Renã Pozza
O ano era 2012, portanto, antes do movimento de levante da nova direita e da anarquia de certos grupos esquerdistas em 2013. O Brasil começava a respirar por aparelhos sob o governo de Dilma Rousseff. Os EUA, por sua vez, estavam prestes a viver um pleito eleitoral que consagraria Barack Obama presidente por mais quatro anos. Nos subúrbios da classe falante, longe dos olhos da grande mídia tradicional, cada vez mais pessoas ouviam falar num treco chamado Nova Ordem Mundial. Teorias, hipóteses, documentos, debates e fantasias de todo o tipo circulavam pelas cavernas do submundo, para onde são levadas as almas que ousam querer saber mais do que transmite o Jornal Nacional. Nesse cenário, dois pensadores de conhecimento abrangente e incomum mas com visões opostas sobre a realidade corrente, têm divulgada sua contenda de meses em livro: nascia, assim, Os EUA e A Nova Ordem Mundial.
De um lado, o intelectual mais influente da Rússia de Putin, filho de oficial da KGB e com vastos recursos de propaganda. Do outro, um modesto professor de Filosofia, escritor e educador brasileiro de primeira linha, porém renegado e tentado ao ostracismo por seus pares. Seu crime? Perceber o que estava acontecendo no mundo e não aceitar mentir para si mesmo e seu público. Eram eles Alexandr Dugin e Olavo de Carvalho.
O prof. Dugin começa sua exposição. Para ele, há três distintas inclinações dos Estados Unidos a serem adotadas: (1) a dos neocons, o Império Americano stricto sensu, trabalhando para fragmentações e perturbações de outros Estados mantendo-os sempre vassalos; (2) a criação de uma unipolaridade multilateral (esta seria a preferência do Partido Democrata) e os norte-americanos cooperando com os amigos, fazendo pressão no que ele apelidou de “países canalhas” (Irã, Venezuela, Coréia do Norte) e em “coitadinhos” tentando sobreviver e assegurar sua independência, como – vejam só – Rússia e China; (3) a aceleração de instalação do Governo Mundial, projeto do CFR (Conselho de Relações Internacionais), capitaneado por George Soros e suas fundações através das chamadas Revoluções Coloridas. Dugin cita Stephen R. Mann, especialista político, e até fala umas verdades sobre os perigos do uso da democracia como arma de manipulação – algo, diga-se de passagem, sem nenhuma novidade. Esse perigo está explícito desde a Grécia antiga e, mais recentemente, vai de Hitler a Hugo Chávez sem causar espanto a ninguém com os neurônios funcionando. Dugin vê tudo isso com maus olhos, afinal, ele só quer o bem, a paz e a alegria de todos os seres vivos. Curiosamente, ele afirma que, para nós, membros da Civilização Ocidental, possíveis herdeiros da Cristandade, “americano” significa “universal”. Ou seja, aos poucos, de uma compreensão ao próximo diante do malvado Estados Unidos da América, ele vai estendendo sua pregação contra o continente americano inteiro, contra a Europa, contra o Ocidente, contra a Igreja Católica. Encerrando o capítulo, como alternativa, o prof. Dugin mostra três estratégias vigentes advindas de três grupos diferentes, tentativas estas de contra-ataque às nefastas idéias ocidentais: O Califado Islâmico, o neo-socialismo e o Projeto Eurasiano multipolar ou dos “Grandes Espaços”. Vem o prof. Olavo de Carvalho e o pulo do gato. Alexandr Dugin não esperava um adversário tão antenado. As cortinas se abrem, o show começa e o lombo dói.
A partir daqui, caro leitor, sem mais delongas. Caso contrário, por que indicar o livro, não é mesmo? Também não vou expor minuciosamente a Quarta Teoria do prof. Alexandr Dugin. Para quem quiser se aprofundar no tema, recomendo as aulas, os artigos e os estudos em geral do meu colega Cristian Derosa – autoridade no assunto eurasianismo.
Olavo ressalta que, diferentemente de seu opositor, não pertence a governo, partido, instituição ou seita alguma, podendo mudar de opinião e declará-la com liberdade suprema. Lembra de que Dugin é homem da KGB, serviçal e mentor do homem a quem deu a alcunha de “a própria KGB encarnada”, levando ao seguinte aforismo: “Dizer que o prof. Dugin está no centro e no topo do poder é uma simples questão de realismo”. Com seu inato talento, bom-humor e irreverência, ilustra a distância de poder temporal entre eles com uma divertida imagem.
Entrando no conteúdo, Olavo explica que são três os blocos, ora concordantes ora concorrentes, disputantes sobre o domínio mundial.
- A elite governante da Rússia e China, especialmente os serviços secretos.
- A elite financeira ocidental (Clube Bilderberg, CFR, Comissão Trilateral etc.).
- A Fraternidade Islâmica e alguns líderes muçulmanos.
Desses três somente um encaixa-se como fator geopolítico predominante, justamente o que o prof. Dugin se aloca e representa. Os outros dois não têm compromisso com nacionalismo e espaços geográficos. O segundo, a quem Olavo deu o nome provisório de Consórcio, trabalha incansavelmente contra as soberanias nacionais. O terceiro tem apelos e apegos a antigas nações, mas, quando contrastado o interesse entre governos islâmicos e Califado Universal, obrigatoriamente o último sempre vencerá. O que se segue é uma enxurrada de detalhes e argumentos comprobatórios que levaram nitidamente, conforme as respostas vindouras, o opositor russo ao desespero. Não tenho como, sem escrever um livro, replicar palavra por palavra. Olavo usa sem cessar expoentes da intelectualidade russa, lideranças governamentais russas, palavras de Putin, mestres de Dugin e palavras de Dugin contra o próprio Dugin. Ele explica como a decadência ocidental denunciada por seu debatedor teve ampla, violenta e decisiva ajuda – e tem até hoje – da inteligência soviética, como a União Soviética e a Rússia atual financiava e ainda contribui com o terrorismo dos radicais islâmicos, como a Rússia apóia ditaduras em países subdesenvolvidos, impedindo-os de melhorar sua qualidade de vida. Explicita Olavo de Carvalho que, no Ocidente, os governantes não são os sujeitos mais poderosos, mas na Rússia e na China, sim. O Professor lembra quais são os crimes principais de que os EUA são acusados: duas bombas atômicas, matando centenas de milhares de inocentes em tempos de guerra. E quais são as maiores atrocidades da maravilhosa Eurásia e Grande Mãe Rússia? Matar centenas de milhões de compatriotas em tempos de paz. Se o leitor pensa que parou por aí, não, não parou. Olavo estudou Dugin. O prof. Alexandr Dugin defende o “mundialismo” contra a “sociedade aberta”, defende a velha sugestão de Moscou como a Terceira Roma, o Império Russo do extremo-leste a Portugal e a aniquilação de todos aqueles que não queiram aderir às propostas irresistíveis de suas teorias. Por fim, a frase de semancol que serviu como chapéu para o resto do debate:
“Seria ótimo se cada país aprendesse a curar seus próprios males antes de se fazer de salvador da humanidade”.
Depois, leitor e seguidor nosso, é uma mistura de comédia e tragédia. Num estilo claramente sofista, para pegar bobo, o prof. Dugin fala em brâmanes, chátrias e vaixás, tenta questionar o patriotismo de Olavo solicitando virtude ao prestar solidariedade somente aos países governados por esquerdistas à época, começa a conjecturar as preferências políticas de Olavo e o porquê de suas opiniões. É um festival de vergonhas, um fiasco.
Após nova resposta de Olavo, desta vez ordenando frase por frase, alegação por alegação e dando verdadeira aula de globalismo, ideologias reinantes e geopolítica, Dugin joga a toalha. Seu novo capítulo é uma queixa de que “se soubesse que seu opositor era tão baixo (traduza-se: difícil de encarar) não teria topado”. Dugin diz que aquilo se tornou muito desagradável. “Desagradável? Isto aqui está uma delícia!”, responde Olavo. Só sobrou para o filósofo e agente russo a militância. É “juntem-se a mim” para cá, “temos um inimigo comum” para lá, “o prof. Olavo não tem coragem de dizer de que lado está, eu tenho”, e outros impropérios.
Quem não leu esse livro, precisa corrigir isso. É muito aprendizado e muita risada. Houve quem, por maluquice ou burrice, tenha achado o debate parelho ou até mesmo que Dugin venceu. O livro assim tornou-se, também, um perfeito apontador de analfabetos funcionais. O prof. Alexandr Dugin, no que pese realmente ser um intelectual sério, é um sofista: ele utiliza termos SOFISTICADOS para sofismar, induzir ao que ele quer fazer-se acreditar. Não à toa, de uns tempos para cá, direitistas conservadores e até mesmo católicos tradicionalistas venham caindo, cada vez mais, em seu discurso sedutor. Mas ele não é nosso amigo e jamais será. Sim, Alexandr Dugin, diferente dos adversários que Olavo de Carvalho tinha no Brasil, é um intelectual e filósofo de verdade, um escritor de mão cheia, mas ele é, principalmente, um agente político, agente do caos, agente perigoso, ideólogo e pregador de pensamentos corrosivos.
Quando o prof. Olavo de Carvalho nos deixou, sem mesquinharia, o prof. Alexandr Dugin prestou sua homenagem e suas condolências. Nem mesmo o melhor dos sofistas é pulha como a intelligentsia brasileira.
Em determinado momento, parecendo até mesmo admirá-lo, o ideólogo russo admitiu:
“Foi o debate mais duro que já tive”.
Entrevista com o inimigo
Tem repercutido, em geral de maneira negativa, uma entrevista feita pelo Estúdio 5º Elemento ao prof. Alexandr Dugin. O pessoal do programa foi a Moscou para entrevistar o polêmico e destrutivo filósofo. Vi pessoas que respeito falando bem e mal da atitude. Um amigo me disse que entrevistar não é concordar, e ele está certo. Não assisti à entrevista, então, não posso irresponsavelmente opinar sobre o seu conteúdo. No entanto, posso falar o que penso de maneira geral sobre o ato de entrevistar inimigos declarados. Vejo a coisa por dois prismas.
Há entre nós, oriundos de um mundo pós-iluminismo e de uma democracia liberal cambaleante, sempre a desculpa de que se deve, em nome da liberdade, dar voz a todos. Isso é como um vício. Se Satanás se materializar devo entrevistá-lo para dar-lhe a chance de todos saberem o que ele pensa? Afinal, vai que Satanás seja bonzinho e o povo não saiba. A mentira não tem direitos como a verdade ou, pelo menos, o estado de dúvida.
Por outro lado, pode-se fazer uma entrevista a alguém considerado um inimigo de nossos valores, sim, contanto que não seja uma conversa de comadres. Se vou entrevistar um opositor, ele precisa ser incomodado, é necessário que se faça perguntas duras, que o encurralem, tirá-lo da zona de conforto. Não desrespeitá-lo, não agredi-lo verbalmente, não ser deselegante, nada como os pseudojornalistas faziam com Bolsonaro, por exemplo, pois isto seria o oposto de jornalismo. Mas questioná-lo com veemência é o mínimo. No caso de Dugin temos um prato cheio. O que ele pretende com a história da Nova Roma? Ele já chamou a Igreja de Roma de Leviatã. Será que mantém essa idéia? Ele ainda pretende exterminar dois terços ou três quartos da humanidade? Os exemplos são múltiplos.
Não assisti à entrevista ainda, confesso novamente, não sei o teor. Mas a minha idéia é esta: zero holofotes ou desconforto.
“Não existe liberdade sem verdade” – Joseph Ratzinger.