Renã Pozza
Quem domina a linguagem, domina o discurso. Quem domina a linguagem, domina o ambiente cultural. Quem domina a linguagem, domina o “pensamento coletivo”.
Muitos psicólogos, psiquiatras, filósofos e cientistas políticos vêm alertando para os perigos do politicamente correto – elemento essencial para a revolução cultural já em estágio avançado – há décadas. Poucos foram relevantemente ouvidos. Embora políticos venham ganhando espaço com um discurso antípoda do politicamente correto, concessões e mais concessões têm de ser feitas. Isso tem acontecido na prática, no dia-a-dia, no exercício do poder ou no cotidiano de vida normal. O politicamente correto é uma espécie de mandamento divino, o qual bíblica e cristãmente, a Igreja sempre condenou como respeito humano. Cuidado. Não confunda respeito à dignidade da pessoa humana com o termo respeito humano. O respeito humano, condenado historicamente, ocorre quando nos omitimos, deixamos de falar a verdade ou abdicamos de termos que melhor expressariam realidades horripilantes por medo de magoar sentimentos. Isto é uma tremenda falta de caridade: deixar de corrigir erros para não chatear momentaneamente aqueles que podem sofrer seqüelas incuráveis quando, ao ouvirem a verdade, teriam, pelo menos, uma chance de se emendar. Não se trata de andar apontando dedos e julgando tudo e todos. Há discernimento requerido na esfera privada. Mas, na esfera pública, no tocante a idéias perigosas correntes, ser claro e enfático é um dever inegociável.
O politicamente correto superou o respeito humano, deu um upgrade elevado à enésima potência. Se o respeito humano é a omissão ou a concessão de verdades desconfortáveis, o politicamente correto é transformar a mentira em verdade, não só omitir, mas substituir palavras, distorcer seus significados e mudar seus conceitos, de maneira que a linguagem seja inteiramente trocada por truques semânticos que, homeopaticamente, vão imbecilizando os indivíduos e deixando a sociedade à mercê de revolucionários ávidos por poder, “direitos” e privilégios.
Usa-se a palavra “democracia” para amordaçar a democracia. O que era tolerância religiosa, agora, é liberdade religiosa. O livre arbítrio é transferido a uma liberdade absoluta e degenerante que não conhece limites. Os valores que forjaram a melhor civilização de todos os tempos, agora, são usados contra ela, chamados de retrógrados e condenados como preconceitos e discriminação injusta.
Um exemplo cristalino fará o leitor perceber a astúcia psicológica dos movimentos de minorias – pensado, como sempre, não por eles, mas por quem os usa como massa de manobra.
Quem está cansado do movimento LGBT lançando moda se recusa a falar LGBTQIAPN+. Mas antes de ser LGBT, era lobby gay, e antes de ser lobby gay, a simples palavra “gay” queria dizer alegre. “Alegre” veio para substituir homossexual, pederasta, sodomita e tutti quanti. Notem: não querer adotar o termo LGBTQIAPN+ se tornou irrelevante, pois a população já cedeu tanto ao linguajar revolucionário, que neste caso pouca diferença faz.
Peculiarmente, mesmo a instituição mais tradicional e ininterrupta do planeta vem, há várias décadas, especialmente após o Concílio Vaticano II, cedendo cada vez mais. Na tentativa de diálogo com o homem e o mundo moderno, a alta hierarquia da Igreja Católica mudou até mesmo suas orações traduzidas. Para não escrever mais do que o necessário, cito três apenas.
- Durante a Missa, o sacerdote fala: “O Senhor esteja convosco”, e o povo responde: “Ele está no meio de nós”. Foi sempre assim?
Não. A resposta seria: “E com o teu espírito”.
Por que raios, então, traduzem dessa forma tão discrepante?
Para a assembléia não se sentir menos que o padre. Quando o padre fala “o Senhor esteja convosco”, a tradução literal, a que seria correta, é uma resposta do povo àquele que está in persona Christi. O correto foi substituído pelo igualitarismo de mentalidade socialista.
- Na oração do Pai Nosso, reza-se: “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”.
Pode isso, Arnaldo?
Ouso dizer que não deveria. Qual é a tradução literal das antigas línguas grega, hebraica e latina?
“Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores.”
Tem diferença?
É claro que tem. Primeiro, ofender a Deus sempre é pecado, mas ao irmão nem sempre. Jesus ofendeu, xingou, chicoteou quando julgou necessário, tudo sem pecar e com amor infinito. Segundo, a oração do Pai Nosso, em tese, é para todos rezarem, inclusive santos que já não pecam mais e até Nossa Senhora. A Virgem Maria, segundo a fé católica, jamais ofendeu a Deus, mas todas as criaturas estão em dívida com Ele pela mera existência.
Alguns podem argumentar que santos como a Santíssima Virgem, São João Batista e São José rezariam falando “nossas ofensas” tomando para si, a exemplo de Jesus, os pecados da humanidade. Explica, mas não justifica. Houve a substituição de palavras para que o homem moderno não associe “dívidas” a uma idéia monetária. Ué, e para que existe a catequese?
- O Credo, o Símbolo dos Apóstolos.
Nos terços e nas Missas dominicais e Dias de Guarda, rezamos, lá pelas tantas: “desceu à mansão dos mortos”.
“O que há de errado agora, sr. Cri-cri?”
Durante quase dois mil anos, sempre se rezou – porque realmente é assim que se reza: “desceu aos infernos”. “E qual é a diferença?”, me pergunta o nobre cidadão.
A isso, quem responde é o magno Santo Tomás de Aquino, na Exposição sobre o Credo, artigo quinto, resumidamente:
“Por quatro razões Cristo desceu com a alma aos infernos. (1) Para que suportasse toda a pena do pecado, e, assim, expiasse toda a culpa. A pena do pecado do homem não foi somente a morte do corpo, mas também a punição da alma”.
Isto mesmo: Jesus, para redimir totalmente o homem, também sofreu na alma as conseqüências do pecado.
(2) “Muitos que estavam nos infernos que para lá desceram possuindo caridade e fé no Esperado, como Abraão, Isaac, Jacó, Davi e muitos outros homens justos e perfeitos.”
Os justos desciam aos infernos, não para sofrer os tormentos dos condenados, mas em uma parte reservada para os eleitos. Sofriam, no entanto, privação da visão beatífica – o que em si já é um tormento. Jesus foi consolá-los.
(3) “Alguém só tem triunfo sobre outrem, não apenas quando vence no campo de batalha, mas até quando ainda lhe invade a própria casa, e se apodera do palácio. Cristo já havia triunfado do diabo e o vencera na cruz… para que triunfasse de um modo completo, quis tirar-lhe a sede do reino, e prendê-lo na sua própria casa.”
É autoexplicativo. O diabo não sabia que Cristo era Deus, esta informação lhe foi sonegada, pensou ser um homem muito santo, tanto que o tentou. Jesus o humilhou de maneira perfeita.
(4) “Para libertar os santos que estavam nos infernos.” Antes de Jesus as portas do Céu estavam fechadas. O Filho de Deus encarnou-se Filho do Homem no seio de Maria, morreu, ressuscitou e conduziu seus servos ao Paraíso.
Enfim, o termo “mansão dos mortos” faz parecer que Jesus Cristo só desceu para cumprir o número 2 e 4 da exposição de Santo Tomás. Qual o motivo da mudança?
“Inferno” é um nome feio, assusta as pessoas. “É melhor colocar mansão dos mortos que choca menos”, corroborando para uma geração de fracos.
Vou ficando por aqui. Antes, gostaria de dizer que não pretendo com este texto mudar a forma que as pessoas rezam, nem criticar ou pressionar bons sacerdotes que não se atém nisso para se concentrarem em coisas urgentes e mais importantes. Quem reza com piedade, creio eu, será ouvido por Deus. Todavia, convenhamos, não é mera coincidência que na Igreja, assim como em quase todos os lugares, esteja repleta de idiotas, pessoas que vivem como se Deus não existisse, que vão à Missa para cumprir um “protocolo social” e minadas de ideologias modernas na cabeça.
Não percamos de vista: quem domina a linguagem, domina o discurso, a política, a cultura corrente e – pasmem! – ultimamente, até mesmo a religião cristã e as orações.