André Figueiredo
Já falei um pouco das bases da psicanálise e suas ligações com o ocultismo. Mas ainda existem algumas considerações a serem ditas sobre esse culto à loucura (ritualístico) inspirado num culto antigo ao deus Momus (sim, o Rei Momo), o deus grego dos carnavais.
Ele está relacionado ao arcano 22 do Tarô (the fool, o louco, o tolo). Segundo Ken Kesey, “o denominador comum é o ‘coringa’. É o símbolo do brincalhão. Os estudiosos do tarô dizem que, se não fosse o tolo, as demais cartas não existiriam. O resto das cartas existem para o benefício do tolo.” O papel de Kesey como cobaia médica o inspirou a escrever One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Um estranho no ninho), em 1962, que apresentava o tema da anti-psiquiatria e todo movimento anti-manicomial que temos hoje como uma das principais pautas da esquerda e popular em Esalen, Califórnia, que foi fundada na noção de “loucura divina” (Nise da Silveira, alagoana que plantou essa semente no Brasil era filiada ao PCB e sofreu influência de Esalen, tendo citado inúmeras vezes, por exemplo, o físico novaerista Fritjof Capra). A noção do tolo sábio de Shakespeare também sobreviveu em exemplos mais modernos, incluindo as “travessuras” dos Bohemian Groves.
As cerimonias do Bohemian Grove ficaram famosas após um vídeo do Alex Jones que, assim como David Icke, induz uma solução com base em ideias de Nova Era e teosóficas para as pautas conspiracionistas que apresentam, ou seja, um redpill gnóstico, mas esse assunto fica pra depois.
O Bohemian Club hospeda um acampamento de duas semanas em Bohemian Grove. O Bohemian Club foi fundado em 1872 na área da baía de São Francisco a partir de um encontro regular de jornalistas, artistas e músicos. Bohemian Grove é um acampamento restrito localizado em Monte Rio, Califórnia, que reúne membros de alguns dos homens mais proeminentes do mundo, incluindo líderes empresariais, celebridades e funcionários do governo para “relaxamento e entretenimento”.
Na noção do malandro, proposta pela primeira vez pelo renomado psicólogo Carl Jung, para explicar o recorrente arquétipo do Diabo e suas variações e que está bastante associado à entidade conhecida no Brasil como Zé Pelintra, que aparece em muitas gravuras com uma garrafa de cachaça. Representa a tentativa de reviver o que foi interpretado como os cultos dos “deuses moribundos” dos tempos antigos, mas muitas vezes coloridos pela interpretação moderna. Em outras palavras, a mesma tradição do “tolo sábio”.
Em Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo (1959), Jung lista a Festa dos Tolos como uma adaptação européia do arquétipo do trapaceiro. Os arquétipos, segundo Jung, são temas humanos fundamentais encontrados em toda a mitologia mundial e são o produto do que ele chama de inconsciente coletivo. Os motivos incluídos são a mãe, a criança, o trapaceiro e a inundação, entre outros. Reinventado de cultura em cultura na mitologia e no folclore, o malandro é apresentado como deus, espírito, homem, mulher, animal antropomórfico, ser sobrenatural ou a ocasional fada travessa que desobedece regras e comportamento convencional, causando caos e também inspirando algum tipo de mudança para ocorrer, ou seja, sua presença “inspira” momentos revolucionários. O malandro é um metamorfo e, portanto, tem a possibilidade de transformação. O louco ou o bobo da corte sobrevive nas cartas de baralho modernas como o coringa.
Na mitologia e no estudo do folclore e da religião, um trapaceiro é um personagem de uma história (deus, deusa, espírito, homem, mulher ou antropomorfização), que exibe um alto grau de intelecto ou conhecimento secreto e o usa para pregar peças ou desobedecer regras normais e comportamento convencional. É o fora da lei, o revolucionário, o cabalista ou membro de uma sociedade secreta. De fato, hereges de todos os tipos são de uma disposição altamente associativa, se não sociável, e um certo elemento de jogo é proeminente em todas as suas ações.
O clichê do trapaceiro é uma adaptação da concepção de Shakespeare do bobo da corte, e exemplos de tolos que dizem a verdade na “Twelfth Night”, “As You Like It” (Os primeiros editores de Shakespeare também viram ecos de Rabelais em As You Like It) e Rei Lear. O romance Ivanhoe (1819), de Sir Walter Scott, e Connecticut Yankee, de Mark Twain, na Corte do Rei Arthur (1889) são exemplos literários da moda duradoura. O bobo da corte, companheiro cômico na mania medieval daquela época, foi imaginado dizendo ao rei o que ninguém mais ousava dizer.
Sonho de uma noite de verão está repleto de simbolismo oculto. A peça também entrelaça a Véspera do Solstício de Verão, referindo-se ao tradicional feriado pagão do solstício de verão. O Puck de Shakespeare é um bobo da corte que se deleita em brincadeiras e piadas práticas, é o personagem de Lúcifer. A ideia do travesso Puck também inspirou o arquétipo do tolo sábio, que Shakespeare ajudou muito a popularizar no teatro inglês ao incorporar o tropo em uma variedade de personagens ao longo de muitas de suas peças. O paradoxo do tolo sábio é demonstrado através do bobo da corte no Rei Lear de Shakespeare, que trabalha na corte real e continua sendo o único personagem que Lear não pune severamente por falar o que pensa sobre o rei e suas situações precárias. A palavra inglesa “clown”, que foi registrada pela primeira vez em 1560, é usada como o nome de personagens tolos em Otelo de Shakespeare.
Mais do que Shakespeare ou Don Quixote de Cervantes, Erasmo de Rotterdam, que elogiou Momus (na mitologia grega, Momus era a personificação da sátira e da zombaria) como um defensor da crítica legítima das autoridades em Elogio da Loucura (1511), um ataque satírico às superstições e outras tradições da sociedade européia, bem como na Igreja Ocidental. Rotterdam é frequentemente creditado por criar o tolo sábio definitivo por meio de sua representação de Stultitia, a deusa da loucura. Influente para todos os tolos posteriores, ela mostra os caminhos tolos dos sábios e a sabedoria dos tolos por meio de seu próprio elogio, o elogio da loucura.
Outra influência óbvia é a teoria do “carnavalesco”, desenvolvida pelo filósofo soviético Mikhail Bakhtin (1895 – 1975), para inverter divertidamente as convenções sociais por meio do humor e do caos, cujas origens ele remonta à Festa dos Tolos. Victor Hugo recriou um relato pitoresco de uma Festa dos Tolos em seu romance de 1831 O Corcunda de Notre Dame, no qual é comemorado em 6 de janeiro de 1482 e Quasimodo serve como Papa dos Tolos. Isso é mostrado na versão animada da Disney de 1996, do romance por meio da música “Topsy Turvy”, cuja letra inclui: “É o dia em que o diabo em nós é liberado; É o dia em que zoamos o presunçoso e chocamos o padre; Tudo está de pernas para o ar na Festa dos Tolos! [1].
Bakhtin influenciou escolas teóricas ocidentais como o neomarxismo, o estruturalismo, o construcionismo social e a semiótica. Ele era o líder do círculo de Bakhtun, que incluía Valentin Voloshinov (1895 – 1936), que contribuiu para o surgimento do Freudo-Marxismo com seu artigo de 1925 “Além do Social”, que desenvolveu mais substancialmente em seu livro de 1927, Freudianism: A Marxist Critique. A ideia do carnavalesco teve origem em Bakhtin, em sua obra Problemas da Poética de Dostoiévski, (1929) e foi desenvolvido em Rabelais e seu mundo (1940). Para Bakhtin, foram François Rabelais, autor de Gargântua e Pantagruel, e Fiódor Dostoiévski, que ele considerou os primeiros exemplos de carnavalização na literatura. Gargantua e Pantagruel de Rabelais apresentavam uma “Abadia de Thélème”, onde a única regra era Fais ce que tu voudras (“Faça o que tu queres”), que inspirou tanto o Hellfire Club do século XVIII quanto Aleister Crowley.
Em “Nietzsche’s Madness”, preparado, mas não publicado para o último número de Acéphale, em 1939, George Bataille diz: “Aquele que uma vez entendeu que só na loucura está a perfeição do homem, é assim levado a fazer uma escolha clara não entre a loucura e a razão , mas entre a mentira de ‘um pesadelo de roncos justificáveis’ e a vontade de autodomínio e vitória”.
Os sintomas de doença mental encontrados entre místicos e xamãs têm sido frequentemente caracterizados como “Loucura Divina”, que geralmente é explicada como uma manifestação de experiência religiosa ou extática encontrada em muitas culturas. Platão em seu Fedro fala sobre a mania theia, além de uma tradição de “santo louco” existente no budismo, hinduísmo, sufismo, hassidismo judaico e o “tolo sagrado” da ortodoxia oriental.
Os budistas tibetanos geralmente se referem aos “loucos” como Mahasiddha, um termo para alguém que incorpora e cultiva o “siddhi da perfeição”. Um siddha é um indivíduo que, através da prática de sādhanā , atinge a realização de siddhis, habilidades e poderes psíquicos e espirituais. Os Mahasiddhas eram praticantes de yoga e tantra, ou tantrikas, cuja influência histórica atingiu proporções míticas em todo o subcontinente indiano e no Himalaia, conforme codificado em suas canções de realização, ou namtars, muitas das quais foram preservadas no cânone budista tibetano.
O lema na insígnia do Bohemian Club, “Weaving Spiders Come Not Here”, é uma citação direta do Ato 2, Cena 2, da peça de Shakespeare Sonho de uma noite de verão. O momento mais memorável do encontro é um elaborado ritual cerimonial chamado Cremation of Care, que é realizado na primeira noite de sábado, na base de um santuário com uma coruja de 40 pés chamada de Coruja da Boêmia, referência à Coruja de Minerva, símbolo do conhecimento e sabedoria e que aparece em várias esculturas, também ligado à deusa Ishtah (que tem pés de coruja em muitas ilustrações) e na base do caduceu de Hermes.
Essa é a base simbólica de uma sociedade que tem como algumas de suas referências um presidente malandro e um homem foca (Felipe Neto), que já foi elogiado pelo mesmo ministro da Suprema Corte que chamou recentemente um cidadão de mané.
Referências
[1] Trecho da música com o Bobo da Corte em O Corcunda de Notre Dame da Disney:
Por coincidência, assim como o ritual Cremation of Care, do grupo Bohemian Grove, ocorre no primeiro sábado do ano, houve uma “travessura” na Praça dos Três Poderes.