Desde meados do século XVII, a maçonaria foi se tornando um imenso guarda-chuvas de sociedades secretas e congregou grupos ligados ao comércio e à política de forma a garantir a influência política daqueles círculos iniciáticos surgidos a partir do Iluminismo. Iniciada a partir da Ordem Rosa Cruz, até hoje uma faceta formativa e intelectual da maçonaria, conta-se que essas ordens começaram após as primeiras cruzadas, a partir das quais cavaleiros e nobres tiveram contato com evangelhos apócrifos e conhecimentos secretos de origem gnóstica.
Desde a invenção da imprensa por Gutenberg, as prensas estiveram em mãos das sociedades iniciáticas, que deram início a uma abrangente campanha de publicações por toda a Europa, crescendo em influência até o seu ápice, o conturbado e obscuro século XIX. Desde o início, porém, a meta das ordens maçônicas foi limitar a influência da Igreja Católica, tendo especial crescimento na Alemanha durante a Reforma Protestante.
O conjunto de crenças maçônicas ficaram conhecidos do mundo a partir do Iluminismo, quando se inicia oficialmente o culto à Razão pela classe intelectual. Muito antes disso, porém, as sociedades secretas da Europa já cultuavam o conhecimento sob a forma da Serpente do Eden, que teria revelado aos nossos primeiros pais os segredos escondidos por Deus.
Ao longo daquele século XIX, portanto, a Igreja já se via em uma guerra aberta contra a maçonaria, tendo como principal elemento um documento secreto que circulava inicialmente entre os cardeais, atribuído a autoridades maçônicas, intitulado “Instrução Permanente da Alta Vendita”, de autoria de um pseudônimo chamado Piccolo Tigre (Pequeno Tigre). O documento teria sido obra de uma reunião de maçons na qual elaboraram um plano para assumir o controle da Igreja Católica como forma de construir uma espécie de nova ordem mundial, um projeto que poderia levar décadas ou séculos.
O documento foi atribuído à Alta Vendita (Alta venda ou Venda Suprema), espécie de loja da Carbonária italiana, que prenunciava uma infiltração na Igreja por meio de uma campanha entre jovens clérigos e na sociedade com o objetivo final de “garantir a nós um papa de acordo com o nosso próprio coração”.
Para isso, seria necessário “modelar para esse papa uma geração digna do reino com o qual sonhamos”, dizia a mensagem principal do documento. Entre as instruções, os maçons prenunciavam uma ação de infiltração entre os jovens clérigos, em seminários, de maneira a invadir a Igreja para destruí-la por dentro. O historiador católico Taylor Marshall considera que esse documento representa uma mudança nos ataques à Santa Igreja, que antes se caracterizavam por ataques externos e, a partir de então, passam a preferir estratégias de cooptação. Isso foi repetido no século XX pelos comunistas através da URSS, motivando a criação da Teologia da Libertação.
Em geral, o manual maçom, de caráter interno e sigiloso, ensinava ao carbonário a infiltrar-se na sociedade de maneira a construir um mundo diferente.
“O essencial é isolar um homem de sua família, fazê-lo perder sua moral. Ele está suficientemente disposto pela inclinação de seu caráter para fugir dos cuidados domésticos e correr atrás de prazeres fáceis e alegrias proibidas. Ele ama longas conversas de café e ociosidade dos shows. Conduza-o, sustente-o, dê-lhe uma importância de um tipo ou de outro; ensine-o discretamente a se cansar de seus trabalhos diários e, com esse gerenciamento, depois de separá-lo de seu esposa e de seus filhos, e depois de ter mostrado a ele quão penosos são todos os seus deveres, você então despertará nele o desejo de uma outra existência”.
Essas instruções se dirigiam a criar quantas lojas e grupos, como sindicatos e movimentos, que não tivessem intenções políticas nem religiosas. Até hoje, as reuniões maçônicas possuem essa regra comum de evitar assuntos políticos ou religiosos, preferindo o utilitarismo das relações comerciais e banalidades. Essa recomendação voltada especificamente aos homens e chefes de família visava retirá-los do lar e torná-los seduzidos por um modo devida prazeroso e fútil. O mesmo processo feito com as mulheres no século seguinte, no qual a ideologia feminista introduziu, pelo caminho da insatisfação e enfado da vida matrimonial, o anseio por igualdade política e, depois, sexual.
De maneira mais específica, a instrução em forma de carta ensina a infiltração na Igreja como condição para o sucesso do empreendimento da meta revolucionária.
“O Papado sempre exerceu uma ação decisiva sobre os assuntos da Itália. Pelas mãos, pelas vozes, pelas penas, pelos corações de seus inúmeros bispos, padres, monges, freiras e pessoas em todas as latitudes, o Papado encontra devoção sem fim pronta para o martírio, e isso para o entusiasmo. Em todos os lugares, sempre que quiser chamá-los, tem amigos prontos para morrer ou perder tudo por sua causa. Esta é uma imensa alavanca que só os Papas foram capazes de apreciar em todo o seu poder, e até agora eles o usaram apenas até certo ponto. Hoje não se trata de reconstituir para nós mesmos esse poder, cujo prestígio está enfraquecido no momento. Nosso fim último é o de Voltaire e da Revolução Francesa, a destruição para sempre do catolicismo e até da ideia cristã que,se deixado de pé sobre as ruínas de Roma, seria a ressurreição do cristianismo mais tarde”.
Esses documentos secretos apareceram pela primeira vez em 1884, após uma série de conferências do missionário irlandês George F. Dillon, ocorrida em Edimburgo, nas quais ele alertava para uma guerra maçônica contra a Igreja Católica. Os documentos reunidos pelo padre Dillon foram atribuídos às lojas maçônicas da Carbonária, espécie de maçonaria guerrilheira e radical que lutou pela unificação da Itália, através do revolucionário Giuseppe Mazzini, esteve por trás de atentados e terrorismo em diversos países naquele período. Eles comungam dos mesmos ideais maçônicos, diferindo apenas no método mais violento e no profundo anticlericalismo, ainda mais evidente que a maçonaria em geral.
Aquela instrução antecipou em mais de um século, além de todo o indiferentismo religioso que hoje é a regra da opinião geral, também uma profunda aversão ao clero, motivando uma campanha de difamação sob a forma de conspirações jornalísticas.
“…criai-lhe uma dessas reputações que atemorizam as crianças e as velhas; pintai-o cruel e sanguinário, contai alguns feitos de crueldade que possam facilmente gravar-se na memória do povo. Quando os jornais por intervenção nossa se aproveitarem dessas narrações, que eles aformosearão inevitavelmente, pelo respeito à verdade, mostrai, ou antes fazei mostrar por algum respeitável imbecil, essas folhas onde estão relatados os nomes dos indivíduos e os excessos inventados”.
As denúncias de pedofilia contra a Igreja, atualmente, devem muito a essa campanha orquestrada, que se valeu tanto da difamação jornalística quanto da infiltração consciente de ideias que justificassem imoralidades para perverter o próprio clero, como veremos mais adiante.
A maçonaria se originou da Ordem Rosa Cruz, um movimento iniciado pelo lendário Christian Rosenkreutz, personagem mítico que teria sido descendente de uma família dos gnósticos cátaros, mortos por missionários católicos. A Rosa Cruz utiliza a rosa como símbolo devido ao brasão de um conjunto de famílias que se uniram aos protestantes contra o poder da Igreja Católica na Alemanha. Por sua vez, essas famílias representam a Ordem do Velocino de Ouro, uma das mais antigas do mundo, possivelmente iniciada na primeira cruzada. Diversos monarcas europeus utilizaram o mesmo título de “rei de Jerusalém”. Segundo as lendas esotéricas contadas pelos maçons, essa ordem teria sido originada dos Cavaleiros Templários, que teriam a posse do Santo Graal.
A maçonaria como a conhecemos começou a aparecer na Europa durante a reforma protestante um caráter secreto e gnóstico, mesclando sufismo, cabala, zoroastrismo e gnosticismo. Eles se dizem herdeiros da “sabedoria antiga” e seus ideias ficaram conhecidos a partir da Revolução Francesa. Segundo historiadores, a maçonaria aproveitou-se do vácuo religioso provocado pela reforma protestante e acabou organizando uma espécie de nova “igreja católica universal”. Seus ideais são o naturalismo, racionalismo e a crença na necessidade de uma irmandade universal sob bases religiosas fruto de uma combinação de várias crenças. Por esse motivo, a maçonaria é considerada o berço do diálogo interreligioso que dominou o final do século XIX e produziu, por exemplo, o congresso do “Parlamento das Religiões”, em 1895, em Chicago. Com a participação de ocultistas do mundo inteiro, esse congresso é considerado um dos marcos da fundação da espiritualidade moderna que ficou conhecida mais tarde como o Movimento New Age. O movimento obteve grande alcance no século XX, sendo a maçonaria a sua origem já quase remota, dada a imensa abrangência que suas ideias alcançaram.
Na época, a Igreja condenou o evento ocorrido nos EUA, assim como tentava conter a avalanche de ideias modernistas que passaram a ser formalmente cada vez mais condenadas naquele início do século XX.
A força das ideias liberais, em sua matiz esotérica no Ocidente, vinham crescendo a olhos vistos na Europa desde o início daquele conturbado e revolucionário século XIX. Iniciada em 1814, a Carbonária era uma ordem radical que se dividia em “vendas” (vendita, em italiano), distinguindo-se das “lojas” maçônicas.
As “instruções” divulgadas pelo padre Dillon foram atribuídas aos carbonários e embora haja quem duvide dessa autoria, nenhum maçom ou carbonário depois disso reivindicou ser falsa essa autoria. No entanto, há diversas confirmações do plano de destruir a Igreja de dentro por meio de outros documentos internos adquiridos, mas principalmente por textos publicados pelos próprios maçons nos quais assumem essa intenção.
No livro A maçonaria e os Jesuítas, o bispo perseguido e mártir do Império do Brasil, Dom Vital, relata outros registros da mesma conspiração em fontes insuspeitas da própria seita. Em seu livro, Dom Vital cita a circular do Grande Oriente de Roma, publicada em 14 de dezembro de 1872, na qual admite o projeto de destruição e tomada de espaço dos prelados católicos logo após a sua vitoriosa tomada do poder na Itália, confirmando que a reunificação do país havia sido um projeto levado a cabo pela própria maçonaria. Referindo-se ao catolicismo como “religião rapinante e sanguinária”, o documento se propõe a “educar as populações para a verdadeira liberdade; preparar seriamente o dia em que sobre a terra não existirão mais numes, nem ídolos, nem tiranos, nem escravos…”
Em seu livro Freemasonry and the Anti-Christian Movement (Maçonaria e o Movimento Anticristão), o Padre Cahill, S.J. afirma que a Alta Vendita era “considerada o principal centro de comando da Maçonaria Européia”. Os Carbonários tiveram sua principal atuação na Itália e na França.
Foi o Papa Gregório XVI o primeiro a adquirir os documentos, apressando-se a condenar os erros maçônicos como forma de alertar os católicos.
Em sua encíclica Mirari vos, Gregório condena o liberalismo e o indiferentismo religioso, além de valores novos trazidos recentemente pela Revolução Francesa, movimento que disseminou ideias maçônicas e republicanas. Através daquela encíclica, observa-se que estava havendo dentro da Igreja uma verdadeira revolução, combatida heroicamente pelo Papa.
De maneira geral, portanto, o combate às ideias do mundo moderno que adentravam à Igreja, manifestava-se, especificamente, na luta contra a conspiração maçônica envolvendo governos europeus e seu anticlericalismo menos exposto do que no tempo da Revolução. No papado seguinte, Pio IX incentivou a publicação da Alta Vendita para alerta geral dos católicos e denunciou os erros publicamente. Mais tarde, o Papa Leão XIII aprovou a publicação do livro do padre Dillon, intitulado Guerra do Anticristo contra a Igreja e a Civilização Cristã, em 1886.
Dillon recebeu o título de monsenhor pelo Papa e também ficou conhecido por denunciar conspirações maçônicas envolvendo Napoleão Bonaparte e os Illuminati da Baviera, possíveis impulsionadores da Revolução Francesa. Na Austrália, para onde migrou como missionário, Dillon chegou a colaborar com um jornal, The Express, junto do arcebispo romano de Sydney, Roger Vaughan, A publicação combatia abertamente o jornal maçom The Freemason’s Journal.
A intenção de ambos os papas na difusão e condenação dessas conspirações era a proteção da doutrina e da Igreja, um efeito do profundo medo que a ameaça de infiltração provocava, o que ficou evidenciado no tom de diversos documentos papais e pode ter auxiliado a imprensa e os próprios intelectuais da época a ver, na Igreja, essa postura acuada e atemorizada, imagem que aproveitou-se e a partir da qual a própria Igreja reagiu.
De acordo com o historiador Roberto de Mattei, essa intenção de proteção se manifestou em pelo menos três momentos no pontificado de Pio IX: a definição do dogma da Imaculada Conceição, em 1854, a encíclica Quanta cura, Syllabus, de 1864, e a proclamação da infalibilidade papal com o Concílio Vaticano I, em 1870. Essas três ações impuseram uma barreira importante contra novidades teológicas que começavam a crescer promovendo um tipo de “reforma” da Igreja. Se por um lado fechou-se a porta da mudança radical naquele momento, abria-se outras frentes que começavam a crescer lenta e progressivamente.
Como recorda o historiador Taylor Marshall, àquela altura os inimigos da Igreja haviam percebido o fracasso de todas as tentativas de destruir a Igreja de fora. Os ataques externos produziam mártires e encheram a Europa de catedrais em sua honra, fazendo espalhar-se os modelos cristãos de coragem e combate por Cristo. Era preciso, para obter sucesso, uma outra estratégia. Escolheu-se, ao invés do ataque frontal, o nem tão novo caminho para um beijo de Judas.
O caminho da subversão escolheu uma das tradicionais vias pelas quais as heresias caminharam ao longo da história: a filologia. Sob o prisma do nascente positivismo e cientificismo do século XIX, teólogos sugerem a necessidade de investigações sobre as traduções da Sagrada Escritura, evocando para isso uma espécie de autonomia para a investigação científica. O mesmo método pelo qual Erasmo de Rotterdam havia impulsionado o protestantismo, ressurgia no seio da Igreja sob a forma de “método histórico-crítico” da teologia.