No primeiro dia de cada ano, quando o mundo repete as festividades pagãs que representavam a devassidão e superstição, por meio dos badalados Reveillons, os cristãos celebram em suas igrejas a Solenidade que coincide com a oitava de Natal, Solenidade de Maria, Mãe de Deus. A festa coincide ainda com o Dia Mundial da Paz, instituído pelo Papa São Paulo VI.
Desde 1931, porém, o Papa Pio XI instituiu a celebração da Maternidade Divina de Maria, no ano do 15º centenário do Concílio de Éfeso, ocorrido em 431. Atenta à tradição dos primeiros cristãos, a Igreja apenas oficializou algo que já se celebrava desde o século VII, numa continuação perfeita entre as festividades da Circuncisão e Santíssimo Nome de Jesus e Sagrada Família.
A Mãe de Deus, sacrário vivo da Palavra que se fez carne, representa o convite, não para as promessas vãs de um novo ano de novidades e realizações mundanas, mas para a conservação dessa Palavra como foi conservada no seio da Virgem. Afirmando-se escrava do Senhor, a Virgem Maria santifica e diviniza a maternidade, tal como o fez Cristo ao nascer no seio de uma família, a Sagrada Família, modelo do qual advém toda a perfeição e de cujo afastamento humano se mostra, em nossos dias, razão da tragédia civilizacional que observamos assolar o mundo.
Quando proclamado no Concílio de Éfeso, portanto, o título “Mãe de Deus” (Θεοτόκος, em grego), herança dos primeiros cristãos, gerou controvérsias. No entanto, era claro aos cristãos da época que conceder esse título significava aceitar uma visão ortodoxa, e não herética, de Cristo. Afinal, se Maria, mãe de Jesus, não fosse “mãe de Deus”, Jesus não seria “verdadeiro Deus” e “verdadeiro homem”. Se Maria não pudesse ser chamada “mãe de Deus”, tampouco podia “o homem Jesus” ser chamado de Deus, já que ele foi verdadeiramente gerado por ela. Se era óbvio que uma criatura, como Maria, não poderia gerar o próprio Deus, era evidente que isso fazia parte do mistério da união hipostática, segundo a qual não se pode cortar Jesus ao meio: “são diversas as naturezas que se unem numa verdadeira unidade, mas um só o Cristo e Filho que resulta de ambas”, promulgava o Concílio.
Restou aos protestantes, mais tarde, alegar que no período deste concílio, o ano de 431, a Igreja Católica já estava “corrompida”, o que invalidaria os dogmas promulgados por ela. Esquecendo-se de que “as portas do inferno não prevalecerão contra ela”, os protestantes apenas buscaram inserir a sua fumaça divisória entre os cristãos, sendo razão da primeira e mais danosa revolução dentro da cristandade ao recuperar críticas heréticas feitas por bispos como Nestório.
O uso por Jesus Cristo da palavra Mulher, para se referir a Maria, ao invés de representar generalismo, com querem alguns, foi uma referência à Mulher do Gênesis, representada por Eva: “Porei inimizade entre tu e a Mulher, entre a tua descendência e a dela”. Sendo Maria a segunda Eva, a que reparou a desobediência da mãe dos homens tornando-se escrava do Senhor, tornou-se a mãe de todas as graças por sua imaculada conceição, razão de um ódio perfeito entre a Serpente e a Mulher. Este foi o motivo do histórico rancor do Demônio contra Maria, o que evidenciou-se tanto em heresias quanto em ações diabólicas que marcaram a história da Igreja.
Mas o estudo da mariologia, escreve Dom Murilo S. R. Krieger SCJ, tem profunda ligação com a cristologia, eclesiologia e a escatologia cristã. Disseram os papas a respeito da importância da mariologia para a Igreja e para a evangelização:
“Na Virgem Maria, tudo é relativo a Cristo e dependente dele: foi em vista dEle que Deus Pai, desde toda a eternidade, a escolheu Mãe toda santa e a enriqueceu com dons do Espírito Santo a ninguém mais concedidos (Paulo VI, MC 25)”
De acordo com diversos santos, entre eles São Bernardo de Claraval e São Luis Maria Grignion de Monfort, a veneração de Maria é a forma mais perfeita de adoração a Jesus Cristo. Como expressão perfeitíssima da Sua Misericórdia, e por isso intitulada Mãe da Misericórdia, quando a Virgem é exaltada é a Ele, Senhor e Salvador, que é exaltado (cf. Lc 1,46-55). “Disse então Maria: A minha alma engrandece ao Senhor, E o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador”.
É por essa razão que São Luis exalta e alerta para o primeiro princípio da devoção mariana:
Jesus Cristo, nosso Salvador, verdadeiro e verdadeiro homem, deve ser o fim último de todas as nossas devoções; de outro modo, elas serão falsas e enganosas. Jesus Cristo é o alfa e ômega, o princípio e o fim de todas as coisas.
Por essa razão, dizemos sem medo de errar: os que rejeitam Maria Santíssima rejeitam aquele próprio Cristo que quis encarnar-se e cujo Pai desejou dispensar, por meio da Nova Eva, todas as graças à humanidade. O próprio Deus assim o quis quando dedicou-a aos homens na forma de mãe e co-redentora.
“Deus reuniu todas as águas e chamou-as mar, reuniu todas as graças e chamou-as Maria” (São Luís Maria Grignion de Monfort)
Cristo disse a todos, na pessoa de São João, de forma eficaz e constitutiva: “Eis aí a tua mãe” (Jo 19, 26). Imutável, Deus desejará sempre que seja Maria, Mãe espiritual dos que crêem, quem gere os membros que faltam ao Corpo de Cristo.
É o Demônio, as potestades infernais, que mais temem a devoção mariana, sendo causa de infindáveis conspirações contra ela. Os escritos de São Luis Grignion, que deram origem ao famoso Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, permaneceram mais de 100 anos ocultos. Ainda hoje é possível ver, em Roma, a estátua em honra a São Luis na qual o Demônio tenta roubar de suas mãos o Tratado.
O Papa São João Paulo II era, ele próprio, um praticante desta devoção ensinada por São Luís. Tanto que adotou como seu lema o: Totus Tuus, Mariae, isto é, “Sou todo teu, ó Maria.” Repetia, assim, a devoção de numeráveis santos, desde a antiguidade, passando pela Idade Média, que sempre honraram a Mãe de Deus com tamanho fervor, sendo testemunhas de grandes e extraordinárias graças para os cristãos e a Igreja.
Em um tempo em que a Igreja, como instituição, vem sendo cada vez mais cobrada e atacada, razão pela qual se tem deixado cair numerosos filhos seus vítimas das doutrinas deste mundo, a devoção mariana se torna o antídoto, a verdadeira barca salvadora sobre a qual a própria Mãe de Deus quer reunir seus filhos sob seu manto. Muitas foram as aparições que prometeram consolo aos cristãos após períodos de turbulenta provação, como o que vivemos.
Referências:
- São Luís M.ª G. de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. 39.ª ed., Petrópolis: Vozes, 2009.
- Dom Murilo S. R. Krieger scj. Com Maria, a Mãe de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2001.
- https://padrepauloricardo.org/blog/nestorio-nao-morreu