Essas duas vertentes mostram a feição atual do mundo, dominado por pressupostos revolucionários até a mais mínima manifestação cultural ou comportamental. Se é falso que a matéria é má, como diziam os gnósticos, por outro lado não se pode negar que as portas do inferno foram abertas de alguma maneira. Não se pode, em sã consciência, negar que o mundo de hoje é, comparativamente a outras épocas, muito pior e mais submetido a interferências preternaturais.
Disso resulta que para seguir o que Cristo nos ensina: “vigiai e orai para não cairdes em tentação”, torna-se um desafio cada vez mais pesado e dificultoso, dada a quantidade de perigos espalhados por toda a parte da sociedade. Diante de um tão grande desafio, é natural que alguns esmoreçam e concluam daí que não é possível combater, preferindo unir-se em parte com o mal para extrair dele algum bem. Mas essa não é uma ideia nova, tampouco inteligente. Já foi e tem sido a opção do clero católico desde muito tempo, preferindo sempre orientar fieis no sentido daquilo que podem fazer para permanecerem na extremidade da Lei de Deus. Ficaram para trás os dias em que papas e padres diziam, em alto e bom tom, a todos os fiéis que fossem mais fortes, mais perseverantes e os incitassem o heroísmo e a bravura contra o mal. Em nossos dias, quando domina a mentalidade do anti-herói, lutar significa optar por uma violência desmedida e até diabólica, oportunidade para todo tipo de tentação. A verdadeira violência, aquela que Cristo recomenda como a quem será dado o Reino dos Céus (“o reino dos Céus é dos violentos”), esta permanece sendo vista como extremada e inconveniente diante de um mundo cada vez mais hostil à Igreja, embora no momento isso apenas se configure numa aparência de pressão para mundanizar-se.
Se as portas do Inferno não prevalecerão diante da Igreja de Cristo, como Ele prometeu, não se pode dizer que elas não prevalecerão sobre o mundo, diante do qual as tendências teológicas tentam a todo o custo uma aproximação indolor. Alimentar a fera na esperança de ser devorado por último é o símbolo maior dessa coligação de homens de espírito fraco que se une àquela neutralidade dos coros angélicos que não tomaram partido na batalha do Princípio, mas que no Dia do Juízo serão jogados no Inferno pela eternidade.