Nas novas aulas do curso A História Oculta da Rússia e as mensagens de Fátima, uma faceta pouco conhecida da história russa que torna a profecia de Fátima sobre os “erros da Rússia” verdadeira não apenas depois, com o comunismo, mas já se mostrava um alerta importante na própria época em que foi dita em 1917. A infiltração ocultista no cristianismo ortodoxo colheu frutos durante a URSS e mantém, ainda hoje, a crença no messianismo anti-católico do mito herético da “Terceira Roma”.
Uma matéria recente da Gazeta do Povo mostra o crescimento da Igreja Ortodoxa entre os jovens ocidentais, decepcionados com suas igrejas, principalmente quanto à adesão de ideologias progressistas por parte do clero. No entanto, a falta de conhecimento sobre a Igreja Ortodoxa tem levado muitos a interpretá-la como baluarte da tradição cristã, quando ela é precisamente o contrário.
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A atuação política da Igreja Russa como organismo da KGB é uma das formas superficiais, muitas vezes utilizada, para diminuir o legado espiritualista e profundamente perverso do esoterismo russo. Por trás da criação da Teologia da Libertação, pelas mãos da URSS, houve outros processos mais profundos embora pouco mencionados. Afinal, os mesmos agentes que trabalhavam para a KGB hoje trabalham para Putin no projeto ideológico disseminado por Aleksandr Dugin, cuja principal ferramenta são as profecias disseminadas e acreditadas por ortodoxos desde o final do século XIX.
Em 1971, em plena Guerra Fria, os jornais suíços publicaram uma foto de um jovem padre, chamado Vladimir Gundyaev, aos 24 anos, enquanto esquiava nas montanhas suíças. O jovem sacerdote ortodoxo ainda desconhecido era um enviado especial de Moscou para representar a Igreja Ortodoxa Russa no recém criado Conselho Mundial das Igrejas. Para compreender esse organismo é preciso recorrer às revelações do ex-agente da KGB, Mihai Pacepa, segundo o qual a Rússia buscava manter o controle sobre esse Conselho como parte de um programa de política externa aprovado pela KGB. O nascimento do que hoje conhecemos como Teologia da Libertação, em 1960, era parte dessa tentativa de um grande e secreto “Programa de desinformação” (Party-State Dezinformatsiya Program). Este programa demandou que a KGB guardasse um controle secreto sobre o Conselho Mundial das Igrejas (CMI), com sede em Genebra (Suíça), e o utilizasse como uma desculpa para transformar a Teologia da Libertação numa ferramenta revolucionária na América do Sul. O CMI foi a maior organização internacional de fiéis depois do Vaticano, representando 550 milhões de cristãos de várias denominações em 120 países.
De acordo com o levantamento do jornal suíço, Sonntagszeitung, por meio dos arquivos federais liberados para investigação, jovem Gundyaev era um agente da KGB que tinha a função de fazer relatórios e transmitir tudo ao Kremlin.
Em seu livro, o teólogo alemão Gerhard Besier conta que a KGB desejava influenciar o Conselho Mundial das Igrejas, ao longo das décadas de 1970 e 1980, para que parasse de criticar as restrições à liberdade religiosa na URS e voltasse suas críticas aos EUA e seus aliados, conta a reportagem do jornal suíço.
Gundyaev é hoje conhecido como Kiril, o patriarca. Ele deixou em Genebra um de seus sobrinhos no posto de sacerdote-chefe de uma igreja. Como ex-agente, Kiril é amigo próximo de Putin, outro ex-agente, pelo qual grande parte do clero ortodoxo é imensamente grata pelo alegado reestabelecimento da igreja após a perseguição comunista. Parece que Kiril escapou das garras da KGB, mas encontra-se bastante satisfeito nos braços de um de seus principais agentes, o agora “czar” da utópica Terceira Roma. Putin é essencial para as proféticas visões ortodoxas sobre uma missão sagrada da Rússia para liderar o cristianismo ortodoxo no mundo.
Para as igrejas ortodoxas oriundas do cisma de 1054, o patriarcado de Constantinopla é como um papado, mas com menos poderes e atribuições diversas. Com o recente conflito entre os patriarcados de Moscou e a igreja ucraniana, esta última decidiu criar o Patriarcado de Kiev, rompendo com Moscou, que excomungou o novo patriarcado. No entanto, Constantinopla restituiu Kiev e deu liberdade aos ucranianos, o que enfureceu Moscou. A tese da Terceira Roma ganhou força, trazendo de volta velhos ressentimentos, enquanto Kiril se refere a Putin como “um milagre de Deus”.
Na visão do cristianismo ortodoxo, depois do cisma entre ocidente e oriente, Roma teria perdido o papel de centro do cristianismo, transferido para Constantinopla. Mas com a queda de Constantinopla nas mãos dos turcos, em 1511, alguns passaram a teorizar que seu poder teria passado para Moscou, chamada então de Terceira Roma. Ao que parece, alguns conservadores ocidentais têm “comprado” essa versão da história, a partir do componente ideológico e geopolítico que põe a invasão da Ucrânia como símbolo de um conflito de continentes, da Rússia e seus aliados contra o expansionismo da OTAN, vista como sinônimo de globalismo. Essa narrativa, que tem o benefício de transformar a Rússia de agressor para vítima, vai fortalecendo todas as outras sub narrativas justificadoras.
Em um artigo para o site Providence, Matija Statham, colunista croata de política e religião, resume como essas ideias penetraram no imaginário ortodoxo russo e refletem, de forma profunda, na política atual do Kremlin. Mas o fundamento espiritual para a guerra da Ucrânia, assim como para outras ações russas pelo mundo, pode ser ainda mais sombrio.
Um dos conceitos-chave para compreender a justificativa espiritual para todo o arranjo programático da ideologia russa atual está no Katechon, termo bíblico que se desenvolveu em uma noção de filosofia política. Encontrado originalmente em 2 Tessalonicenses 2:6–7, trata de uma realidade escatológica segundo a qual os cristãos devem estar preparados para o Dia do Senhor. Se o Anticristo deve ser revelado antes da Segunda Vinda, torna-se necessário uma atenção especial, mas não apenas para identificá-lo. Antes da revelação do Anticristo, diz São Paulo, haverá a remoção de “algo ou alguém que o restringe”, isto é, impede que ele se manifeste plenamente. O versículo 6 usa o gênero neutro , τὸ κατέχον; e o versículo 7, o masculino, ὁ κατέχων. Isso quer dizer que Katechon é a força que resistirá ao Anticristo.
“(…) o mistério da ilegalidade já está em ação. Mas quem restringe deve fazê-lo apenas por enquanto, até ser retirado de cena. E então será revelado o iníquo, a quem o Senhor matará com o sopro da sua boca e tornará impotente pela manifestação da sua vinda.” ( 2 Tessalonicenses 7-8)
Na antiguidade, alguns vincularam Katechon ao Império Romano e outros à Igreja romana. Houve muita discussão sobre o tema entre estudiosos cristãos, mas no ocidente isso perdeu força. Segundo Statham, o interesse pelo Katechon e suas especulações encontrou morada no clero e na intelectualidade russa do século XIX e no período entre guerras, na chamada “revolução conservadora”, movimento que teve forte influência nos resgates de tradições ancestrais pelo nazismo, mas também revelou nomes como Thomas Mann, Hugo Hoffmanstall, entre outros. As duas vertentes nas quais o Katechon era relevante são aquelas que sobrevivem hoje quase exclusivamente nas ideias de Aleksandr Dugin, o clero russo e nas justificativas do Kremlin.
O termo Katechon ganhou força justamente no nazismo, através de pensadores como Carl Schmitt, que em sua obra Nomos of the Earth, sugeriu a importância histórica tradicional da ideia dessa força do “restringidor catécontico” que permite um cristianismo centrado em Roma, e que “significou o poder histórico para restringir o aparecimento do Anticristo”. Para Schmitt, o katechon representa o sonho de construção do antigo Estado do Império Romano, com todos os seus poderes policiais e militares para impor a ética ortodoxa. Em seu diário, publicado postumamente, o pensador alemão diz claramente:
“Acredito no Katechon: é para mim a única maneira possível de compreender a história cristã e considerá-la significativa (…). O Katechon precisa ser nomeado para cada época dos últimos 1948 anos. O lugar nunca esteve desocupado; caso contrário, não estaríamos mais presentes”.
Schmitt é um dos pensadores preferidos e dos mais citados por Dugin e seus seguidores.
Acontece que, sob o ponto de vista secular marxista, o Katechon também tem a sua importância e o seu valor como utopia social. Marxistas como Paolo Virno, em seu livro Multidão: Entre a Inovação e a Negação. Para Virno, que rediscutir o termo à luz do pensamento de Schmitt, Katechon é um conceito de integração da humanidade, sendo aquilo que impede a mítica “guerra de todos contra todos”, de Hobbes, quanto o totalitarismo globalista ocidental. Trata-se, para ele, de uma força que embora impeça e contenha, não elimina nenhuma dessas forças históricas, apenas retardando o seu avanço. Mais ou menos na linha dos conceitos de ação informativa de Habermas, Virno propõe o conceito de katechon como “capacidade humana de usar a linguagem, que permite conceber a negação de algo, e também permite a conceituação de algo que pode ser diferente do que é”.
Neste sentido, todas as propostas espirituais ou tradicionais sugeridas pela Rùssia possuem sua versão secular, sabiamente aproveitadas por movimentos aliados do bloco russo em suas distopias. Não seria exagero supor que a síntese russa do eurasianismo pretende, ou pode gerar, uma evolução do globalismo para termos mais amplos e apontados diretamente para o imperialismo russo.
Em 1990, Dugin publicou um livro intitulado Metafísica do Evangelho: Esoterismo ortodoxo. Nele, o russo relaciona o conceito Katechon com o papel histórico e a missão da Rússia na história, referindo-se a ela como a “Terceira Roma” e ligando-a ao conceito tradicional de “sintonia” entre a Igreja e o Estado, isto é, numa nova religião imperial. Mais recentemente, quando inciava-se a invasão à Ucrânia, Dugin escreveu em seu Facebook: “Agora estamos numa guerra de espíritos. Katechon vs. Antekeimenos [Besta do Apocalipse]”.
Assim como Dugin, o patriarca Kirill, um ex-agente da KGB e colega de Putin, também cita frequentemente o termo ou suas variações para justificar um papel escatológico da Rússia. Kirill disse sobre a incursão à Ucrânia que a guerra “não tem significado físico, mas sim metafísico”. A despeito da alegação de que a influência direta de Dugin sobre Putin seja de fato limitada, não se pode dizer o mesmo do patriarca.
Recorda também Statham que Kirill disse, em abril de 2022, que “as Sagradas Escrituras mencionam uma certa força que impede a vinda do Anticristo ao mundo”. Neste sentido, pouco importa o quanto Putin de fato acredita nessas narrativas místicas. O que conta é que suas ações concordam perfeitamente como se acreditasse.
Muitos conservadores ocidentais ingênuos caíram na imagem que Putin fez da Rússia como defensora daquilo que ele próprio chama de “valores tradicionais”. Quando olham para a política, a mídia, a cultura e as corporações dominantes do Ocidente moderno, eles também veem “satanismo total”. Mas embora, pelo menos a nível declarativo, reconheça os problemas que existem no Ocidente, Putin está longe de ser a solução. Os “valores tradicionais” de Putin não são valores tradicionais cristãos, mas sim valores de alguma outra tradição. Ou, vamos dar um passo adiante: se um tipo de “cultura da morte” domina no Ocidente, a Rússia de Putin apenas oferece outro tipo de “cultura da morte”. O que os conservadores ocidentais muitas vezes esquecem é que a política dominante russa é, na sua essência, tão anti-cristã como a política ocidental, mas de uma forma diferente. A sua visão moralista, segundo a qual a comunidade a que pertencem tem o direito de dominar os outros, por todos os meios, incluindo o assassinato em massa de inocentes, não reflecte o verdadeiro cristianismo, mas implica um tipo de paganismo diferente do actual pós-cristianismo ocidental. .
E é por isso que, em vez da Segunda Epístola aos Tessalonicenses , creio que a citação bíblica que melhor descreve a situação atual diz: “Como pode Satanás expulsar Satanás?” ( Marcos 3:23)
À luz das profecias de Fátima, a Rússia já prepara um combinado de falsificações, tentando inverter a ideia dos “erros da Rússia” em os “erros do ocidente”. Em 2017, o site Katehon, de Dugin, anunciava a próxima “queda da Igreja Católica Romana” e a instalação da Igreja Ortodoxa Russa, ou Patriarcado de Moscou como sede do cristianismo universal. A recorrência das denúncias contra a Igreja Católica, sob temos como pedofilia, homossexualismo, iniciados pela grande mídia globalista e anticristã, avançam agora pelas mãos de proeminentes conservadores como forma de empurrar para fora a grande massa de católicos a serem cooptados pela ortodoxia russa.