Há pelo menos duas grandes tendências que entraram no mundo da cultura de massa mundial e, quase simultaneamente, foram assimiladas por católicos conservadores acriticamente, recebendo suas “versões” e explicações supostamente mais aprofundadas, enquanto se gabavam de estar indo “contra a corrente” do mundo. Ambas possuem as mesmas raízes e, embora eu não pretenda aprofundar mais do que apenas o suficiente para provocar alguma perplexidade, basta dizer que essas duas dizem respeito ao natural desenvolvimento das mesmas agendas espiritualistas modernas que avançam sobre a alma e a mente de cristãos contemporâneos.
Ambos os casos refletem como as derrotas estão garantidas quando se luta com presunção no campo do inimigo, principalmente quando elas vem após um covarde abandono das reais fileiras da batalha pelo triste desânimo provocado pelo mundo moderno nos cristãos. A única coisa que parece animar os conservadores atuai é arrumar-se diante do espelho e perguntar: “espelho, espelho meu, há alguém mais erudito do que eu?”
Não vamos nos deter aqui na moda estética dos homens barbudos, fortes, das academias, dos coques samurais (já ultrapassados), dos coaches (gourmetização da teologia da prosperidade evangélica), das caveiras e facas, da estética vaporwave, que hoje dominam tanto bordéis, casas de shows, bandas de rock, barbearias gourmet e salões de beleza, quanto páginas conservadoras ditas católicas. Ou ainda, o perigoso flerte com a Inteligência Artificial, razão de grande entusiasmo até por conservadores.
Estes elementos são óbvios demais e de alguma forma refletem o resultado das duas tendências sobre as quais falaremos, mas principalmente são um resultado da crença de que é preciso dar respostas adaptadas ao mundo e que a voz católica, que seria exclusiva e original, seriam respostas insuficientes.
De maneira geral, o erro parece ser o de abstrair as intenções originais, os sentidos mais relevantes cultural, espiritual e historicamente, para apropriar-se de modo racional e dar um sentido cristão que estaria lá muito forçadamente, da mesma forma como Teillard de Chardin viu “cristianismo” na Teoria da Evolução.
Tolkiemania
Essa moda veio logo depois do sucesso das produções cinematográficas, tão logo surgia um meio conservador cultural, formado sob a ótica da necessidade de valorização da literatura — resposta à sensação de ignorância advinda da decadência educacional nacional— e da busca por readquirir um imaginário universal e seguir a recomendação de professores como José Monir Nasser e Olavo de Carvalho. É evidente que essa resposta, dada pela geração mais recente, e não pelos professores, foi à moda dos apetites vigentes na então cultura de massa. Enquanto uns se interessavam por literatura brasileira e portuguesa, outros buscavam justificativas para transformar a cultura pop em alta cultura.
Esse novo conservadorismo, que se apresentava como postura disruptiva e intransigente, paradoxalmente se manifestava por uma tentativa de integração nos debates por meio de “respostas” ao mundo, do tipo “ciência confirma a religião”. Isso veio de um anseio de mostrar que tudo o que remetia à alta cultura (como vista pelo mundo) era, na verdade, de propriedade de conservadores e católicos. Neste sentido, as interpretações católicas de Tolkien auxiliaram na justificativa daqueles que queria, no fundo, estarem bem integrados na cultura do mundo e acrescentarem algo aos debates de maneira a conquistar espaços para esse conservadorismo — e para eles próprios. Embora as intenções pudessem ser boas, vejamos:
Tolkien já era moda no mundo inteiro desde a metade do século XX, sendo nada menos que a maior inspiração de toda a contracultura que vai das bandas de rock dos anos 60, 70 e 80, todo o universo hippie, assim como todo o imaginário medieval criado por hollywood décadas antes de produzir o primeiro filme literalmente sobre Tolkien. Afinal, uma Idade Média sem Cristo, sem a Igreja, sempre foi a base para a cultura jovem que originou e naturalizou o neopaganismo nórdico e europeu mais tarde.
Embora quase tudo em Tolkien tivesse sido apropriado pela esquerda cultural, os conservadores procuraram algumas migalhas para chamar de suas. A pergunta é: está dando certo? Vamos continuar.
Na verdade, Tolkien foi a principal inspiração da contracultura. As drogas alucinógenas, inspiradas no cachimbo de Gandalf, dominaram os ambientes. “As obras eram devoradas por estudantes, artistas, escritores, roqueiros e outros intelectuais mentores da mudança cultural. Slogans como “Frodo vive” e “Gandalf para Presidente” eram pichados nas estações de metrô de diversas partes do mundo”, diz uma reportagem da BBC News de 2014.
A reportagem também mostra como ele influenciou o veganismo, o ecologismo e o antimodernismo que vemos hoje na “primavera neofascista” sobre a qual temos falado tanto. Além disso, os hobbits se tornaram eram símbolos dos proletários e revolucionários.
“Outro fator que sempre teve grande apelo junto a esse público foi uma forma mais simples e medieval de vida, muito diferente do caos urbano e da modernidade. Tolkien exaltava os elementos mais comuns da natureza, como as pedras, a madeira, o ferro, as árvores e o fogo. Esse estilo de vida com menos modernidade e contra a poluição era defendido por muitos vegetarianos que construíam suas próprias casas e roupas e viviam em comunidades.
Um fator muito importante para quem combatia guerras e lutava por direitos civis e das mulheres era o contexto político dos livros. Os heróis de Tolkien eram os hobbits, as pessoas pequenas, que lideravam uma revolução”.
Ora, se a esquerda deu o seu sentido a Tolkien, não iremos nós dar o nosso?
Nas décadas mais recentes, após o sucesso dos filmes, os mágicos, anões e orcs do imaginário de Tolkien se tornaram coisa de “nerds” aficcionados por histórias em quadrinhos e RPG. Mas o primeiro público a realmente cultuar esse universo foi o “hippie” e a partir desse público é que veio o ramo do rock, heavy metal e, finalmente, o black metal vinculado às ideologias formadas pelo neopaganismo nórdico, ao fascismo e, acredite, até ao islamismo.
Diante de tudo isso, não seria uma formidável presunção achar que podemos tirar frutos positivos de tudo isso? Se no fim dos tempos a doutrina da Igreja será insuportável aos homens, como diz o Evangelho, quem o dirá se a doutrina já é insuportável aos próprios católicos?
Vejamos outro exemplo de derrota anunciada no campo da cultura.
Os contos de fada
A segunda moda que os conservadores entraram de cabeça, sem saber que era uma moda que estava em crescimento no mundo pop alternativo, e consequentemente alcançando a grande mídia e o mainstream, foram os contos de fada, trazidos por editoras seduzidas pelas belíssimas ilustrações antigas.
É importante ressaltar que não se trata de condenar o uso dos contos de fada para crianças. Em muitos deles, há elementos importantes para a educação moral e não devem ser rejeitados. O aspecto que devo ressaltar aqui é a mania, a moda, que leva à aceitação e ao culto indiscriminado dos elementos dessas histórias, que muitas vezes passaram e passam por processos de desconstrução, quando não se constituem originalmente dessa forma. Portanto, atenho-me à moda conservadora, à exclusividade deles como forma de leitura e “conquista de um imaginário”, mito popularizado que, sob o ponto de vista cristão, deveria ser visto com certa prudência quando se conhece as razões, objetivos e a vida de certos autores dessas histórias.
Além disso, como pretendo começar a demonstrar, caberia uma pergunta prudente: para que de fato estão sendo usados os contos de fada fora do meio conservador? Será que isso realmente não interessa?
Afinal, enquanto os conservadores defendem os contos de fada muitas vezes apenas por serem “tradicionais”, morais e acompanharem belas ilustrações, o mundo moderno e pósmoderno os trouxe de volta pela sua força simbólica (e esotérica) advinda das explicações existentes por nomes da psicanálise como Carl Jung.
Representando os arquétipos do inconsciente coletivo, os contos de fada tem reaparecido há bastante tempo em estudos acadêmicos, sob uma abordagem bastante aprofundada, mas nada que remeta às motivações “tradicionais” de conservadores. Muito pelo contrário, alguns até mesmo insistem que os contos de fada podem representar importantes formas de “libertação” dos mitos religiosos, ao invés de reforçá-los, como querem os católicos que os defendem. Se é evidente que num contexto de família católica isso parece ter pouca importância, não nos parece que devamos estar indiferentes às abordagens realmente hegemônicas sobre o tema.
A principal corrente que aborda o retorno dos contos de fada ao meio editorial (e não se trata de editoras conservadoras) é a que busca compreender os aspectos simbólicos e psicológicos para a utilização como forma de “reencantamento” do mundo (do mundo moderno, diga-se). Este é um dos milhares de pontos de vista sobre o tema vindos do meio acadêmico, que produz diariamente inumeráveis teses para determinar o avanço do movimento das ideias, enquanto conservadores buscam receber louros por críticas pontuais e demonstrações estéreis de erudição. Enquanto cristãos republicam, reutilizam, estudiosos acadêmicos e os movimentos esotéricos como Nova Acropole, interpretam, reinterpretam e aprofundam.
Para os ocultistas, os contos trazem de volta a magia, relegando a religião a um aspecto exotérico, externo e público, enquanto a magia trabalha o inconsciente e um universo anterior, primitivo e “natural”. Deles vêm as reais intenções de muitos autores, muitas vezes associados direta ou indiretamente com a maçonaria, Rosa Cruz ou outras sociedades secretas ligadas ao ocultismo. Quando falamos em Nova Acrópole, não esqueçamos também de que a principal porta-voz deste grupo, a “filósofa” Lucia Helena Galvão, vem tendo cada vez mais vídeos compartilhados por conservadores isoladamente. As reflexões esotéricas e de origem maçônica sobre os contos de fada facilmente seduziriam conservadores e cristãos desavisados, assim como ocorre no fenômeno coach e motivacional há algum tempo, no qual se utiliza acriticamente conteúdos que mais tarde se sedimentam em cosmovisões perigosas.
Já a abordagem dos acadêmicos é diferente da feita pelos esotéricos, mas não menos perigosa. Embora não lidem com simbolismo e magia, apontam para um caminho que fatalmente abrirá precisamente essas mesmas “portas da percepção”. Citemos um exemplo.
O professor da USP Antônio Flávio Pierucci publicou a obra “O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber” com o objetivo de detalhar a construção e o emprego do conceito de “desencantamento”. Este tipo de trabalho tem muito mais relevância para a compreensão e a utilização das modas e das tendências, e diz muito mais sobre como as coisas de fato evoluirão se considerarmos quem são os grupos e a classe intelectual que domina os debates.
Para Weber, há dois tipos de relação com o sagrado: por meio da magia e por intermédio da religião. A magia, nesse contexto, teria existência anterior à religião, e a passagem da primeira à segunda teria ocasionado uma racionalização por meio da doutrina, escreve Pierucci, que também diz o seguinte:
“O desencantamento, dessa forma, compõe o processo de secularização, que nessa leitura não pressupõe somente um afastamento da religião, e sim a passagem de uma mentalidade mágico-mítica para um padrão racional-religioso, estando associado ao encapsulamento do sagrado na esfera social especificamente religiosa. Ou seja, os outros espaços sociais passam a ser estruturados pela lógica racional-científica, em um processo de diferenciação social que permite que o local do desconhecido e do sobrenatural seja preservado na sociedade, mas impede o contágio das práticas cotidianas, especialmente aquelas relativas ao espaço público. No momento atual, convivemos com processos ligados ao desencantamento, mas também há portas abertas para o que se convencionou chamar de reencantamento do mundo, processo esse que tem sido estudado largamente em círculos acadêmicos”(Pierucci, 2003).
Ou seja, o retorno dos contos de fada à esfera pública é importante justamente para eliminar o monopólio da dualidade entre religião e ciência, que domina o mundo. Numa abordagem tipicamente pós-moderna, que parece até flertar com uma “nova new age”, o autor usa Weber para defender a volta de uma nova espiritualidade liberta tanto da ciência quanto da religião organizada, considerada uma das expressões do “racionalismo”.
Para lidar com esse problema, irão os conservadores defender uma religião racionalista ou o irracionalismo? Não há resposta simplesmente porque os conservadores não estão preparados e, por esta razão, estão fora deste debate. Há razões para crer que não terão, tão cedo, condições para tal. No entanto, acreditam saber os resultados daquilo que promovem.