A foice e o martelo, símbolo máximo do comunismo em todo o mundo, nasceu para evocar a deusa Marana, cultuada e temida por camponeses russos. A estrela de cinco pontas representava o domínio global sobre os 5 continentes, sinal claro do messianismo russo imperial. O bolchevismo veio de um arranjo sincrético que incluía o anseio de criar um novo homem, um novo povo, para uma nova era. Esta é parte da “tradição” que Aleksandr Dugin quer resgatar.
Hoje, quando o satanismo e o neopaganismo são populares na juventude, nada mais oportuno à Rússia que ganhar o apreço de jovens que não veem mais sentido no ocidente, exatamente como fizeram o bolcheviques no início do século passado. O panteão nórdico e eslavo vem se tornando extremamente popular na cultura, virando temas de séries, músicas e até venda de camisetas. Recentemente, o site Beyond Russia divulgou a obra de um artista gráfico que fez releituras de deuses eslavos.
Clima de paganismo
Já em meados do século passado, quando a Rússia estava prestes a mostrar ao mundo o horror do primeiro regime totalitário comunista, toda a sopa ocultista e neopagã que crescia do amálgama entre teosofia, maçonaria e feitiçaria popular com a ortodoxia russa, recebeu mais um episódio de decadência. Neste caso, começamos a ver a cara do duguinismo da atualidade em sua versão clássica. Afinal, quando vemos o simbolismo soviético expresso na foice e no martelo, pensamos imediatamente em um regime ateu, que professava uma ideologia baseada no materialismo histórico de Karl Marx. De fato, essa foi a principal influência da elite russa entre os finais do século XIX e início do seguinte.
Talvez prenunciando o surgimento tanto do nazismo alemão quanto do neoeurasianismo russo, por volta da metade do século XIX, surgiam os narodniks (populistas), considerados os primeiros socialistas da Rússia. Eles foram os primeiros a fazer uma propaganda contra o czar, mas destinavam as suas esperanças não no proletariado, já que a urbanização russa era ainda rudimentar. Eles apostavam todas as suas fichas no povo rural, no camponesa, classe que idealizavam de uma maneira até mesmo caricata. O episódio dos narodnik é cômico por várias razões. Foram idealistas românticos que acreditavam que o socialismo poderia saltar a etapa da industralização e ir direto a um socialismo agrário. Mas o seu ativismo esteve tão envolvido em equívocos que hoje podem ser considerados uma piada histórica dramaticamente verídica.
A sua técnica de propaganda era a distribuição de panfletos aos camponeses. Acontece que os camponeses eram analfabetos. Mas isso não foi tudo: esses intelectuais, pertencentes às altas esferas da elite russa, nem mesmo falavam russo, já que o idioma falado pela elite ilustrada da época era o francês e o alemão. Procuraram, então, aprender russo buscando se aproximar dos camponeses e os convencer da metafísica superior da revolta, mas não encontraram resposta. Indo às aldeias vestidos de camponeses e falando um russo rudimentar, fazendo danças camponesas estranhas, chegaram a ser considerados bruxos e alguns até queimados em fogueiras.
Essa é uma história real que ilustra muito bem a idealização das tradições e cultos populares. Mais tarde, porém, apesar de ser um imenso fracasso, serviu de base para os revolucionários que vieram depois.
Antecedentes russos dos nazistas
Quando vemos o malabarismo sincrético que Aleksandr Dugin faz utilizando a sua salada noomática trazendo Nietzsche, conceitos heideggerianos, a loucura evoliana e Guénon, não entendemos qual a razão de tamanho interesse. Dugin representa mais uma tentativa russa da busca por uma identidade metafísica, superior e incrivelmente estimulante para utilizar como base da sua política imperial. E isso encontra eco permanente nas ideias russas. Assim como a invenção alemã do “folk” (povo), os russos também buscaram criar o seu conceito de povo a partir de uma mistura para lá de sincrética. O resultado dessa mistura foi precisamente a Revolução Russa.
Por volta de 1909, alguns expoentes da geração desiludida com a tentativa frustrada dos Narodniks, começaram a recriar as tradições russas sob formas modernas e esotéricas. Foi a maneira encontrada para resolver a principal razão do fracasso dos populistas: o abismo aparentemente intransponível entre a intelectualidade e o povo.
De acordo com Bernice Glatzer Rosenthal, no livro Occult in Russian and Soviet Culture: From Tongan Villages to American Suburbs, esse processo é considerado como um novo renascimento do paganismo na Rússia pré-revolucionária, feito através das sistematizações dos elementos folclóricos e subsequente mistura com o ocultismo das elites intelectuais. Um dos símbolos desse movimento foi o balé de Stravinsky, “A Sagração da Primavera”, que termina com o ritual de sacrifício dos eslavos pagãos. A primeira parte da obra foi escrita por Roerikh, que retrata a dança em círculo, harmonia social e união orgânica com a natureza, espécie de versão russa da ariosofia, mas aliado à estética modernista radical dos primeiros anarquistas que se aliaram à Revolução.
O crescimento e manutenção das práticas de ocultismo na Rússia podem ser creditados, portanto, à pouca força da Igreja ortodoxa em coibir aquele fenômeno, fruto de uma visão um tanto conciliatória com as crenças populares mais arraigadas. Por exemplo, embora ainda no século XVI o juramento de lealdade ao czar incluísse a renúncia a todo tipo de feitiçaria, o universo camponês era povoado por símbolos dos espíritos da natureza sobre sereias, duendes da floresta, criaturas sutis vivendo entre as pessoas, fenômenos e forças espirituais. Segundo Rosenthal, a fé russa desse período era “dupla”, resultado de uma mistura conciliadora entre panteísmo pagão e cristianismo. Mantinha-se a fé da Igreja, mas incluindo um sincretismo pagão com o que era chamado de dvoeverie, o paganismo camponês russo, cujas práticas eram mantidas para fins de garantir boas colheitas, prevenir danos, cuidar da saúde ou até mesmo prejudicar um adversário. No Brasil, temos uma palavra para isso: macumba.
Xamanismo e futurismo
Data exatamente desse período o Manifesto de Marinetti, de autoria do poeta italiano, Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), fundador do movimento futurista. O manifesto foi publicado no jornal parisiense Le Figaro, em 20 de fevereiro de 1909 e influenciou profundamente a Rússia. Da mistura do fascismo de Martinetti com o modernismo e cubismo, surgia por volta de 1912, o grupo de ativistas russos Hylaea, considerado “cubo-futurista”, com forte influência do Cubismo e relação com vários artistas plásticos. O grupo publicou um manifesto intitulado “Um tapa na face do gosto público”.
Em contraste com o futurismo italiano, porém, a versão russa era um movimento heterogêneo mais ligado à literatura que às artes plásticas. Apesar disso, alguns de seus principais poetas como Maiakovski tenham se aventurado também na pintura e sua poesia tenha influenciado o construtivismo russo e interagido com os artistas que iriam fundar o Suprematismo, movimento artístico russo centrado na ênfase das formas geométricas básicas, como círculo e quadrado. Este movimento é considerado a primeira escola de pintura abstrata do movimento modernista.
O ocultismo e orientalismo estava mais do que presente neste movimento. O nome do grupo, Hylaea, era uma homenagem ao lar dos citas, os ferozes nômades da Ásia Central. O movimento de subversão cultural se tornou um refúgio de intelectuais, que viam no princípio revolucionário a sobrevivência dos cultos de misterios pagãos, fundando um sectarismo mágico que se acreditava verdadeiro herdeiro do cristianismo esotérico a partir da rejeição à Igreja estabelecida. Eles consideravam o czar como o Anticristo, razão pela qual apoiaram a Revolução. Como podemos ver, nem tudo nos bolcheviques era ateísmo.
Ainda pouco antes da revolução, começou o interesse por uma sistematização de folclore siberiano e da mitologia nórdica aborígene russa. Um deles é o antropólogo revolucionário Vladimir Bogoraz, que havia deixado a Rússia em 1901, indo para Nova York, onde se tornou curador do Museu Americano de História Natural e publicou sua pesquisa sobre a cultura do povo siberiano chukchee sua mitologia. De volta à Rússia, ajudou a organizar o Primeiro Congresso Camponês e o Grupo Trabalhista na Duma e em 1910, foi publicada uma coleção de suas obras em dez volumes. O xamanismo fascinava a classe intelectual modernista, que via a si mesma como uma espécie de casta sacerdotal. O pintor e etnólogo Kandinsky e outros modernistas viam os artistas russos como espécies de curandeiros espirituais, consagrando uma linguagem encantatória xamânica como principal fonte do conceito futurista de zaum, que significava uma linguagem “transracional”, associada por sectários místicos à glossolália, fala em línguas incompreensíveis como fenômeno místico.
A força do ocultismo e as práticas mágicas estavam integradas na corte imperial da Rússia desde o início daquele século que terminava. Afinal, o sincretismo com a ortodoxia promovido por ideias maçônicas e teosóficas levava a uma busca crescente por uma iluminação pessoal que conduzia à descoberta de um destino comum ao povo russo. É dessa época o poder da figura de Rasputin, cujo aparecimento foi, na verdade, a culminação de uma longa série de charlatões místicos que influenciam a corte. Um dos que o precederam e abriram caminho para a influência imperial foi o Barão Phillippe, da França.
A ligação da corte russa imperial com o ocultismo era flagrante e remonta ao reinado de Pedro III, no qual Catarina, a Grande, insinuou fortemente que o verdadeiro pai de seu filho e sucessor, o czar Paulo I, não era seu marido Pedro III da Rússia, mas sim Sergie Saltykov, também conhecido pelo pseudônimo de Conde St. Germain. Foi um general russo que teria participado de uma conspiração com o exército para ajudar Catarina a usurpar o trono de Pedro III. O filho deles, Paulo I, chamado o “imperador de todas as Rússias”, teve ligações como famoso ocultista Jacob Frank, autodenominado sucessor de Sabbatai Zevi (1626-1676), em Viena.
A maçonaria russa se estabelecia e fortalecia na corte russa por meio da ligação com a Ordem dos Cavaleiros de São João de Jerusalém, suposta herdeira da ordem dos Cavaleiros Hospitalários da Rússia, que se tornou, já no século XIX, a Odem de Malta da Rússia, de caráter extremamente ecumênico, professando assim o indiferentismo religioso típico da maçonaria, que reunia toda a elite russa de então. A suposta ligação com o passado cristão das cruzadas dava legitimidade na corte e enfatizava um um prestígio de nobreza e alto grau espiritual ao Império Russo, o que se unia com o ocultismo dos intelectuais da elite revolucionária.
Não por acaso, crescia na Rússia as crenças antissemitas, acompanhando a moda europeia, mas principalmente fundamentadas no próprio paganismo eslavo e na teosofia. Isso contribuiu para a disseminação dos “Protocolos dos Sábios de Sião”, falsificação feita por Sergei Nilus, difundida por agitadores como Illior John de Kronstadt, arcipreste ortodoxo russo e membro do Santíssimo Sínodo da Igreja Ortodoxa Russa. Conhecido por suas confissões em massa, numerosos milagres e trabalhos de caridade, tornou-se um santo da Igreja Ortodoxa, mas associava os judeus a demônios. A marca desse período era justamente a união entre ocultismo e antissemitismo.
A foice, símbolo da deusa Marana
Foi exatamente baseados na necessidade de justificação revolucionária populista e fundada em raízes místicas que aqueles intelectuais profundamente influenciados pela teosofia, espiritismo e misticismo maçônico resolveram aprofundar o sincretismo com a feitiçaria pagã praticada pela população do campo. Uma dessas crenças se baseava no resgate de antigos mitos do panteão eslavo, como a deusa Marana, também chamada Marzanna, que representava o frio, o inverno e as colheitas, cujo símbolo era a foice. Ela também era a deusa da morte e tem representações em que carrega bebês no colo.
Marzanna era cultuada também entre pagãos da Polônia, Croácia e Ucrânia, espécie de padroeira de festivais de inverno no qual se fazia oferendas por uma boa colheita. Marzanna é, na verdade, um demônio adorado pelo povo russo, representada por uma imagem feita de palha e trapos, que era queimada e atirada em lagos para que retornasse ao submundo, na esperança de que levasse consigo o frio rigoroso que deteriorava as plantações.
A história de Marzanna traz uma série de mitos perturbadores, como o epíteto da esposa traída. Segundo a sua mitologia, ela era filha de Perun, o deus do raio e da tempestade. Marzanna teria se casado com seu irmão gêmeo, o deus Gerovit, que a teria traído. Após a traição, enfurecida Marzanna decapitou-o com uma foice e com isso deixou de ser a senhora da primavera para ser o terror do frio, trilhando o caminho para o submundo chamado Nawia. Outro título de Marzanna se associa com o tormento aos homens. Transformada em predadores, ela caçava à noite e bebia sangue humano, especialmente dos homens, tendo um caráter vampírico e também se associava com a podridão e terríveis pesadelos gerados em suas vítimas. Um dos costumes entre as mulheres, por exemplo, era o de orar pedindo que ela se afastasse das cozinhas, pois a sua presença provocava o mofo e podridão de alimentos.
Essa deusa guarda incríveis semelhanças com o desenho da Disney, Frozen, sobre Elza, rainha ligada ao frio.
Culto da androginia
A fascinação pelo oculto e o sectarismo levou a rejeições dos padrões de moralidade, especialmente a partir da profunda influência que teve a obra de Nietzschie. Rosenthal recorda a importância da androginia como fundamento para justificação de homossexualidade e lesbianismo anterior à revolução.
Como na Europa Ocidental, o ideal da androginia foi usado para justificar a bissexualidade, a homossexualidade e o lesbianismo, mas com um toque exclusivamente da Rússia – arranjos, incluindo manage à trois, baseados no significado místico do número três. Berdiaev se opôs especificamente à família por vincular homens e mulheres a preocupações mundanas. Pregando a sublimação sem realmente usar o termo, ele também acreditava que desperdiçar a semente masculina enfraquece o indivíduo e embota os poderes criativos, um princípio encontrado em muitas doutrinas ocultas.
Embora a ideologia contemporânea ocidental, surgida a partir da revolução sexual dos anos 60, reivindique o pioneirismo das ideias libertárias da sexualidade, tudo isso já estava presente no ocultismo russo imediatamente anterior à revolução de 1917, fazendo parte do caldo cultural e tradicional das ideias ocultistas recuperadas pelos neoeurasianos como Dugin. A combinação explosiva entre as interpretações ocultistas do cristianismo ortodoxo russo, de matiz profundamente apocalíptica, com as ideias políticas radicais, anarquismo e marxismo, fundamentaram o verdadeiro revolucionismo místico que levou ao regime soviético.
Durante todo o regime soviético, através do teatro russo, ocultistas estiveram presentes na administração do regime, como através de círculos esotéricos como o próprio Circulo Yuzhinski, do qual saiu Dugin e que foi responsável pelas primeiras traduções de René Guénon na Rússia.
A ideia de que o amor e uma nova síntese religiosa, um novo mito, uniriam a nova sociedade mundial em torno de um “novo céu e nova terra”, conduziam aquela intelectualidade a crenças ocultas, misturadas com a ideia joaquimita de uma Terceira Revelação. Merezhkovsky chegou a acreditar que a Revolução de 1905 foi o início do Apocalipse que inauguraria a nova era russa no mundo. Rudolf Steiner, seguidor de Blavatsky, movimentou a elite europeia ao anunciar, por volta de 1905, o fim da “era do indivíduo” e o início de um período espiritual do qual a Rússia seria a guia final e total da nova espiritualidade.
O que vimos na Nova Era foi o guiamento de toda a classe artística e intelectual ocidental através de um profundo orientalismo hedonista e idolátrico, difundindo à população inteira crenças e mitos que antes só eram lidos ou ouvidos dentro de templos maçônicos ou sociedades secretas. Agora, como diria Crowley, todos se tornaram satanistas sem perceber. E ainda tem quem pense na Rússia como guia do conservadorismo mundial.
Bibliografia recomendada
- Isaiah Berlin. Russian thinkers
- Bernice Glatzer Rosenthal, no livro Occult in Russian and Soviet Culture: From Tongan Villages to American Suburbs