“Não como carne há um ano. Os ovos custavam apenas um copeque antes da guerra, mas agora são um grande luxo. Consigo um pouco de sopa, mas não dá para viver”, disse o operário ucraniano ao jornalista, que relatou em seu texto publicado em 1933 no The London Evening Standard, em 31 de março de 1933. O texto era do jornalista britânico Gareth Jones, considerado o primeiro a denunciar a fome ucraniana conhecida como Holodomor, a grande tragédia imposta pela União Soviética aos ucranianos.
Jones foi um jornalista independente que ficou mundialmente conhecido pela denúncia do crime que era ocultado por Joseph Stalin, em uma época em que o mundo ocidental acreditava no comunismo soviético como um “experimento social” que estava obtendo grande sucesso. A denúncia de Jones causou um cataclisma nas esquerdas ocidentais fazendo a maioria dos socialistas utópicos desistirem de seu apoio à URSS, sob a qual depositavam grandes esperanças. O véu dos olhos do Ocidente caiu graças ao trabalho de um jornalista que foi contra o consenso.
Gareth Jones já era conhecido por ter sido um dos poucos a conseguir entrevistar Hitler, em 1931, pouco antes dele se tornar chanceler da Alemanha. Seu interesse pela União Soviética surgiu ao se questionar sobre a fonte de recursos de Stalin, que se gabava de obras de infraestrutura em Moscou para a criação da aparência de “paraíso socialista” que iludia o mundo. A partir de uma pista lançada pelo diário de um colega assassinado na Rússia, iniciou uma longa investigação para descobrir o “ouro de Stalin”.
Jones começou sua carreira como assistente do ex-primeiro-ministro britânico David Lloyd George, mas em 1930 decidiu se tornar um jornalista independente. Jones alertou autoridades sobre os perigos de Hitler, mas foi ignorado. Foi em sua segunda viagem à União Soviética, em 1933, que Jones testemunhou em primeira mão a fome causada pela coletivização forçada de Stalin, que levou à morte de milhões de camponeses ucranianos. Jones se deslocou para a Ucrânia e visitou áreas rurais, onde viu o sofrimento das pessoas famintas. Ele relatou a fome para a imprensa britânica, mas suas histórias foram amplamente desacreditadas pelo governo soviético, que estava tentando promover a imagem da União Soviética como um paraíso socialista.
Jones escreveu sobre suas experiências em um artigo intitulado “A fome na Ucrânia”, que foi publicado em vários jornais britânicos e americanos.
No entanto, a União Soviética negou a existência da fome, e Jones foi acusado de ser um mentiroso e um agente provocador. Sua reputação foi manchada, e ele nunca mais conseguiu trabalhar como jornalista de destaque. Um dos articuladores da campanha de difamação contra Jones foi o ganhador do prêmio Pulitzer, Walter Duranty, correspondente do The New York Times que se revelou um colaborador do regime de Stalin.
Os artigos de Jones desiludiram muitos intelectuais da época, como o escritor George Orwell, que ficou chocado com as revelações apesar de continuar se considerando um “socialista democrático”. As denúncias de Jones podem ter inspirado algumas obras de Orwell contra o totalitarismo, como a Revolução dos Bichos
Ao menos é o que sugere o filme “Mr. Jones” (2018), da realizadora polonesa, Agnieszka Holland, que retrata um provável encontro entre Jones e Orwell. Gareth Jones morreu em 1935, aos 29 anos, assassinado por um companheiro de viagem na Mongólia, que mais tarde descobriu-se que era, na verdade, lidado à polícia secreta soviética.
Após 90 anos de uma das mais importantes denúncias feitas pelo jornalismo diante do silêncio dos grandes jornais, cabe recordar o quanto a coragem e o compromisso com a verdade testemunham a importância do jornalismo independente e da liberdade de imprensa em dias tão difíceis como os que vivemos.
Abaixo, a transcrição de seus primeiros artigos quando retornou da União Soviética, no qual denunciava a fome ucraniana.
A fome dominou a Rússia: O plano de 5 anos acabou com o suprimento de pão
Gareth Jones
Alguns dias atrás, eu estava na cabana de um trabalhador nos arredores de Moscou. Um pai e um filho. O pai, um trabalhador qualificado russo em uma fábrica de Moscou e o filho um membro da Liga dos Jovens Comunistas, se entreolhavam.
O pai, tremendo de emoção, perdeu o controle e gritou com o filho comunista. “É terrível agora. Nós, trabalhadores, estamos morrendo de fome. Veja Chelyabinsk, onde já trabalhei. A doença está levando muitos de nós, trabalhadores, e a pouca comida que existe é intragável. Isso é o que você fez com nossa Mãe Rússia”, disse ele.
O filho gritou de volta: “Mas olhe para os gigantes da indústria que construímos. Olhe para o novo trator que funciona. Olhe para o Dniepostroy. Por essa construção valeu a pena sofrer.”
“Construção mesmo!” A resposta do pai foi: “Qual é a utilidade da construção quando você destruiu tudo o que há de melhor na Rússia?”
O que aquele trabalhador disse pelo menos 96 por cento do povo da Rússia está pensando. Houve construção, mas, no ato da construção, tudo o que havia de melhor na Rússia desapareceu. O principal resultado do Plano Quinquenal foi a trágica ruína da agricultura russa. Esta ruína eu vi em sua realidade sombria. Caminhei por várias aldeias na neve de março. Eu vi crianças com barrigas inchadas. Eu dormia em cabanas de camponeses, às vezes nove pessoas em um único quarto. Conversei com todos os camponeses que encontrei e a conclusão geral que tirei é que o estado atual da agricultura russa já é catastrófico, e que dentro de um ano sua condição terá piorado dez vezes.
O que os camponeses disseram? Houve um grito que ressoou em todos os lugares que eu fui: “Não há pão”. A outra frase, que foi o leitmotiv da minha visita à Rússia, foi: “Todos estão inchados”. Mesmo a poucos quilômetros de Moscou, não há mais pão. Enquanto eu atravessava o campo naquele distrito, conversei com várias mulheres que caminhavam com sacos vazios na direção de Moscou. Todos disseram: “É terrível. Não temos pão. Temos que ir até Moscou para conseguir pão e eles nos dão apenas quatro libras, que custam três rublos (seis xelins nominais). Como pode um homem pobre viver?”
“Você tem batatas?”, perguntei. Cada camponês para quem perguntei acenava negativamente com tristeza.
“E as suas vacas?”, perguntei em seguida. Para o camponês russo, a vaca significa riqueza, comida e felicidade. É quase o ponto central sobre o qual sua vida gravita.
“O gado morreu quase todo. Como podemos alimentar o gado quando temos apenas forragem para comermos nós mesmos ?”
“E seus cavalos?”, perguntei em todas as aldeias que visitei. O cavalo é agora uma questão de vida ou morte, pois sem um cavalo, como alguém pode arar? E se não se pode arar, como semear para a próxima colheita? E se alguém não puder semear para a próxima colheita, então a morte é a única perspectiva no futuro.
A resposta demonstrava desgraça que viria para a maioria das aldeias. Os camponeses disseram: “A maioria dos nossos cavalos morreu e temos tão pouca forragem que os restantes estão todos esqueléticos e doentes”.
Se agora é grave, e se milhões estão morrendo nas aldeias, como de fato estão, já que não visitei uma única aldeia em que muitos não tivessem morrido, como será daqui a um mês? As batatas que sobraram estão sendo contadas, uma a uma. Mas em muitos lares as batatas acabaram há muito tempo. A beterraba, outrora usada como forragem para o gado, pode acabar em muitas cabanas antes que o novo alimento chegue em junho, julho e agosto, e muitos nem sequer têm beterraba.
A situação é mais grave do que em 1921, como afirmaram enfaticamente todos os camponeses. Naquele ano houve fome em várias grandes regiões, mas na maior parte os camponeses puderam sobreviver. Foi uma fome localizada, que teve muitos milhões de vítimas, principalmente ao longo do Volga. Mas hoje a fome está em toda a parte, na outrora rica Ucrânia, na Rússia, na Ásia Central, no norte do Cáucaso – em todos os lugares.
Mendigos infantis em Moscou
E nas cidades? Moscou ainda não parece tão abalada, e ninguém que esteja em Moscou teria a menor ideia do que está acontecendo no campo, a menos que pudesse falar com os camponeses que percorreram centenas e centenas de quilômetros até a capital em busca de pão. As pessoas em Moscou vestem roupas quentes e muitos dos trabalhadores qualificados, que comem sua refeição quente todos os dias na fábrica, são bem alimentados. Alguns dos que ganham salários muito bons, ou que têm privilégios especiais, parecem tranquilos, bem vestidos. Mas a grande maioria dos trabalhadores não qualificados está sentindo o aperto.
Conversei com um trabalhador que carregava um pesado baú de madeira. “Agora está terrível!”, disse ele. “Eu como dois quilos de pão por dia e é pão podre. Não consigo carne, nem ovos, nem manteiga. Antes da guerra eu conseguia arranjar muita carne e era barato. Mas não como carne há um ano. Os ovos, que custavam apenas um copeque antes da guerra, agora são um grande luxo. Consigo um pouco de sopa, mas não dá para viver”.
Agora, um novo pavor visita o trabalhador russo: o desemprego. Nos últimos meses, muitos milhares foram demitidos de fábricas em muitas partes da União Soviética. Perguntei a um desempregado o que havia acontecido com ele. Ele respondeu:
“Somos tratados como gado. Dizem-nos para fugir e não recebemos cartão de pão. Como posso viver? Eu ganhava meio quilo de pão por dia para toda a minha família, mas agora não tem cartão de pão. Tenho que sair da cidade e ir para o campo onde também não há pão”.
O Plano Quinquenal construiu muitas boas fábricas. Mas é o pão que faz girar as rodas das fábricas, e o Plano Quinquenal destruiu o único fornecedor de pão da Rússia.