No Apocalipse, duas figuras brigam em um teatro escatológico: o Anticristo e seu governo mundial e o Falso Profeta, com sua falsa imagem de Deus.
Os três projetos de poder delineados por Olavo de Carvalho são a Nova Ordem Mundial, o Mundo Multipolar e o Califado Universal, sendo que seus três agentes seriam, respectivamente, a chamada elite globalista ocidental, os serviços secretos e partidos comunistas da Rússia e China e, afinal, a Irmandade Muçulmana, com suas variadas matizes. Esses agentes foram propostos com base na definição do agente histórico pra Olavo.
Ainda de acordo com o filósofo que delineou esses projetos, o único obstáculo à concretização de ambos os projetos chama-se Igreja Católica. Sendo ela também um agente histórico, no sentido descrito pelo autor, só a ela caberia uma eficaz resistência a esses projetos de submissão da humanidade. No entanto, como sabemos, a Igreja está hoje em péssimos lençóis e não vem ao caso abordar isso agora. Foquemos no fato de que, se é a Igreja a única capaz de uma resistência, nada mais justo de sob o ponto de vista católico redefinirmos os três projetos em um único sujeito de caráter um tanto quanto genérico e provisório para, enfim, obtermos uma delimitação católica deles. A que correspondem, sob esse prisma, os três projetos?
Pois bem, sabemos que se os agentes são estes e os projetos por eles propostos são definidos como utópicas formas de organização política do mundo, há que se eliminar os aspectos de diversidade e particularidade de cada um, atendo-se apenas aos tópicos correspondentes à oposição ao catolicismo e à doutrina da Igreja ao longo da história. Trata-se de uma forma de imaginarmos até que ponto os católicos teriam chance de resistir ou combater esses projetos e de que forma.
Sendo o ambiente de ação construído pelas próprias ações desses agentes, a saber, a própria modernidade como a entendemos, poderíamos recorrer a diversos autores que trataram do tema. Mas escolhemos um que a classifica em termos teológicos relevantes e identificáveis na doutrina da Igreja.
Embora um protestante, Eric Voegelin identificou na velha heresia gnóstica uma espécie de fundamento mesmo da modernidade. Sigamos a pista dele buscando responder se não seria, pois, uma característica gnóstica que une tanto os projetos globalistas, eurasianos e islâmicos na atualidade? Parece que sim.
Ora, por trás da obra do estado moderno, evidente religião civil montada desde os gnósticos iluministas, há o que poderíamos chamar de Estado gnóstico, sonho acalentado tanto por globalistas do Ocidente quanto pelos eurasianos e tradicionalistas, graças à moda orientalista que dominou a Europa, como contam-nos importantes historiadores das ideias, como Fredrich Heer, que identifica claramente esses ideias nas premissas políticas do protestantismo, considerado pelo professor Plinio Corrêa de Oliveira como a “primeira revolução”.
Não é por a caso que o guru russo, Aleksandr Dugin, e seus seguidores, estão entre os críticos do Estado moderno, já que eles representam o derradeiro avanço do globalismo por meio das mesmíssimas propostas gnósticas. É assim que conservadores, dentre eles muitos católicos, infelizmente, caem nas artimanhas gnósticas do projeto russo, dada a sua suposta oposição ao projeto globalista, chamado por eles de “unipolar”, “atlantista” ou simplesmente ocidental.
Olavo de Carvalho dizia que o gnosticismo é, antes e acima de uma doutrina organizada, um espírito, um sentimento, que em determinados momentos históricos ganhou caráter doutrinário. Essa característica, na verdade, é o que permitiu que as ideias gnósticas aparecessem em variadas formas, mais conhecidamente nas heresias cátara e waldense, entre outras.
O gnosticismo parte da premissa dualista, segundo a qual o mundo é dividido entre a realidade visível, criada por um deus mau, e a realidade espiritual, invisível, criada por um deus inacessível pelo homem. Sendo assim, a sociedade medieval, como imagem da hierarquia divina, seria a perpetuação da desigualdade e injustiça criadas pelo deus mau, o demiurgo. Essa sociedade baseada na hierarquia cujo topo era o Magistério e o Papa, precisava, portanto, ser desfeita e a Igreja estava no caminho.
Diversas foram as formas de crítica dessa hierarquização, sendo o gnosticismo, dessa forma, o primeiro conjunto de teses defensoras de um tipo de igualdade. Essas ideias rapidamente se converteram, através de utopias messiânicas, em um tipo de projeto político ou crença milenarista presente tanto no gnosticismo judaico, da cabala, quanto no cristão e oriental.
Tanto os cátaros quanto outras formas ocidentais e medievais de milenarismo gnóstico desejaram, da mesma forma, reduzir o poder papal para a restituição de uma espécie de igualdade original, primordial.
As especulações místicas do frade dominicano Eckhart apareceram tanto no catarismo medieval, na heresia waldense, reunidas sob o pretexto político, por Lutero, finalmente para derrubar o poder papal ao evocar uma proposta de igualitarismo para a interpretação das Sagradas Escrituras. Outros argumentam que Lutero queria centrar nele a interpretação e que, dada a largada do protestantismo, perdeu o controle do processo. O fato é que o projeto protestante dividiu a Europa e abriu espaço para a entrada de ordens maçônicas e sociedades secretas de caráter gnóstico, que espalharam suas ideias na recém criada imprensa de livros.
Nos diz São Pio X, em seu Catecismo Maior, sobre como as heresias se uniram em um projeto único em um determinado momento da história.
125. Quando acabava de sair vitoriosa da guerra exterior do paganismo e de vencer a prova das ferozes perseguições, a Igreja de Cristo, assaltada por inimigos interiores, entrava em guerra intestina, muito mais terrível. Guerra prolongada e dolorosa, que, desenvolvida e instigada por maus cristãos, filhos degenerados, não chegou ainda a seu término; mas da qual a Igreja sairá triunfadora, conforme a palavra infalível de seu divino Fundador a Seu primeiro Vigário na terra, o Apóstolo São Pedro: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra Ela” (S. Mateus 26, 18)
126. Já nos tempos apostólicos, tinha havido homens perversos que, por interesse e ambição, turvavam e corrompiam no povo a pureza da Fé com abomináveis erros. Os Apóstolos a eles se opuseram com a pregação, com escritos e com as infalíveis sentenças do primeiro Concílio que celebraram em Jerusalém.
127. Desde então até nossos dias, não cessou o espírito das trevas seus venenosos ataques contra a Igreja e as verdades divinas de que Ela é depositária infalível. Suscitando constantemente novas heresias, tem atentado sucessivamente contra todos os dogmas da Religião Cristã.
128. Entre outras, ficaram tristemente famosas as heresias de Sabélio, que impugnou o dogma da Santissima Trindade; Manés, que negou a Unidade de Deus e admitiu no homem duas almas; Ário, que não quis reconhecer a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo; Nestório, que recusou à Santíssima Virgem a excelsa dignidade de Mãe de Deus, e que distinguia em Jesus Cristo duas pessoas; Eutiques, que não admitia em Jesus Cristo senão uma natureza; Macedônio, que combateu a divindade do Espírito Santo; Pelágio, que atacou o dogma do pecado original e da necessidade da graça; os Iconoclastas, que rejeitavam O culto das Sagradas Imagens e das Relíquias dos Santos; Berengário, que se opôs à presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento: João Huss, que negou o primado de São Pedro e do Romano Pontífice; e, finalmente, a grande heresia do Protestantismo (século XVI, forjada e propagada principalmente por Lutero e Calvino. Esses inovadores – rejeitando a Tradição divina, reduzindo toda a Revelação à Sagrada Escritura, e subtraindo a mesma Sagrada Escritura ao legítimo magistério da Igreja, para entregá-la insensatamente à livre interpretação do espirito privado – demoliram todos os fundamentos da Fé, expuseram os Livros Santos às profanações da presunção e da ignorância e abriram a porta a todos os erros.
129. O Protestantismo ou religião reformada, como orgulhosamente a chamam seus fundadores, é o compêndio de todas as heresias que houve antes dele, que houve depois e que podem ainda nascer para ruína das almas.
Depois do protestantismo, o projeto moderno herdou a missão de disseminar os erros.
Abbé Barruel, em sua denúncia bombástica publicada poucos anos após a Revolução Francesa, nos dizia quão evidente era a conspiração maçônica que se desenrolava pelos jornais e panfletos, ganhando os corações e almas de intelectuais, até estourar a revolta que definiram as discussões políticas que viriam depois. Sendo essa a segunda revolução, já estava em germen a última que também foi a primeira: a revolução no coração do homem, em sua alma, promovida pela descendência da Serpente, aquela sobre a qual Deus impôs inimizade com a descendência da Mulher (Gn 3:15).
Hoje, tanto os projetos de sociedade libertária e centrada no individualismo liberal quanto os projetos de centralização sob a imagem de uma suposta tradição primordial possuem a mesma base gnóstica do retorno de uma iluminação alcançada pelas mãos humanas através do conhecimento. O movimento Nova Era espalhou todo tipo de crença caótica em um sincretismo absoluto de matizes diversas, abrindo caminho para a busca particular, libertária, das tradições espirituais orientais. O aparente materialismo dos globalistas, fruto da mesma busca espiritual individualista do liberalismo, provocou uma sociedade caótica que, de maneira ainda mais forte, incentiva a busca humana pelas raízes espirituais. Essa busca levará fatalmente à eleição de uma tradição espiritual para restituir a destruição causada pelo materialismo. Portanto, todas as crenças espiritualistas reunidas contra a Igreja Católica beberam das ideias gnósticas e deram origem, conforme mostrou Voegelin, às ideologias modernas, sejam elas modernistas ou antimodernistas, pósmodernas ou tradicionalistas.
Mesmo o eurasianismo russo é um resultado da influência liberal e maçônica na Rússia, sendo o próprio Dugin um fruto maduro do Círculo Yuzhinski, grupo interreligioso e tradicionalista que se interessava por todo tipo de crença e práticas de ocultismo. Dizer-se agora “antiliberal” é obviamente um mesmo tipo de aproveitamento à moda protestante, que abrirá caminho para a invasão de novas e ainda piores ideias orientalistas no ocidente, cuja principal expressão política é o Islã por meio do sufismo.
Se o Estado moderno, como projeto de religião civil, tem o seu fracasso anunciado, é para o erguimento da mais nova babel do Inimigo: o projeto dos estados (ou impérios) “tradicionais” do antigo edifício do gnosticismo que se levanta.
Multipolaridade marginal
Conta a Bíblia que a Torre de Babel foi um projeto de Nimrod, descendente amaldiçoado por Noé e que representa, em várias tradições esotéricas, o arquétipo do guerreiro e ótimo caçador, violento e o primeiro tirano. Ele foi o homem que “desafiou Deus”. Nimrod teria se envolvido com ocultismo e criado em torno de si um culto pessoal e idolátrico de feitiçaria, uma espécie de mago negro e guerreiro que estaria na origem das religiões pagãs africanas como o candomblé. Nimrod deu origem aos povos egípcios e filisteus (atuais palestinos).
É comum encontrar por aí analogias entre Nimrod (ou Ninrode) e o globalismo. De fato, é o mais comum interpretar dessa forma e talvez essa seja a simbologia mais correta do personagem que desafiou Deus para unir a humanidade em um projeto humano.
No entanto, certas releituras pós-modernas buscam associar Nimrod como um personagem injustiçado pela historiografia cristã e judaica, representando, na verdade, o povo oprimido, escravizado e demonizado pela civilização cristã. A caça era associada à virtudes heróicas e naturais, cujo relacionamento com animais necessitava ao mesmo tempo uma ligação e uma agressividade. Nimrod é apontado por muitos historiadores e críticos literários como associado à epopeia babilônica de Gilgamesh, além do próprio mito de Hércules.
No mito de Nimrod teria se baseado também Thomas Hobbes, quando falava no estado de natureza, no qual “o homem é o lobo do homem”, frase depois da qual cria-se o mito do lobisomem como sinônimo de bandido (banido das cidades), vagando à margem do mundo por sua selvageria e violência incompreendida.
Não por acaso, Nimrod representaria, para alguns ideólogos da tendência terceiromundista (BRICS), seguidores da Quarta Teoria Política, de Aleksandr Dugin, a resistência vinda de fora das cidades, contra o cosmopolitanismo, sendo, portanto, o eixo e a resistência contra o atlantismo na unipolaridade.