Alexandre de Moraes é fonte e origem de toda a liberdade, por meio do qual Flávio Dino, seguidor e súdito, colabora em amor filial. Todos unidos pela Função Iluminista do Estado, sobre o qual nada repousa e tudo cede.
Depois que Alexandre de Moraes ordenou que o Telegram produzisse provas contra si mesmo de um crime inexistente e do ministro Flávio Dino dizer que o tempo de liberdade de expressão absoluta, no Brasil, acabou, pode ser um exercício necessário compreender juridicamente o sistema ou regime instaurado no país. Se do nosso ponto de vista todas essas decisões são abusos jurídicos, do ponto de vista dos que as tomaram, porém, possuem uma coerência lógica. E onde ela está?
Vemos Alexandre e Dino falarem em democracia, em instituições. Apesar disso, o que acreditamos ser essas instituições é evidentemente muito diverso do que pensam os nossos reis juízes de Brasília. Para eles, basta a evocação, como em um ritual público. Para nós, há um princípio de liberdade e verdade que nos colocaria formalmente contra até mesmo a mais pomposa das instituições. Por que há essa discrepância no entendimento da mesma palavra? Dino fala em liberdade guiada, regulada, em um ponto de vista no qual tudo deve ser regulado. Já falamos aqui sobre o ponto de vista da justiça proletária sobre o qual se sustenta o culto petista e governamental do momento. Mas nos parece que o problema é bem mais grave. Vemos a estátua da deusa Themis diante do STF e nos perguntamos se o estado é laico. Mas a laicidade, tal e qual imaginaríamos, não é, ao que parece, a neutralidade ou isenção completa de religiosidade? Sim, mas isso tem um nome e uma história. Não é que se cultue uma religião no lugar do cristianismo, mas, muito além disso, cultua-se uma pré-religião, algo que no sentido cristão da palavra nem a essa definição obedece.
Acontece que o culto da democracia como deusa moderna não é apenas uma analogia com a religião grega, mas a aplicação da sua literalidade devido à reencarnação das mesmíssimas condições políticas e sociais em que surgiu. Se foi o cristianismo que tornou possível o desenvolvimento da democracia, por meio de sua noção específica de liberdade e verdade, muito mais do que a civilização grega, sem isso o sistema político volta a ser um amontoado de ritos formalistas, culminando no culto do próprio formalismo enquanto tal.
Como recorda o cardeal Ratzinger, no célebre artigo sobre o lugar do cristianismo na história do conceito de liberdade e verdade, a noção cristã dependeu de uma série de acontecimentos prévios na história intelectual que tornaram a vinda de Cristo e Sua mensagem um evento compreensível e sua posterior conversão na resposta a questões que estavam em aberto. É natural, portanto, que o afastamento do cristianismo traga de volta as mesmas questões provocando um tipo de retrocesso cujo resultado é um vazio político e jurídico, que vem a ser preenchimento com os mesmíssimos elementos da Antiguidade pré-clássica.
Afinal, a religião grega era o culto civil de deuses criados como espécies de instituições, cuja função era a manutenção da ordem, mais ou menos como é, hoje a própria pessoa de Alexandre de Moraes, segundo ele próprio. A religião, assim como o sistema jurídico alexandrino atual, era um conjunto de práticas públicas que se destinava a prestar culto àqueles valores civis e público (no caso do Brasil, a pessoas como o ilustríssimo ministro). O próprio conceito de “verdade” era semelhante àquele dos nominalistas: alguém disse a verdade, ela se confirmou, então é verdadeiro. Disse um teórico da comunicação no século 20, que não existe Verdade, mas apenas afirmações verdadeiras. Era assim na Grécia pré-socrática. Não havia a ideia de uma verdade fora do tempo, isto é, como na afirmação 2+2=4, em que uma universalidade verdadeira é acessível a qualquer cidadão de maneira igualitária, tão logo ele cumpra os passos do raciocínio e observe o resultado na realidade ou de diversas manifestações daquela mesma verdade universal.
Olavo de Carvalho também conta a mesma história, em um aspecto diverso, no livro O Futuro do Pensamento Brasileiro, quando traça o histórico da conquista da consciência individual. Não que antes do cristianismo as pessoas não tivessem ideia da consciência, mas foi só ele que permitiu um aprofundamento que levou tanto a uma visão aprofundada e verdadeiramente universal, a partir da ideia de salvação, quanto os erros comuns que vemos hoje, fruto dos exageros do liberalismo cultural.
Nada disso teria sido possível sem o que Sócrates provocou nos gregos do seu tempo, motivo pelo qual foi sacrificado, aceitando a sentença de morte tamanha era a certeza que tinha sobre o que havia concluído.
Para os gregos, foi profundamente traumático que um sujeito como Sócrates resolvesse, de repente, investigar e especular sobre a “natureza dos deuses”, sendo que essa natureza era puramente convencional, isto é, ligada a uma função social e política, um verdadeiro formalismo. Sócrates questionou nada menos que os pilares da política e o poder de então. Era como questionar, por exemplo, as urnas eletrônicas.
Foi, por isso, sacrificado e há quem especule que tenha sido Sócrates um “primeiro mártir” pré-cristão por ter morrido voluntariamente pela Verdade, que mais tarde reapareceu na história sob a forma de uma Pessoa, o próprio Deus, a própria Causa das causas. “Causa das causas, tende piedade de mim”, teria dito Aristóteles em uma frase atribuída e talvez lendária, mas extremamente elucidativa. Não por acaso, Santo Tomás escolheu Aristóteles como um de seus mestres da filosofia.
As profecias hebraicas acrescentaram o que faltava a uma nova visão sobre verdade: como uma promessa do próprio Deus ao seu povo eleito, primeiro sinal representativo da humanidade. Assim, quando veio Cristo e ele disse textualmente que ele era a Verdade e que Seu Reino não era deste mundo, pronto! Tudo fechou-se e estava dada a resposta aguardada tanto por filósofos gregos quanto por fiéis hebreus. Não é por outro motivo que Cristo se refere inúmeras vezes a essa história quando diz “seja grego ou judeu”, sendo o primeiro a resposta intelectual e humana, representando toda a humanidade, e o último, o povo eleito, a realidade da promessa feita por Deus. Foi por isso que São Paulo, um conhecedor da cultura helênica, percebeu que todos eram chamados ao Reino e isso dizia respeito a uma realidade universal, daí o inicio da Igreja Católica como apostolado mundial.
A criação de uma fé revolucionária correu paralelamente a tudo isso, sendo talvez o seu primeiro apóstolo o abade Joaquim de Fiore, que embora tenha sido beatificado pela Igreja por sua defesa do missionarismo e do império cristão pelo mundo (sem o qual não seríamos hoje católicos), cometeu deslizes que raiam a heresia, de acordo com a crítica feita por São Boaventura e recuperada em uma tese de Ratzinger: Fiore criou a teologia da história trina, isto é, dividida em três grandes eras (Pai, Filho e Espírito Santo). Isso deu margem a uma “espera” cujo teor acabou alimentando seitas milenaristas, embora um dos resultados disso pôde ser devidamente cristianizado quando os sectários fugiram para os Açores e Portugal, originando o culto ao Divino Espírito Santo. Mas inicialmente se aguardava essa era sagrada e beatífica, na qual tudo seria resolvido. Esse foi o ancestral da revolução, saído de dentro do cristianismo.
A teologia da história, de Fiore, rompeu com as Duas Cidades de Santo Agostinho, usada até então como teoria histórica e política que culminou mais tarde com a separação entre poder temporal e espiritual, algo perfeitamente compreendido na tranquila Idade Média. Mas foi Hobbes que voltou a unir o espiritual ao temporal e, depois dele, Hegel, criando a ideia de um Estado como sujeito histórico, substituindo o próprio Deus. Já para Marx, o Estado se tornou o veículo do próprio culto satânico ao regular ele próprio todas as relações humanas na culminação comunista. Muitos episódios poderiam ser citados para chegarmos devidamente à coroa de Alexandre de Moraes, o poder iluminista do oracular Barroso e a verve tiranossaurica de Dino Fláviossauro.