O presente levantamento com base nos dados do Datasus/SIH, mostra número de óbitos maternos por aborto e compara óbitos por aborto clandestino e óbitos por aborto legal junto das estimativas de aborto disponíveis hoje, PNA 2016 e AGI/AICM.
Na tabela 1, verificamos que o “aborto legal” teve uma taxa de morte materna de 0,40/1.000 procedimentos, ao longo dos anos. Essa incidência é superior a mortalidade materna do aborto clandestino se considerados os dois métodos de estimativa de abortos, a PNA 2016 e o AGI/AICM.
Ou seja, os dados indicam que o aborto legal seria mais perigoso que o clandestino. Como isso é possível?
É muito improvável que o aborto feito em hospitais no SUS seja mais inseguro para a gestante do que os abortos clandestinos, portanto, a conclusão mais lógica é de que as estimativas de aborto clandestino estejam superestimadas, o que já vem sendo alertados e verificados por outros métodos, através da crítica dos métodos das pesquisas (PNA 2016) e metodologia AGI/AICM (Abortion Indirect Complication Method).
Também é interessante compararmos a mortalidade materna do aborto legal no Brasil com taxas internacionais de aborto legal. Considera-se que o aborto legal nos Estados Unidos teria taxa de óbito materno de 0,7 para 100.000 abortos, ou 0,007 para cada 1.000 casos (Bartlett et al 2004). Como vimos, o aborto legal do SUS no Brasil, tem taxa de 0,40/1.000.
Assim, o aborto legal no SUS também seria mais inseguro que o aborto legal dos Estados Unidos.
Frente a essa realidade, os defensores do acesso ao aborto no SUS podem dizer que a quantidade de abortos é pequena, contendo casos de risco de vida. Sabemos que são extremamente raros esses casos e que a esmagadora maioria dos abortos do SUS se referem a casos de violência sexual. A discrepância, no mínimo, exige que as autoridades trabalhem para segregar estatisticamente os abortos por violência sexual e sua respectiva mortalidade, ou terão de admitir os dados de saúde pública relativos ao aborto legal no SUS não qualidade. Ou pior ainda: teriam de admitir que o aborto legal no SUS é extremamente inseguro.
Se voltamos a comparar óbitos maternos de abortos no SUS versus óbitos maternos do aborto clandestino, a outra hipótese para interpretar essa maior taxa de óbitos do aborto legal seria a subnotificação de óbito materno do aborto clandestino. Porém, essa tese carece de fundamentação e não há dados que indiquem que a subnotificação possa inverter a equação, pelos seguintes motivos:
- É fato que as mortes maternas por aborto clandestino podem sofrer de subnotificação ou categorização incorreta, mas sua representatividade é baixa, pois há estudos avaliando isso. O estudo de Ruy Laurenti, 2004, intitulado A mortalidade materna nas capitais brasileiras: algumas características e estimativa de um fator de ajuste, foi citado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para indicar que os dados de mortalidade materna e registro civil poderia necessitar um acréscimo de até 40%, em cima dos dados do SUS. Porém, Ruy Laurenti et al 2004, identificaram óbitos de mulheres em idade fértil num intervalo de dois anos após desfecho gestacional (aborto ou parto). Aqui reside o primeiro problema: a análise no horizonte de dois anos não é o parâmetro do CID para tratar dados de mortalidade materna. O conceito adequado era análise de óbitos ocorridos até 42 dias após o desfecho gestacional. Numa análise complementar de Ruy Laurenti et al 2004, vemos que no horizonte de um ano após o desfecho gestacional, o aumento da taxa de mortalidade materna foi de (apenas) 20% e não 40%. Portanto, seria possível admitir, com limitações, que os dados do Datasus poderiam estar 20% abaixo do “valor real”. E isso não é significativo no contexto dos dados da tabela (não mudaria o resultado).
- Em 2018, na audiência pública do Supremo Tribunal Federal para ADPF 442, uma representante do Ministério da Saúde afirmou que, numa inovadora metodologia, os óbitos maternos por aborto poderiam chegar a 205 (e não deixou claro se isso incluiu os espontâneos ou como os segregou).
- Se usado esse número de 205, frente a estimativa metodologia AGI (estudo internacional), o aborto legal ainda teria um risco maior que o aborto clandestino, o que prova que a estimativa de número de abortos é irreal.
- Se usado esse número frente a estimativa PNA 2016, teríamos um empate técnico, com 0,40/1000 óbitos maternos por aborto tanto no clandestino quanto no aborto legal, o que também parece uma prova de superestimava de abortos clandestinos da PNA 2016.
No gráfico a seguir, verificamos que óbitos maternos no Datasus caíram da faixa de 80-100 óbitos ao ano no início dos anos 2000, para patamar de 60-80 óbitos ano entre 2010-2018, e depois figuram na faixa de 40 a 60 óbitos maternos por aborto nos últimos anos (2018-2022). Em 2021, houve um aumento geral de óbito materno no país devido a pandemia covid-19.
A metodologia de cálculo de óbitos maternos por aborto que apontou 205 óbitos/ano, citada no STF/Audiência Pública, não teve publicação científica conhecida que detalhe a mesma, dessa forma, não podemos considerá-la. O único dado realmente disponível e que apresenta significativa confiabilidade é este do Datasus. Comitês de mortalidade materna foram criados no país todo e cada óbito materno deve ser analisado, tendo alguns estudos já identificado que a margem de erro é pouco significativa.
Mota (2009) verificou 91% de exatidão nos registros de óbitos maternos do DataSUS quando investigou casos ocorridos em Belém-PA. Bonciani (2006) nesse mesmo sentido analisou o trabalho do comitê de mortalidade materna de São Paulo-SP, em 2001 e verificou 8,2% de margem de erro ao analisar a mortalidade de mulheres com idade de 10 a 49 anos, cuja causa-morte era presumivelmente morte materna; e 2,8% de erro ao analisar os casos de causa-morte não presumivelmente materna.
Esses fatores indicam fortemente que não há porque rejeitar os dados de mortalidade materna do Datasus, tampouco se pode afirmar que o número real seja muito significativamente acima.
Internações pós-aborto em queda
Nesse debate polarizado há poucas coisas que ambos os lados concordam. O estudo brasileiro (Monteiro, Adesse e Drezett, 2015), que atualizou a estimativa de abortos AGI/AICM, admite que o número de abortos no Brasil está em queda, conforme dizem os autores:
Entre 1995 e 2013, as internações de mulheres de 10 a 49 anos por complicações do aborto diminuíram 27% e a estimativa do número anual de abortos induzidos recuou 26%.
A queda é significativa e acompanha padrão similar a redução de óbitos maternos por aborto.
Na nossa avaliação, esses dados podem indicar que a criminalização do aborto educa a sociedade no sentido de se evitar abortos e óbitos maternos por aborto.
Poder-se-ia dizer também que campanhas sobre Entrega Legal, apoio às famílias e gestantes em vulnerabilidade, se fossem mais amplas e consistentes, possivelmente viriam a contribuir para reduzir ainda mais esse quadro e salvar vidas.
Os dados das internações hospitalares incluem tratamento após abortos espontâneos, o que poderia ser indicado como uma variável de confusão na análise, contudo, a variação de abortos espontâneo tende a não ser negativa, pelo contrário, a literatura internacional indica que perdas espontâneos estão em crescimento nas últimas quatro décadas. Deste modo, a queda de abortos provocados é a tese mais sólida e mais provável.
Referências:
Bartlett et al. Risk factors for legal induced abortion-related mortality in United States. Obstetrics and Gynecology. 2004;103:729-37
Bonciani, 2006. Mortalidade materna: uma análise da utilização da lista de causas presumíveis. Tese de Doutorado em Saúde Pública-USP.
DEROSA, M. Estudos Nacionais. Mortalidade materna por aborto no Brasil, relatório 2017
Laurenti et al. (2004). A mortalidade materna nas capitais brasileiras: algumas características e estimativa de um fator de ajuste. Revista Brasileira de Epidemiologia. Rev. bras. epidemiol. [online]. 2004, vol.7, n.4, pp.449-460
Mota, Gama e Theme, 2009. A investigação do óbito de mulher em idade fértil para estimar a mortalidade materna no Município de Belém, Estado do Pará, Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde, V. 18. Brasília. Mar. 2009
Monteiro, M. Adesse, L. Drezett, J. Atualização das estimativas da magnitude do aborto induzido, taxas por mil mulheres e razões por 100 nascimentos vivos do aborto induzido por faixa etária e grandes regiões. Brasil, 1995 a 2013. Reprodução & Climatério Volume 30, Issue 1, January–April 2015, Pages 11-18
Derosa, M. 2023. Números Abortados – a manipulação das estatísticas de aborto no Brasil e no mundo. Pius Edições.
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