“Nada está na política sem antes estar na literatura”, resume a frase profética sobre as próprias ideias do seu autor. É de Hugo Hoffmansthal, que integrou o movimento da Revolução Konservadora na Alemanha, um dos primeiros movimentos antiliberais que prenunciaram o fascismo alemão. São essas ideias, depois encarnadas por nomes como Julius Evola, que fizeram a cabeça de ideólogos fascistas. Hoje, essas ideias voltam com força total, impulsionados pela propaganda russa.
O símbolo tatuado no peito do personagem presente na invasão do Capitólio é encontrado, como mostra a imagem abaixo, na capa do livro A Handbook for Right-Wing Youth, de Julius Evola. Mas trata-se do Valknut, um símbolo sagrado de origens pagãs que atualmente tem sido usado por denominações pagãs Asatruar e Vanatruar, grupos supremacistas e neonazistas. Como explicar essas associações?
A propaganda russa
A experiência soviética das décadas de desinformação para os fins geopolíticos fizeram da Rússia uma verdadeira potência especialista na arte do engodo. Com o alvo centrado permanentemente na sociedade ocidental, seu conhecimento sobre o inimigo tornou-se inigualável. No contexto contemporâneo, desde as primeiras décadas do século XXI, a Rússia impulsionou uma agenda antiocidental que penetra fundo nos corações. Seja pela política oficial, a literatura, a cultura, entretenimento ou o jornalismo alternativo, seus meios conduzem às mesmas metas, embora em alguns casos pareçam opostas.
A nova bipolaridade disfarçada de multipolaridade se define na falsa dialética do Grande Despertar contra o Grande Reset, reedição da meta oriente e ocidente. Essa narrativa vem conduzindo inevitavelmente muitos conservadores cristãos a abraçarem o despertar do novo redpill, cuja natureza gnóstica e ocultista se esconde por trás da aparente oposição às agendas globalistas e da defesa da família ou das tradições. Não será surpreendente, portanto, se o leitor desatento me acusar de globalista por causa do presente alerta. Mas isso apenas confirmará a profundidade do sequestro transcorrido no imaginário das massas de cristãos.
A cooptação de conservadores e movimentos de direita antiglobalista para a Rússia tem sido feita a partir de uma série de etapas, mais ou menos intencionais, mesclando um oportunismo preparado com atividade ideológica intensa e programada.
1. A grande isca do QAnon
Em 2017, um ano após a eleição de Trump, começaram a surgir mensagens disseminadas sobre uma teoria conspiratória na qual Trump seria um tipo de salvador do Ocidente. A tese misturava informações verdadeiras, e até admitidas pela elite globalista, com uma linguagem sensacionalista e conspiratória, cheia de exageros aparentemente propositais para captar a atenção da juventude e de conservadores no mundo todo. As teses começaram a ser publicadas pelo desenvolvedor de Software sul-africano, Paul Furber, e alguns pesquisadores sugerem que ele foi o criador das teorias. Elas começaram efetivamente a partir de um fórum da plataforma 4Chan durante as investigações sobre a suposta influência russa nas eleições americanas de 2016, que elegeram Trump.
Naquelas primeiras mensagens, um pseudônimo chamado apenas “Q” afirmava estar infiltrado no governo americano e “revelava” informações ditas secretas. A primeira mensagem dizia apenas: “muitos em nosso governo adoram Satanás”. As seguintes, incluía trechos de versículos bíblicos. Sem fornecer nenhuma prova do que dizia ou informações extras, as mensagens se seguiram em um fluxo contínuo, criando uma atmosfera de mistério e arregimentando seguidores.
2. A tensão aumenta
A pandemia de 2020 fomentou ainda mais as teorias, que centraram-se em Trump como salvador e suposto libertador do mundo frente a uma elite satânica que sequestrava e sacrificava crianças em supostas redes de pedofilia. A chamada “Operação Storm” foi levando muitos a uma gradativa interpretação dos fatos durante a pandemia, que ia se confirmando e justificando até a culminação das eleições norte-americanas e a invasão do Capitólio, evento promovido por seguidores QAnon. Alguns chegaram a afirmar que as mortes da pandemia eram, na verdade, a desculpa para ocultar o desaparecimento de pessoas fruto da operação de prisões dos envolvidos.
Um dos tópicos das teorias diz respeito à suposta prática de drenagem do sangue de fetos humanos para a fabricação de uma droga que perpetuaria a vida e a vitalidade da elite financeira, artística e política. A substância gerada, chamada Adrenocromo, seria a grande razão por trás do tráfico de crianças e da pedofilia, já que a droga só pode ser gerada quando o bebê ou feto morre em situação grande estresse ou tensão. A circulação dessas teorias possui obviamente um efeito secundário ao da mera conspiração e condução para conclusões políticas específicas: elas produzem uma evidente dessensibilização que vai ampliando a resistência a conteúdos extremos.
O conjunto de teses tinha um estilo e linguagem peculiar, reforçando expectativas de um grande evento ou “despertar” global. Algo semelhante reapareceu no Brasil logo após as eleições presidenciais que levaram à derrota de Bolsonaro, seja no movimento chamado Brasil Was Stolen, que colaborou indiretamente com o levante de 8 de janeiro, em Brasília. Esses eventos proporcionaram à mídia mundial a interpretação de que os eventos eram semelhantes e ligados entre si. A ligação de fato aparece principalmente na linguagem e nos efeitos psicológicos que os unem. Se havia o interesse de parte da imprensa e da elite globalista em interpretar os mesmos eventos como parte de uma “conspiração” de extrema direita através de “teorias conspiratórias”, o fato é que os mesmos episódios levaram a um aumento desse suposto “despertar”.
3. Sem Trump, entra Putin
Muitos ficaram perplexos com a repentina mudança de foco da pandemia para a Ucrânia, no início de 2022.
O fato é que mesmo depois da derrota de Trump e de Bolsonaro, um conservadorismo órfão teve que lidar com a repentina mudança de foco da mídia global, que interrompeu a cobertura da pandemia para focalizar o conflito recém iniciado pela Rússia contra a Ucrânia. Por que o foco foi modificado tão rápido? A resposta pode estar na fácil adequação e acomodação do imaginário que servia para explicar a situação anterior, o bom e velho critério jornalístico da consonância narrativa.
Não por acaso, as mensagens QAnon não pararam e adaptaram o messianismo trumpista para um putinismo indisfarçado: enquanto alguns aguardavam uma “segunda vinda” de Trump e de Bolsonaro, uma falsa história era disseminada: segundo as mensagens, a Rússia teria destruído laboratórios norte-americanos (globalistas) na Ucrânia, o que estaria por trás da campanha ocidental contra Putin, que teria frustrado os planos pandêmicos.
Apesar de desmentido oficialmente pelo Kremlin, diversos sites russos e chineses disseminaram a teoria de maneira que, mesmo após o desmentido, já havia entrado no imaginário de conservadores que haviam dedicado todos os seus esforços dos últimos dois anos contra as narrativas globalistas e transumanistas da pandemia. Nesta nova etapa da desinformação em que vivemos, declarações oficiais tem o efeito exatamente oposto ao que dizem.
4. O grande redpill
De repente, uma solução e um despertar estava por vir. Mas todos os que haviam percebido a pandemia (a “fraudemia”) como uma “operação psicológica” de mentiras e conheceram todas as suas sutilezas, de repente, não haviam percebido que estavam caindo justamente na etapa seguinte da mesma campanha – ou pelo menos no aproveitamento oportunista dos seus efeitos.
Todas essas ideias ampara uma sensação de conspiração onipresente e onipotente, contra a qual, porém, havia uma esperança, centrada em Trump, Bolsonaro e, logo após a derrota de ambos, conduzia inevitavelmente a Putin.
5. Os antecedentes e a nova linha de produtos “grande despertar”
Já havia alguns anos que influenciadores cada vez mais populares nos meios conservadores, conhecidamente suspeitos de colaboração russa, como Daniel Estulin e Alex Jones, começaram a escrever contra os planos globalistas do “grande reset” sob a forma de uma proposta oposta: o “grande despertar”.
Sob esse título de Despertar, o cineasta Mikki Willis, que já dirigiu produções para romper o tabu de uso de drogas psicotrópicas, lançou em 2020 o filme Plandemic e, em 2023, The Great Awakening (o grande despertar). Este último, difundido largamente por ativistas antipandemia e antiglobalistas, propõe uma resistência à tese globalista do Grande Reset, proposta por nomes como Klaus Schwab e Bill Gates no Fórum Econômico Mundial. O filme, que foi censurado por toda a mídia mainstream e as big techs, teve ampla divulgação nos meios conservadores precisamente devido à censura (uma consequência bastante previsível que, no entanto, ainda engana conservadores).
A cena inicial do filme é simbólica. Nela aparece o próprio Mikki, em um discurso para uma multidão portando bandeiras dos EUA e cartazes libertários.
No microfone, ele diz às pessoas:
“Seja qual for o partido político que você se identifica, você é bem-vindo aqui. Seja qual for a sua cor, cultura ou credo com o qual você se identifica, é bem-vindo aqui. Se for vacinado ou não vacinado, você é bem-vindo aqui. Agora olhe à sua volta para estes rostos na multidão. Olhe bem a sua volta. É a América, a bela América. E vale a pena lutar por ela. Por você vale a pena lutar. Pelos seus filhos vale a pena lutar. Pela nossa liberdade vale a pena lutar”.
Enquanto Mikki fala dos rostos, a imagem mostra uma sequência de faces que representa um valor muito comum para globalistas: a diversidade. No entanto, o seu discurso é em oposição à elite da esquerda globalista e, ao mesmo tempo, traz um tipo nem tão novo de americanismo. Apesar de resultar em um produto consumido especialmente por conservadores, o resultado do seu documentário se assemelha muito a propagandas da esquerda no início deste século, como os filmes do esquerdista Michael Moore, que denunciavam a ação danosa das mega corporações.
O foco do filme de Mikki é a tirania sanitária não apenas iniciada em 2020, mas muito antes. O problema não é o que ele ataca, mas o que sobra de opções políticas diante do que ele não diz defender. Embora este possa não ser o objetivo de Wikki, assim como outros produtos disseminados por conservadores começaram a ser instrumentalizados por agentes prontos para sustentar a queda de uma massa de insatisfeitos em suas mãos oportunistas.
Na internet, a sua biografia é bastante popular: “Depois de procurar sobreviventes sob os escombros do World Trade Center em 2001, Willis experimentou um despertar que remodelou a sua vida e profissão. Desde então, as suas produções têm sido utilizadas para corrigir narrativas divisivas sobre acontecimentos históricos e como prova chave em importantes processos judiciais internacionais”.
Como sempre, a intenção vale pouco diante do uso que será feito por quem está mais bem preparado e há mais tempo.
O termo “despertar” ou, mais precisamente, “Despertar global”, já havia aparecido em 2011, na série de vídeos de Alex Jones, intitulada “O despertar global: o inferno está chegando”. Nele, o jornalista concentra seu ataque à elite ocidental da Nova Ordem Mundial. Jones se aliou a Trump nas eleições e, depois de perseguido e censurado por globalistas, se tornou partidário da Rússia de Putin. Na verdade, há muitos anos que a plataforma usada por Alex Jones na internet pertence à mesma rede financiada por oligarcas russos como Konstantin Malofeev, a Tsargrad TV, como revelado pelo Relatório Estudos Nacionais em abril de 2023.
Mel Gibson
O filme The Sound of Freedom, de Mel Gibson, fez estrondoso sucesso amparado na semelhança com os discursos de QAnon. O filme trata de uma rede de tráfico de crianças e foca na América Latina. Apesar do filme não tratar da Ucrânia, a divulgação do filme feita pelo policial Tim Ballard, que inspirou a história, ficou em analogias com a Ucrânia, o que provocou um efeito diferente claramente buscando transformar o filme em uma peça de propaganda russa.
Além deste fato, o lançamento se deu pouco depois que o presidente russo Vladimir Putin foi acusado, pela Corte Internacional, de sequestrar crianças ucranianas. O filme de Gibson acabou servindo de munição para os grupos pró-Rússia no argumento central do Kremlin, de que o sequestro das crianças pela Rússia era uma medida protetiva contra abusos.
Assim como no caso falso da destruição dos laboratórios, essa polêmica também foi desfeita por declarações oficiais, que evidentemente não possuem nenhum apelo no aspecto das narrativas de internet que crescem e provocam adesões na crescente opinião pública anti-establishment. Jim Caviezel, ator que interpretou Jesus no filme A Paixão de Cristo, de Gibson, se tornou um companheiro na divulgação do novo filme e tem sido acusado por parte da mídia de disseminar teses como a do adrenocromo.
A relação de Gibon ou Caviezel com as agendas russas não é comprovada e não há como afirmar. Muitas pessoas repetiram chavões e disseminaram teses que confirmavam suas crenças durante a pandemia. E essa é precisamente a natureza funcional da nova desinformação russa.