Associar J.R.R. Tolkien à maçonaria ou ao ocultismo pode provocar terremotos entre alguns católicos conservadores mais acostumados à defesa de certos costumes e literaturas modernas do que da própria doutrina da Igreja Católica (alguns até ganham dinheiro enfatizando seus erros). Afinal, os católicos que conheceram a obra de Tolkien depois das produções hollywoodianas de O Senhor dos Anéis e Hobbit, provavelmente não conhecem o mesmo autor cujo impacto alimentou tanto a contracultura dos anos 60, a estética hippie, o rock psicodélico, a literatura de horror, rodas de RPG e a moda do ocultismo do final do século XX.
Afinal, ninguém parece se perguntar a razão da obra de Tolkien nunca ser alvo de ataques do establishment cultural e dos canceladores, já que ele seria, como dizem, um escritor católico. Pelo contrário, além da grande influência na cultura jovem do século passado, ele parece se tornar cada vez mais popular.
Mas a defesa que alguns católicos fazem dele seria o mesmo que agarrar-se na defesa acalorada do filme de Mel Gibson, Coração Valente, devido à sua mensagem democrática de libertação dos povos contra a tirania, tentando com isso “instrumentalizar” contra a esquerda. Ora, talvez alguns católicos não saibam, mas William Wallace é um personagem importantíssimo para a maçonaria e a isso se deve o sucesso estrondoso do filme. Isso poderia gerar especulações sobre Mel Gibson, mas não entraremos neste assunto. O fato é que tem sido cada vez menor o interesse de conservadores católicos pelos efeitos do imaginário cultural nas crenças e na cosmovisão, o que explica algumas decisões erradas em termos políticos e ideológicos.
Isso não quer dizer que um católico irá se tornar menos católico se ler Tolkien, mas compreender as ideias por trás do nosso imaginário não parece ser inútil, ainda mais em nossos dias.
Ok, mas Tolkien era maçom ou não?
Afirmar que Tolkien era um maçom pode ser temerário, pois essa afirmação carece de evidências históricas e parecem realmente improvável. A simbologia da sua obra, porém, indica conhecimento sobre elementos rosacrucianos.
Embora com diversos maçons entre os homens da família, Tolkien foi criado pela mãe católica e, depois da morte dela, mantido por um padre jesuíta, inimigo natural da maçonaria na Inglaterra. No seu tempo, porém, a influência maçônica era um assunto caro à Igreja, o que afasta ainda mais a possibilidade da sua aproximação. Mas, ao mesmo tempo, as ordens maçônicas gozavam de maior sigilo e viviam sob um véu ainda mais secreto apesar de igualmente ampla a sua influência política, cultural e intelectual.
O contexto da época favorecia o estudo e interesse de temas esotéricos e ocultistas, principalmente por quem vivera numa família cheia de maçons. Mas isso ainda não explica a presença de símbolos cujo entendimento só seriam possíveis através de membros ou iniciados nas ordens, como vamos mostrar mais adiante.
É claro que alguns católicos já poderão correr na frente e dizer que o seu uso do simbolismo maçônico foi – coitadinho! – inconsciente. Isso vai ficar para o final.
Antes de tratarmos do simbolismo propriamente dito, convém nos perguntarmos: se Tolkien era um católico tradicional e sua obra fosse uma forma mítica de abordar as verdades da fé, como insistem alguns conservadores, não deveria essa obra trazer conversões ou, no mínimo, inspirações culturais que favorecessem o ponto de vista cristão na cultura literária?
Para quem acredita que Deus pode agir na história e por meio da cultura humana, a resposta deveria ser afirmativa. Afinal, se por um lado a obra de Tolkien vem ficando mais popular, o catolicismo perde terreno a cada dia. Exceto se consideramos que a parte que realmente interessa do catolicismo é a dos críticos literários, conhecedores do imaginário cristão presente em mitos, mesmo que eles envolvam apenas orgs, elfos e elementos do paganismo germânico tão em moda entre ocultistas desde o final do século XIX.
Parece que muitos insistem em um método estranho de conciliação com tudo o que é atual na esperança de, como dizia o prof. Olavo, “ser devorado por último”. A pergunta que se impõe é: até onde iremos com isso?
Um padre consultado pelo blog católico Rorate-Caeli, redigiu uma longa conferência sobre o tema. Eis um trecho sobre o real impacto de Tolkien na cultura do século XX, o que antes mesmo de analisar a simbologia já nos deveria acender o alerta.
Tolkien foi inundado com ofertas de fabricantes de brinquedos, produtores de cinema e executivos de televisão, todos na esperança de lucrar com o sucesso do livro. [Até os Beatles abordaram Tolkien para fazer um filme de O Senhor dos Anéis com John Lennon (o mais ávido leitor de Tolkien entre eles) como Gollum, Paul McCartney como Frodo, Ringo Star como Sam e George Harrison como Gandalf.] Houve até mesmo uma Sociedade Frodo do Bornéu do Norte. … Em Londres, os clubes de rock pegaram a vibração, com lugares como Middle Earth e Gandalf’s Garden atendendo a aspirantes a hobbits” (Desligue sua mente , p. 78). Várias bandas de “rock psicodélico” surgiram, tomando nomes das obras de Tolkien… Gandalf gravou um álbum pela Capital Records em 1969; Gandalf the Grey , na Gray Wizard Records , apareceu em 1972. Em 1970 uma banda chamada Khazad Dum —em homenagem a uma cidade nas minas de Moria na Terra Média de Tolkien—lançou um álbum” também (idem, nota de rodapé, p. 78). Pense nisso. Tudo isso em O Senhor dos Anéis. Milhões e milhões leem essas obras. E ainda, onde estão as conversões!?
O simbolismo
Em correspondências com maçons e principalmente membros da Ordem Rosacruz, um blog começou a fazer especulações, anos atrás, sobre a simbologia de O Senhor dos Anéis. As coincidências são muitas e sugerem, não apenas a maçonaria, mas a simbologia específica da Ordem Rosa Cruz.
Os rosacruzes foram influentes no protestantismo alemão e inglês, religião oficial da Inglaterra em que Tolkien cresceu. A mística rosacruz é sutilmente diferente da maçônica, que aceita pessoas de diversas religiões. A Rosa Cruz exige, para a entrada, que seja um mestre maçom, mas também um cristão pertencente a alguma denominação.
Os rosacruzes são o ramo intelectual da maçonaria, os que estudam ocultismo e esoterismo aprofundado, mas de forma teórica. Eles utilizam símbolos da cabala, alquimia, astrologia e teosofia. Tolkien era filólogo, uma ocupação muito comum entre ocultistas da sua época, já que os idiomas eram considerados os lugares de esconderijo da verdades e dos poderes místicos (a palavra para a cabala, por exemplo).
Entre os rosacrucianos havia, de um lado, a moda do método histórico-crítico das Sagradas Escrituras (protestantes e maçons) e, de outro, os buscadores das raízes hindo-europeias, os chamados orientalistas, como vimos no último curso, que também levaram aos ariosofistas pangermânicos através da renovação dos cultos pagãos europeus. Tolkien era aficionado pela mitologia nórdica.
Periodicamente, os rosacruzes apresentam trabalhos teóricos com suas pesquisas sobre temas como alquimia, simbolismo astrológico etc.
Um dos correspondentes do blog citado, confirmou a influência da simbologia rosacruz em O Senhor dos Anéis, conforme relata como conclusão de um de seus trabalhos. “[A obra] é um certificado de membro da ‘Societas Rosacruciana’ em Anglia, fundada em 1886 por um grupo de maçons”, contou o membro chamado Greg, em carta de 2007.
O simbolismo maçom-rosacruz em questão aparece na porta das cavernas anãs de Moria, um portal que bloqueia o progresso da sitiada Irmandade. Segundo fontes consultadas pelo blog citado, o desenho que aparece no portal no filme é uma reprodução idêntica do desenho feito pelo prório Tolkien (o que afasta o argumento de que a simbologia estaria apenas nos filmes).
Segue abaixo, da esquerda para a direita, o portal de Moria, o portal maçônico e o da alquimia. Embora pareçam diferentes, possuem os mesmos símbolos relevantes.
Conforme podem ser vistos, o arco traz uma inscrição em uma forma antiga de élfico que diz “As Portas de Durin, Senhor de Moria. Fale, amigo, e entre.” Abaixo do arco estão sete estrelas e uma coroa, e abaixo delas pode ser encontrada uma estrela muito maior (a ‘Estrela da Casa de Fëanor’). No blog linkado ele explica certas especulações sobre a simbologia das estrelas e a ligação com certa constelação e localização no céu, mas vamos nos ater, por enquanto, a outro elemento.
O desenho traz grandes semelhanças, portanto, com o Arco Real dos Maçons (figura 2), que também traz sete estrelas abaixo do arco.
Essa simbologia poderia ser inconsciente? Alguns admiradores de sua obra explicam que ele teria se valido de elementos simbólicos que ele acreditava pertencerem ao “inconsciente coletivo”, presente em mitologias nórdicas e celtas, cujo resgate ele utilizou obras como o Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, outra obra repleta de referências ao paganismo pangermanista que era, no teu tempo, cultuado não como elemento mítico cultural e artístico ou divertimento, mas uma forma de religião pagã que levou ao nazismo.
A utilização de símbolos de um “inconsciente coletivo”, seja para práticas mágicas evocativas ou meramente culturais artísticas, é um princípio esotérico e caro à própria maçonaria. Se ele não era um maçom, ao menos pensava como eles.
Descaso com o imaginário e a conciliação culturalista
Poderíamos objetar dizendo que, se assim fosse, a Igreja ou os santos não poderiam citar a mitologia grega como forma de simbolizar as verdades da fé. Esse argumento, que parece razoável, deixa de lado uma diferenciação básica sobre o imaginário da civilização moderna em que vivemos: a civilização grega e romana legaram ao cristianismo não a sua mitologia ou seus deuses como tais, mas a filosofia e o direito, respectivamente, representados num panteão que teve o sentido religioso completamente esvaziado. Já a mitologia nórdica e celta aparece no mundo moderno exclusivamente como forma de culto alternativo ao cristianismo. Mais do que isso: o renascimento das crenças pagãs europeias é frequentemente apresentado como espécie de “vingança” contra a cristianização da Europa, com igrejas sendo queimadas e evocações de antigos deuses.
Mesmo a mitologia grega e romana já vem sendo, há algum tempo, abstraída do legado ocidental, recuperando crenças pagãs anticristãs, tendo com o exemplo a obra do fascista italiano, Julius Evola, outro autor cada vez mais popular na juventude revoltada acima dos 40 anos.
Há alguns anos, católicos conservadores começaram a enfatizar o cristianismo presente na obra O Senhor dos Anéis como uma forma de permissão ou justificativa para que católicos consumissem a sua literatura. Esse comportamento, que tem sido comum na Igreja no último século, faz parte daquela postura de procurar uma fagulha de verdade em costumes ou modas a partir da conclusão (questionável) de que não se pode lutar contra certas tendências, sendo menos prejudicial que se busque extrair algo bom ou “cristianizá-la”. Se de fato a Igreja fez isso inúmeras vezes na história, isso não implica em um método que busca racionalmente criar arranjos teóricos criativos para justificar tendências contra as quais, por algum motivo, acredita-se ser inútil criticar. Quando isso se faz omitindo outros elementos, um “método” de conciliação parece ainda mais questionável.
O fato da Igreja se utilizar de elementos da cultura pagã na cristianização da Europa significa, na verdade, um esforço diante de uma barreira cultural muito pesada. A Igreja não fez o mesmo, por exemplo, diante das ameaças maçônicas e protestante de ataque direto à fé cristã, tampouco buscou conciliar a crença de hereges com os ensinamentos da Igreja. Ao contrário, quanto maior a apostasia e o paganismo, maior e mais forte deve ser a mensagem. Mas muitos católicos que se escandalizam com o Papa e sua Pachamama, na cultura se permitem uma série de pachamamices.
Para dar um exemplo pessoal, quando comecei a ouvir falar dos elementos cristãos de Tolkien achei bastante estranho, mas por envolvimento neste tipo de “culturalismo” conservador, deixei de lado o estranhamento. Mas o susto foi devido ao conflito com a minha própria experiência: na juventude, passei por ambientes subculturais como o underground, desde amantes de quadrinhos, RPG, literatura de horror, leitores de ocultismo até metaleiros extremos e góticos abertamente neopagãos. Todos eles amavam a estética de Tolkien, que remetiam como “medieval”, e a utilizavam com uma espécie de alimento cultural que favorecia certo culto. Eles gostavam de uma “idade média” sem Cristo, sem a Igreja e sem mosteiros e amavam o convite ao estudo de línguas estranhas. Este foi o mesmo efeito das obras igualmente fascinantes de Robert E. Howard e H. P. Lovecraft.
Não precisaria dizer nada disso se apenas recordássemos do significado do nome Burzum, a banda de black metal do lunático neonazista, neopagão e assassino, Varg Vikernes: “Burzum” é uma das palavras que estão escritas em Língua Negra na sentença: “Ash Nazg Durbatuluk Agh Burzum Ishi Krimpatul” (Um anel para atrair todos eles e uni-los através da escuridão). Burzum significa “escuridão”.
Premissas perigosas
Na verdade, há alguns pressupostos evidentes e problemáticos na insistência de alguns católicos em recomendar a leitura da obra de Tolkien com a justificativa de que ele era um católico. São premissas bastante difundidas na filosofia moderna e presentes até mesmo no catolicismo, mas que trazem riscos bastante óbvios como os mencionados.
Em primeiro lugar, a ideia de que Deus, a religião cristã e a doutrina da Igreja, podem ser expressos pela cultura moderna independente da sua forma, seja ela literal, realista ou mítica. Essa ideia pressupõe uma crença de que a narrativa sagrada ou a doutrina da Igreja estaria impressa numa espécie de inconsciente coletivo ou arquétipos que se fazem presentes na mitologia. Isso também está presente na obra do protestante C. S. Lewis.
Indo um pouco além, se a religião pode ser expressa pela cultura por meio de mitos inventados (e talvez possa mesmo), começa-se a pensar até mesmo numa exclusividade desse tipo de linguagem.
Na verdade, essa foi uma parte importante da própria técnica de escritores como Lewis e Tolkien, segundo os quais parece que a doutrina da Igreja, como ela de fato é, não possui mais poder de convencimento, sendo necessário, pela iluminação da geração atual (a que esses escritores pertencem), que seja elaborado um arranjo mítico-artistico para, digamos, “enganar” a juventude de que ela está consumindo ficção quando, no fundo, estaria consumindo os elementos cristãos. Por razões óbvias isso jamais poderia produzir mesmo alguma conversão, mas para esses conservadores uma espécie de “libertação” pelo imaginário parece ser mais importante do que a salvação da alma.
Premissa semelhante também operou resultados negativos na teologia, através do que chamamos de filosofia personalista, segundo a qual a mensagem de Deus, se é verdadeira, também pode ser encontrada no interior do homem. Com cada um buscando a Verdade de Deus dentro de si, o que poderia dar errado? O resultado estamos vendo.
Algumas fontes consultadas:
http://tolkniety.blogspot.com/2018/04/four-freemasons-in-jrr-tolkiens-family.html
https://rorate-caeli.blogspot.com/2014/02/the-fantasy-writing-of-tolkien-was.html
https://www.darkstar1.co.uk/ring.html