Renã Pozza
A fé cristã nunca dependeu do Sudário de Turim para fazer-se crer. A famosa relíquia, verdadeira ou não, nada muda no depósito da fé e nos ensinamentos da Igreja. No entanto, a dimensão criada em torno suscitou perguntas em meu instinto de curioso incurável: e se for verdade? Por que tantos empregam esforços hercúleos para provar sua falsidade? Por que tantos ateus, cientistas entre eles, se convertem ao pesquisar esse pano? Intrigado, quis saber mais sobre o Santo Sudário de Turim.
Este é recém o primeiro de uma série de artigos que pretendo dedicar ao tema. Despretensiosamente, e como leigo no assunto, divido com o leitor minhas descobertas e deduções. Referências serão dadas ao término.
Chamei o subtítulo de “lendas, histórias e artes” porque, de fato, há histórias sobre as quais podemos apenas especular. Ainda assim, o leitor perceberá que a falta de elementos comprobatórios dos primeiros séculos não interferirá na conclusão final.
O Santo Sudário é uma mortalha, sendo assim, para os judeus era um objeto impuro e, por isto, tinha de ser queimado. Reza a lenda que os Apóstolos, apressados para guardar o santo manto, encarregaram São Judas Tadeu de levá-lo a Edessa, atual Şanlıurfa, na Turquia. O Sudário teria sido tocado por Abgar – imediatamente curado de alguma doença. Corrobora com a lenda a real existência de Abgar V e a rápida conversão de Edessa após Pentecostes. O sucessor de Abgar, Mannu, retornou ao paganismo, perseguiu cristãos e mandou destruir o Sudário, mantido escondido desde então. Em diversas versões, todas milagrosas, o Santo Sudário reaparece no ano de 525. O historiador Evágrio narra o encontro da relíquia, uma grande procissão da Mandylion acheiropoiéton (em grego, “tela não pintada por mão humana”) e a magnífica vitória sobre os persas liderados por Cosroes I, que estavam com a cidade sitiada. Justiniano, imperador bizantino, mandou construir um santuário para abrigar a santa relíquia. Nessa época, eclodem ícones inspirados na Mandylion de Edessa.
São muitos os ícones bizantinos inspirados no Santo Sudário a partir do século VI da Era Cristã.
São Bráulio, bispo de Saragoça, escreveu em 631 para o abade Tayon, referindo-se à Mortalha venerada como a que cobriu o corpo do Senhor como sendo verdadeira.
Com a expansão dos mulçumanos, infelizmente, Edessa foi invadida e tomada. Assim, o Sudário foi escondido cuidadosamente por séculos. Até que, em 944, o Imperador bizantino Romano Lecapeno ameaçou Emir Mouro, líder muçulmano do local, afirmando que não lhe faria mal e ainda oferecendo duzentos prisioneiros se entregassem-no a Mandylion. O Santo Sudário, enfim, estava seguro em Constantinopla.
Darei um pulo na história para a parte que mais nos interessa. A Mortalha de Edessa permaneceu cerca de três séculos em Constantinopla, no templo de Nossa Senhora Santa Maria de Blaquernas. Nesse período, entre os séculos X e XIII, houve visitas de cruzados, rei da França, preocupação de imperadores e imperatrizes de que Mandylion caíssem em mãos erradas, uma série de episódios impertinentes e excitantes.
Chegamos à data de 1356, quando, pela primeira vez, o Santo Sudário, tal qual conhecemos hoje (e podemos ter certeza apodítica de ser o mesmo), é exposto pela primeira vez no Ocidente, em Lirey, na França. É importante ressaltar que os Papas, sempre preocupados em não ludibriar os fiéis, no começo, permitiram a veneração da relíquia apenas como uma representação, mantendo a cautela de que o Sudário pudesse ser inautêntico. Principalmente em função de um mistério que rondava a relíquia: Como foi parar na Europa? Não se tem notícia do Santo Sudário após 1200 e uns quebrados. Diversas hipóteses são levantas sobre quem teria trazido: os cruzados, os templários, um capelão das tropas, um fugitivo de guerra, um ladrão, mas todas sem comprovação até os dias de hoje.
A relíquia, por fatores que não nos importam aqui, foi transladada inúmeras vezes circulando aquela região. Quando estava na Santa Capela do Santo Sudário, concedida pelo Papa Júlio II, em 1506, alguns anos mais tarde, 1532, ocorreu um fatídico incêndio. A Providência garantiu que Mortalha, guardada em um estojo de prata, não queimasse por inteira. Porém, devido ao derretimento do metal e a água jogada para apagar o incêndio, pequenos furos e leves manchas macularam o Sudário, sendo necessária uma costura recuperativa por parte das irmãs Clarissas de Chambery.
Em 1576, o Santo Sudário chega a Turim, Itália. Conseqüência de uma peste bubônica em Milão, que fez São Carlos Barromeu prometer uma peregrinação a pé até o Sudário. O duque Emanuel Filiberto, chefe da casa Sabóia (família há tempos responsável pela relíquia), transferiu a sagrada mortalha para Turim, capital do ducado, a fim de impedir o santo de atravessar os perigosos alpes.
De lá para cá, o Santo Sudário já deixou Turim, voltou para Turim, a devoção em torno dele aumentou vertiginosamente e, atualmente, seu lugar oficial é, novamente, a Catedral de Turim.
O Santo Sudário de Turim é um lençol de linho tecido em padrão de espinha de peixe, com 4,41 metros de comprimento e 1,13 metro de altura, que fica exposto na lateral à esquerda do principal altar.
Este primeiro artigo não pretende tratar de aspectos científicos do Sudário, todavia, é importante para a história: sua primeira fotografia data o ano de 1898, foto tirada pelo advogado Secondo Pia, exposição por ocasião do casamento do futuro rei Vitório Emanuel III. Foi aí que começou a corrida científica sobre a relíquia. Surpreendendo a todos, a primeira fotografia do Sudário revelou tratar-se de um negativo fotográfico. Ora, a primeira criação de uma fotografia negativa foi feita pelo cientista francês Nicephore Niepce em 1826. Como poderia o Santo Sudário aparecer como um negativo fotográfico antes mesmo que o negativo fotográfico existisse? Essa intrigante descoberta despertou o alvoroço de químicos, físicos, biólogos, arqueólogos, historiadores, botânicos, anatomistas, médicos, matemáticos e tutti quanti. Um mistério dos mais instigantes estava estabelecido. Desse movimento, inclusive, surgiria uma nova modalidade científica: a sudarística ou sindonologia. Mas isto é assunto para próximos capítulos.
Mais algumas artes que retratam esta fantástica relíquia.
Abaixo, fotos de Giuseppe Enrie, 1931:
Abaixo, pintura com base no homem do Sudário. Artista armênio Aggemian, 1945 (com diferentes colorações):
Para encerrar, por enquanto, apenas mais duas peripécias. Recentemente, como ilustrado abaixo, descobriu-se que o Santo Sudário corresponde, tridimensionalmente, também, ao Cristo do quadro da Divina Misericórdia, devoção esta proveniente das revelações de Jesus a Santa Maria Faustina Kowalska, monja polonesa que viveu de 1905 a 1934.
A última, por sua vez, é a imagem realista de Jesus a partir do Sudário, disponível no YouTube.
Referências
– O Santo Sudário: Testemunho da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus (Plinio Maria Solimeo)
– História Eclesiástica (Evágrio Escolástico – do grego, Εὐάγριος Σχολαστικός – Epifânia, Síria, 536-594)
– Carta XLII: “de sudaruim quo corpus Domini est involutum” (São Bráulio ao abade Tayon)
– O Santo Sudário Milagrosa Falsificação? (Julio Marvizón Preney)