Segue abaixo mais um texto a ser rotulado como “caça à gnose” por aqueles cujo entretenimento está acima de qualquer crítica ou descrição de seus elementos mágicos. O rótulo é a principal e talvez a única arma contra aqueles que associam a decadência cultural vigente ao gnosticismo, sistema de cosmovisão associado por Eric Voegelin como próprio da modernidade.
O gnosticismo é um conjunto de crenças que forma uma cosmovisão alternativa à cristã. Ele tem crescido tanto no ocidente, por meio da cultura, que praticamente remodelou nossa forma de ver o mundo. Afinal, quem não possui em sua história as imagens fornecidas pela cultura pop? Essas imagens, gostos e afetos culturais, tornam difícil até mesmo o entendimento da própria cosmovisão cristã. A credibilidade midiática, científica e massiva que tornou possível a grande hipnose pandêmica é um dos exemplos disso. Mas se a cosmovisão gnóstica está presente em praticamente todos os produtos culturais do mundo moderno, também faz parte das utopias antimodernas e ditas tradicionais que se dissociem da visão católica por meio dos orientalismos trazidos pela moda dos últimos séculos.
Para o filósofo Olavo de Carvalho, o gnosticismo é mais do que um conjunto de crenças. Ele é, primeiramente, um sentimento, uma emoção. A sensação de abandono e de total isolamento entre a realidade e a salvação é uma tônica na história humana. Disso são testemunhas milhares de obras de arte, fruto do esforço expressivo da sensibilidade de artistas universais. É claro que nisso reside o limite entre o artístico, a imaginação, e a crença humana. O imaginário, porém, há muito passou a influenciar a visão de mundo e, consequentemente, a teologia, o que pouca gente se arriscaria a negar.
Se o indivíduo não está livre de sentir-se rodeado por monstros, num isolamento metafísico, que dirá uma sociedade como a moderna, cujos símbolos disso gravitam em torno dos corações e mentes. Esse gnosticismo quase onipresente, que Eric Voegelin identificava com a modernidade, tem sido facilmente reaproveitado em uma profusão de imagens de vida ligadas ao entretenimento, conduzindo até mesmo, paradoxalmente, por uma síntese “antimoderna”.
A crítica à modernidade desde o início do século XX, já estava toda ela contaminada por uma visão gnóstica da realidade e, por isso mesmo, profundamente revolucionária. Ela se manifesta tanto na subversão dos valores quanto no sonho de uma restauração de “tradições”, vistas como primordiais, por meio do culto dos segredos manifestado na moda do ocultismo.
Cérebros articulados como o de Aleksandr Dugin, assumidamente um gnóstico de mão esquerda, sabem lidar com o imaginário, sendo este o seu habitat natural. Ele compreende a profunda carência de sentido experimentada pela modernidade, especialmente pela juventude, cuja ânsia por estéticas e emoções pode levar a extremos. Soube, portanto, aproveitar-se da oportuna decadência cultural gerada em grande parte pela ação dos serviços secretos soviéticos – dos quais, aliás, ele fazia parte, assim como Putin – para surfar como verdadeiro mago negro no veículo do gnosticismo essencial.
Não é uma novidade que os proponentes desse fenômeno, atualmente, recorram a piadinhas e risos de superioridade ante a identificação de suas ideias no grande guarda-chuvas da modernidade gnóstica. Contra isso eles não possuem senão afetações para disfarçar e jogar o adversário num rótulo mais do que odiento do “caçador da gnose”. Com isso, constrangem seu público a não se aproximarem dessa percepção.
Caim, o pais dos gnósticos
Como se sabe, Caim é um personagem bíblico com grande relevância para o gnosticismo em suas origens. Não por acaso, ele se encontra bastante presente na cultura pop e orienta uma série de facetas do imaginário moderno.
A história das raças sagradas encontra muita simbologia na atual cultura popular. Não é coincidência que os adeptos do duguinismo são originários da cultura popular jovem mais contemporânea, aquela formada em universos como o de jogos de RPG, video-games, cinema, quadrinhos e o rock. No jogo de RPG Vampiro: A Máscara, Caim é o primeiro vampiro a existir. No jogo, composto de um livro explicativo e guia teórico para a ambientação, é explicada a linhagem dos vampiros tendo Caim como o “Pai dos Vampiros” e os jogadores devem, portanto, prestar espécie de culto ao patriarca. Com um detalhe especialmente interessante que só pode ter sido retirado da própria literatura ocultista: para os personagens, quanto mais distante for a descendência, mais fraco é o sangue de Caim nos novos vampiros, que são os personagens representados pelos jogadores em uma espécie de batalha teatral. Esse fato é descrito RPG como “Time Of Thin Blood”, que precede ao Gehenna, algo como o fim do mundo, ou Kali Yuga, para os vampiros. Em outra série de jogos de interpretação, intitulado Devil Survivor, o personagem Naoya se revela como Caim. Como punição por matar Abel, Deus condenou Caim a reencarnar consecutivamente e sempre ter consciência de suas reencarnações anteriores. Uma prisão aparentemente injusta que demanda atos de libertação.
Escritores se utilizaram frequentemente de Caim como símbolo especificamente gnóstico. No livro de José Saramago, intitulado “Caim”, apresenta o Antigo Testamento sob o seu próprio ponto de vista.
Na música, o nome da banda de heavy metal, Avenged Sevenfold, que significa literalmente “vingado sete vezes”, é uma óbvia referência a Caim. Da mesma forma, Marilyn Manson faz uma música com referência à Caim: Children Of Cain.
Já nos quadrinhos, a revista Spawn, criada por Todd McFarlane, Caim é nada mais que Cogliostro, o primeiro Spawn que treinou Al Simmons, personagem principal da revista e atual Spawn.
Há também, no universo dos video-games, uma clara doutrinação gnóstica no jogo Assassin’s Creed, no qual Caim é nada menos que o primeiro “Templário” da história, que matou seu irmão Abel para tomar um pedaço do Éden que estava sob o seu poder.
A série de TV, Supernatural, apresenta Caim como um Cavaleiro do Inferno e Portador da Marca de Caim, um dos seres mais poderosos da Série. No filme He Never Died, Jack se revela como sendo Caim, após o questionarem por sua imortalidade inexplicável e idade indefinível. No livro Diário de um Psicopata, de Rangel Oblivion, Caim é o nome do protagonista. Na série de livros Sandman (Neil Gaiman), Caim vive no reino dos sonhos juntamente com Abel vindo a matar ele diversas vezes.
Na série Lucifer, Caim vive a eternidade na terra, como um ser humano incapaz de morrer; parte de uma punição de Deus.
As referências a Caim demonstram não apenas a perplexidade humana frente ao pecado e à morte, ao assassinato, tema drástico e permanente na literatura universal. Trata-se, para além disso, da presença marcante das seitas que procuraram uma identificação com a sensação de condenação, de isolamento da Salvação e privação eterna. Assim como o Pecado Original, visto por gnósticos como uma imensa injustiça, já que o homem nada mais queria que o conhecimento, da mesma forma a maldição contra Caim é vista sob a ótica da injustiça e de uma dualidade recuperada pelo gnosticismo, assim como em diversas obras de arte e, finalmente, na filosofia política que divide o mundo entre proletariado e burguesia, entre oprimidos e opressores, uma chave interpretativa histórica que reduz o tempo à própria execução de uma dinâmica opressiva e de escravidão cíclica que demanda ato violento para ser quebrada.
Cosmovisões gnósticas são quase onipresentes em subculturas como a cultura geek, cujo interesse de mercados consumidores é cada vez maior, atraindo a atenção de investidores e novos mercados baseados nas análises de marketing cultural. O processo aprofunda o fosso de cosmovisões anticristãs que surfa no ateísmo e indiferentismo religioso.
O caso de Tolkien
Há muita controvérsia se há elementos gnósticos na obra de Tolkien, o Senhor dos Anéis e Similarion, algumas delas já apontadas neste site. Mas há alguns elementos essenciais que podem ser enumerados além daqueles.
Afinal, Tolkien reuniu grande parte das mitologias em uma única visão universal. Ainda que ele tenha procurado dar a ela uma roupagem católica em seus fundamentos, afinal, sem isso nem mesmo seria compreendida, a ideia dessa união mitológica tem raízes análogas ao sonho gnóstico da “religião universal”.
Sem entrar em cada um dos mitos utilizados e suas ligações com as religiões pré-cristãs e suas utopias pósmodernas de retorno no neopaganismo ocultista, podemos associar o trabalho de Tolkien dentro de uma macrovisão tipicamente moderna, na qual as narrativas míticas falsas são usadas para comunicar verdades eternas. Nenhuma mitologia antiga foi “criada” da forma como Tolkien criou suas histórias. A sua referência, que para muitos estaria perdida no tempo ou referente a Julio Verne e outros ficcionistas que inauguraram o gênero literário, pode estar muito mais próxima de Helena Blavatsky, com suas visões de passados remotos, apropriados tanto por Robert E. Howard, criador de Conan, quanto por H. P. Lovecraft, em seus Mitos de Cthulhu.
A ideia de criar uma própria mitologia remonta justamente a essa categoria de místicos do século XIX, que se gabava de obter contatos com entidades espirituais de culturas ancestrais, de posse das quais revelaria à humanidade os segredos da verdadeira história.
Quem estudar o gnosticismo e suas múltiplas formas de manifestação cultural ao longo da história do ocidente, não se impressionaria, por exemplo, com a afirmação de David Rodier, estudioso do gnosticismo, que estabelece o que para ele são as três grandes obras de literatura gnóstica da história: a famosa biblioteca de Naj Hamadi e os clássicos Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, e O Senhor dos Anéis, de Tolkien.
Em uma série de conferências, o bispo da Igreja Gnóstica, Stephan Hoeller, diz que os elementos gnósticos na literatura costumam aparecer especialmente onde a imaginação criativa é ativada de forma especial. É importante recordar que a grande maioria dos intelectuais contemporâneos de autores como Lewis Carroll eram afeitos a drogas alucinógenas, o que facilmente poderia ser perceptível em sua obra. Já Tolkien raramente é associado a essa realidade por ser um católico tradicional.
Importante recordar, porém, que no tempo de Tolkien, e ainda hoje, a Idade Média, a estética medieval, representava a evocação de uma era de trevas para a concepção iluminista, moderna e pósmoderna, sendo associada frequentemente ao aspecto lunar da história. Não é à toa que na imaginação de Tolkien há elementos claramente medievais, mas retirados de seu contexto cristão mais característico.
Hoeller, como sacerdote gnóstico, diz acreditar, citando seus mestres, que só a arte, incluindo música, poesia e mitologia, poderia trazer ao homem moderno “o fenômeno da profundidade e universalidade”, o que só seria comparável à mensagem da própria natureza. Apesar de aparentemente muito bela, essa afirmação, tipicamente gnóstica, exclui a Verdade Revelada do Evangelho e das Escrituras, ou mesmo das obras teológicas da Escolástica, qualquer potencialidade para comunicar verdades universais.
O caminho da imaginação, diz Hoeller, é o terceiro caminho proposto pelo gnóstico. Ele recorda ainda que nenhuma opinião ou doutrina pode inscrever-se no coração humano sem um sentimento anterior que o atraia. E qual não foi o efeito da obra de Tolkien na sociedade ocidental, desde que apareceu, senão o aprofundamento em ocultismo, neopaganismo e toda forma de espiritualidade alternativa, muitas vezes expressa pelo gosto da mitologia nórdica e celta?
Tendência comportamental
No entanto, é claro que há hoje, mesmo no conservadorismo, uma nova moda inserida em ambientes católicos, de tentar “cristianizar” certas obras. No fundo, trata-se de uma justificativa, tentativa de “salvar” hábitos arraigados por uma geração de adolescentes que acostumou-se a aderir a opiniões e ideias confortáveis, mesmo se tratando do catolicismo, dando-o sempre o benefício de permissividades que os possa manter no conforto do imaginário juvenil, repleto de afetos sagrados.
Para essa turma do “deixa disso”, o mito do “caçador da gnose” é o estereótipo pejorativo perfeito, associando-o a toda e qualquer identificação dos elementos gnósticos presentes em seus brinquedos intocáveis. Este é o resultado de uma geração na qual a maturidade tardou a chegar, na qual domina uma busca permanente por “masculinidade” e autorrealização por meio da criação fictícia de uma imagem de si mesmos por meio da realidade paralela das redes sociais.
Tudo isso é parte de uma “estratégia” para muitos. Utilizar a cultura pop vigente como trampolim para o retorno ao cristianismo pode representar um grande risco quando se tem uma cultura anticristã vigente como no tempo do Império Romano. A vida neopagã é, até mesmo para cristãos, mais sedutora do que a radicalidade do cristianismo, visto como cada vez mais incompreensível e dependente das linguagens não cristãs. Se esta é uma das ideias dominantes no clero atual, também aparece em versão não muito diversa entre conservadores. Onde isso vai dar?
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