Em geral, nos acostumamos a preferir longos textos históricos e políticos sobre a lenta conquista, através de aprovações de leis e discussões parlamentares, a maquinações humanas que conduziram à aprovação e ampliação do aborto na sociedade brasileira e mundial. No entanto, se não tivermos em vista aquela classe de acontecimentos que realmente determina o avanço da chamada cultura da morte, de nada servirão as nossas boas intenções contra o aborto. E de que classe de acontecimentos estamos falando?
De quem é a decisão pela vida e pela morte? O aborto é mesmo contra o direito natural? A resposta parece óbvia, mas não é tão simples. Afinal, a sociedade moderna é um resultado de certas decisões e os seus frutos foram permitidos por Deus para a nossa santificação.
Estamos falando do mundo espiritual, mas não no sentido individual e, sim, o coletivo. Afinal, antes da cristianização do mundo, as sociedades estavam entregues às crenças tribais bárbaras, nas quais proliferavam seitas e práticas das mais cruéis e desumanas. Sacrifícios humanos, práticas de idolatria e culturas inteiras alicerçadas em permanente ofensa ao Criador eram comuns. A pedofilia, por exemplo, era uma cultura em muitos lugares, assim como o infanticídio e, é claro, a imoralidade de diversas formas.
Com a chegada da Igreja Católica, a conversão progressiva foi organizando as sociedades naquilo que hoje chamamos de civilização, dando origem finalmente à civilização cristã, consagrada na Idade Média, como sabemos. Mas o sucesso dessa empreitada civilizacional não teria sido possível apenas por obras humanas. Na verdade, seria ilógico pensar assim. Por que? É fácil concluirmos isso quando sabemos da imensa e pesadíssima resistência que os povos primitivos, muito mais numerosos e poderosos, tiveram contra os cristãos, fazendo milhares de mártires. É dogma da Igreja que as graças produzidas a partir do sangue dos mártires possui um poder incrível sobre a história humana. E é a isso que se atribui tamanha vitória na construção da civilização ocidental. Nós acreditamos mesmo nisso ou achamos que se trata de uma analogia ou beleza poética? A resposta pode revelar se fazemos parte da cultura da morte ou não, ainda que involuntariamente.
Depois disso, com a separação entre vida religiosa e vida intelectual, no final da Idade Media, observa-se a formação de classes laicas e a progressiva formulação de uma ideologia antirreligiosa, anticatólica, por meio de ideias filosóficas como o nominalismo, por exemplo, que ficou muito popular entre novos intelectuais, espécies de showmen dos púlpitos das universidades, povoando, depois, as primeiras publicações e os panfletos revolucionários disseminados pela Europa, especialmente a França, como sabemos.
O primeiro resultado prático foi o protestantismo, que deu origem a um vácuo religioso na sociedade. Esse vácuo foi preenchido tanto pela maçonaria e as seitas gnósticas quanto pelos movimentos e ideologias revolucionários, filhos todos do mesmo pai. E depois?
Sem nos perdermos em detalhes não menos importantes desse processo, vamos direto ao ponto: a sociedade ocidental, construída sob a rocha firme da Igreja Católica, sendo ela feita de homens filhos de Adão, foi aos poucos perdendo de vista aquele aspecto da graça sem o qual se vai confiando cada vez mais no homem e menos em Deus. Assim, o homem pegou para si o volante da história e o direito de decidir. O que fez Deus diante disso?
Secularizada, paganizada, satanizada propriamente, uma sociedade sem a graça vai se tornando não abandonada por Deus, mas adotada, por pleno direito, pelo Seu antagonista. É impossível que um tal abandono de Deus por parte do homem possa, existencialmente, não atrair para si consequências desastrosas. Não há, nisso, catástrofe humanitária, guerra, divergências diplomáticas, confusões ou genocídios que não sejam, eles mesmos, um resultado premeditado e determinado pela ausência da graça.
Todas as culturas pagãs, os cultos satânicos e aborígenes, as falsas religiões, as sociedades secretas, reivindicam legitimamente diante de Deus todo o poder perdido com a já distante cristianização do Ocidente. Deus é, por sua Justiça, obrigado a conceder, cabendo a nós, cristãos, aceitarmos o fardo e a cruz e fazer disso uma vitória. Como? Não pela política, não pela maquinação, não pelo jornalismo, não pela conciliação ou indiferentismo, estratégia ou cálculos humanos, mas pela submissão e servidão mais radical ao serviço da verdadeira e única Igreja de Cristo. O homem foi feito para servir a Deus, mas rebelou-se. Sendo assim, o único caminho que nos foi concedido foi o da cruz. Mas essa cruz pode ser de diversas formas. De um lado, ela se faz por aquilo que Plinio Corrêa de Oliveira considerava como “a única virtude que não existia no Paraíso, porque não era necessária: o heroísmo”.
Dizia São Pio de Pietrelcina que, se o mundo ficasse um único dia sem abortos, Deus concederia a paz ao mundo até o fim dos tempos. Essa frase, que parece aos olhos modernos uma analogia, um exagero poético, é tão verdadeira quanto a mais exata das sentenças matemáticas. É mais bela que a maior e mais perfeita catedral. É uma expressão perfeitíssima e irretocável da justiça, misericórdia e bondade divina. Mas o mundo, incluso aí boa parte dos ditos conservadores brasileiros, acostumaram-se a ver esse tipo de verdade com apenas algo belo e digno de ser postado, compartilhado e curtido; e não uma verdade a ser considerada como a informação mais relevante em termos de uma verdadeira e vitoriosa estratégia de guerra.
Portanto, o diabo tem pleno direito sobre o aborto, concedido a ele por Deus em Sua infinita Justiça. Esse direito lhe foi dado no momento em que o homem, por sua prepotência, quis decidir no lugar de Deus. O direito de decidir já foi garantido através de uma reivindicação legitimada pelo direito natural, um patrimônio caro tanto a Deus quanto ao demônio (quando a favor dele, é claro).
Está na hora dos católicos (sim, somente eles) reivindicarem a Deus os Seus direitos. Mas para isso precisamos responder, para obter, as graças que Ele nos oferece diariamente sem meias palavras.